Aqueles que tratam o próximo com justeza serão recompensados com sucesso mundano, enquanto os que assassinam, roubam e fraudam hão de se deparar com pobreza e discórdia, pois os deuses amam a virtude e odeiam o vício. Ao menos foi o que Hesíodo disse a seus leitores – e, ao mesmo tempo, admitiu que a justiça divina poderia ser um pouco lenta e que ele dificilmente encontraria alívio da injustiça enquanto vivesse.1
Já na era de Aristófanes, por volta de três séculos mais tarde, o longo prazo parecia cada vez mais longo, e o ceticismo em relação à justiça divina crescia. Em um fragmento da peça perdida Sísifo, de autoria desconhecida2, a existência dos deuses e sua preocupação com a justiça humana são descritas como um mito para manter os malfeitores em xeque:
Primeiro, um homem sagaz, sábio de julgamento,
Encontrou para os mortais o medo dos deuses,
Para dessa maneira assustar os perversos, caso
Ajam, falem ou mesmo conspirem em segredo.
Foi assim que ele apresentou aos homens o divino […]3
A preocupação de que um comprometimento em declínio para com a religião tradicional pudesse minar a moralidade pública é recorrente nas peças de Aristófanes; contudo, o próprio goza sem piedade tanto dos deuses da religião grega, quanto dos sacerdotes que a serviam. Em As Rãs, por exemplo, Dioniso é retratado como covarde e efeminado; enquanto isso, em A Paz e As Aves, os protagonistas humanos conseguem vencer pela astúcia algumas deidades um tanto quanto bufonas. Além disso, como vimos no último texto4, o tema central de Pluto ou Um Deus chamado Dinheiro era que o deus da riqueza distribui suas bênçãos de forma aleatória, em vez de meritoriamente – uma reclamação que pode muito bem servir para solapar a confiança na justiça divina.
Uma das acusações que Aristófanes parece mover contra os novos intelectuais, como Eurípides e Sócrates, é que eles encorajam a descrença nos deuses. Em As Tesmoforiantes, uma das duas peças devotadas a criticar Eurípides (a outra é As Rãs), é dito que “esse camarada, em suas tragédias / fez com que acreditassem / que os deuses não existem”5. É claro, nenhuma peça sobrevivente do acusado ensina literalmente que não há deuses (a não ser que o fragmento de Sísifo venha da pena dele, o que é possível); porém, é verdade que os deuses passam uma impressão bastante ruim em alguns momentos de suas obras6 – embora isso seja também verdade para o material mitológico que ele usa como fonte.
Em As Nuvens, o autor cômico coloca as seguintes palavras na boca de Sócrates: “Tu hás de jurar pelos deuses, não? / Não te enganes: os deuses não são moeda de curso forçado aqui”7. Em contraste, outras fontes antigas sobre Sócrates o representam como crente em deidades – contudo, elas de fato descrevem que ele rejeitava a verdade literal dos mitos que apresentam os deuses como irascíveis e movidos por suas paixões8. É difícil ver como Sócrates pode ser tachado de ímpio por ter rejeitado o lado vergonhoso dos mitos gregos, se ao mesmo tempo Eurípides é culpado por impiedade por aceitar esse mesmo lado.
Aristófanes faz com que Sócrates exprima uma explicação científica de fenômenos meteorológicos tradicionalmente atribuídos a Zeus:
– Pela Terra, não estás dizendo
que Zeus não é um deus do Olimpo, estás?
– Que queres dizer com “Zeus”? Pares de asneiras.
Zeus não existe.
– O que queres dizer? Quem, então, faz chover?
Não prossigas antes de me responderes isso.
– Ora, essas [nuvens], é claro,
e lhe fornecerei prova irrefutável.
Já vistes chuva sem nuvens?
De outra forma, Zeus teria de produzir a chuva ele mesmo
quando as nuvens não estão em casa. […]
– E eu que sempre pensei que a chuva
era Zeus mijando em uma peneira. […]
Mas quem é que, diz-me,
faz o trovão e me dá arrepios? […]
– Quando as nuvens estão encharcadas de água […]
e esbarram umas nas outras, elas explodem. […]
– Ah, mas o relâmpago – explica isso! […]
– Quando um vento seco ascende à atmosfera,
fica preso nessas Nuvens
e o vento as sopra como a uma bexiga
então, por pressão, rasga-as ao meio
por causa da densidade e
carboniza-se e torna-se nada
por causa da fricção e da velocidade.9
Em outras fontes, Sócrates mostra-se muito mais desinteressado em questões científicas, preferindo focar-se em ética; por isso é comumente assumido que Aristófanes está usando Sócrates como substituto para os intelectuais modernos no geral, o que pode muito bem ser verdade. Contudo, Platão de fato conta10 que Sócrates estava interessado na ciência em sua juventude, e, já que As Nuvens é ao menos um quarto de século mais antigo do que as outras principais fontes de informação sobre o filósofo, é possível que Aristófanes fosse familiar com um Sócrates “mais científico”.
O dramaturgo também apresenta Sócrates como professor das artes gêmeas do “Argumento Justo” e do “Argumento Injusto” – isso é, a habilidade de argumentar tanto do lado certo quanto do errado em todos os casos –, com a implicação de que essa habilidade moralmente dúbia anda lado a lado com o ceticismo teológico do filósofo. Essa acusação é, em geral, tratada como injusta, na medida em que, enquanto alguns pensadores gregos (como os sofistas Protágoras e Górgias) realmente ofertavam o ensino dessa habilidade, Sócrates é retratado como crítico dela (veja, por exemplo, o diálogo platônico Górgias, em que Sócrates vê com maus olhos qualquer argumento que seja indiferente à verdade). Contudo, o próprio Sócrates às vezes propõe o que parece o lado errado de um caso, como em Hípias Menor, de Platão, no qual ele argumenta que é melhor errar voluntariamente do que de forma involuntária. É provável que esse argumento tenha sido pensado como uma reductio ad absurdum da tese de que é possível errar voluntariamente, mas isso pode não ser óbvio para um ouvinte casual; e, de qualquer forma, essa interpretação só confirmaria que Sócrates, por vezes, argumentava em favor de proposições nas quais não acreditava.
De qualquer forma, a própria peça de Aristófanes inclui argumentos antiteístas que ficam sem resposta; por exemplo, quando Estrepsíades ventila a opinião de que o raio é “o que Zeus lança contra os perjuros”, Sócrates contra-argumenta:
Se ele ataca os perjuros, por que já não atacou
Símon, Cleônimo ou Teoro, perjuros assíduos?
Em vez disso, ataca seu próprio templo, […]
assim como os poderosos carvalhos. O que ele tem em mente?
A árvore do carvalho dificilmente há de cometer perjúrio.11
Se há uma resposta adequada a essa argumentação cética, o autor não a fornece.
Como observado previamente, em Pluto ou Um Deus chamado Dinheiro, a restauração da visão do deus da riqueza traz uma distribuição do dinheiro de acordo com o mérito. Como resultado, a grande maioria das pessoas não sente mais a necessidade de fazer sacrifícios aos deuses, pois já possui as bênçãos por que pediria normalmente. E mais: os sacerdotes, acostumados a consumir os alimentos que os devotos ofereciam aos deuses, passaram a ficar famintos. Como um deles reclama:
Estou morrendo de fome
Desde que Pluto recuperou sua visão.
Simplesmente não tenho o que comer. Eu, sacerdote de Zeus, o salvador! […]
Ninguém faz sacrifícios. Ninguém toma o tempo. […]
Nos dias em que as pessoas não tinham nada, o comerciante,
voltando são e salvo de suas viagens,
ofereceria um sacrifício em agradecimento,
assim como um homem absolvido no tribunal,
e os sacrificadores pediriam que eu fosse o sacerdote.
Mas não é mais assim.
Ninguém oferece nada ou põe o pé
no templo, exceto para encontrar um banheiro […]12
É importante observar que o sacerdote não parece ser virtuoso, já que, assim fosse, teria se beneficiado do novo sistema sem a ajuda de quaisquer suplicantes.
Os próprios deuses provam ser não menos mercenários. Hermes, o mensageiro divino, reclama para Crêmilo, o humano que conseguiu que a visão de Pluto fosse recuperada:
É Zeus, seu patife.
Ele está com um humor terrível e pronto para esmagá-los a todos […]
Porque cometeram o crime mais hediondo.
Desde que Pluto voltou a ver,
ninguém se importou em sacrificar algo para nós, os deuses:
nenhum incenso, folha de louro, bolo de cevada, animal abatido –
nenhuma maldita coisa.13
O tema de deuses ansiosos em sua ganância por receber oferendas e sacrifícios feitos pelos devotos mortais ocorre novamente em As Mulheres na Assembleia, em que a avareza divina é tratada como justificativa para que os humanos se comportem de forma similar. Um personagem, quando questionado “Queres dizer que deveríamos simplesmente pegar?”, responde:
Pelos deuses, sim! Façam como as deidades fariam.
Não é óbvio que, quando rezamos perante suas efígies,
elas estão desejosas?
Estão lá, mãos estendidas, palmas para cima,
não para dar, mas para receber.14
De forma similar, em As Aves, o ateniense Pistêitaro lança os deuses em um frenesi de desespero ao fazer com que os pássaros do céu imponham um embargo ao comércio entre deuses e mortais:
Já os deuses,
hás de matá-los de fome, como os desafortunados
habitantes de Melos.
Porque entre nós e eles está o ar. Certo?
E da mesma forma que necessitamos de vistos dos Beócios
quando queremos visitar Delfos, também os humanos,
quando sacrificarem aos deuses, necessitarão de vistos
de vocês [as aves], para que o saboroso cheiro de torresmo frito
chegue aos céus.15
Há uma óbvia referência no trecho ao duro tratamento dado por Atenas a Melos, o qual foi discutido previamente, em conexão com As Troianas, de Eurípides16 (esse incidente será comentado de novo quando debatermos Tucídides).
A descrição vergonhosa dos deuses (e de seus sacerdotes), como seres movidos pela ganância por sacrifícios, fornecida por Aristófanes, pode parecer incongruente em um autor que, de outra forma, é bastante generoso em acusar os outros de minarem a moralidade tradicional por não respeitar os deuses. Pode-se, contudo, ver como alvo da sátira do dramaturgo não os deuses, mas sim uma certa concepção popular deles e de sua relação com os seres humanos.
Em uma passagem de Eutífron, de Platão, que pode muito bem ter sido inspirada por uma reflexão sobre Aristófanes, e em particular sobre a cena do embargo em As Aves, Sócrates goza das concepções excessivamente mercantis da religião:
– Mas, diz-me, o que é esse “serviço aos deuses”? Dizes que é pedir
e dar a eles? […] E pedidos adequados seriam aqueles pelo que necessitamos
deles, pedindo-lhes por essas coisas? […]
E, novamente, dar de maneira adequada seria dar o que calhou de quererem
de nós, para que forneçamo-las? […]
– É isso, Sócrates.
– Então a piedade, para deuses e homens, Eutífron, seria uma habilidade
para que uns e outros comerciem entre si?17
Esse aspecto comercial é certamente uma característica usual de rezas antigas, que costumavam começar com um lembrete dos serviços que o suplicante já prestara aos deuses, seguido por um pedido por favor divino em retorno. Porém, quando Sócrates questiona se um devoto tem a capacidade de “beneficiar os deuses e torná-los melhores”, de forma que o que faz “resulte em alguma melhoria nos deuses”18, seu interlocutor logo nega que “os deuses se beneficiam do que recebem de nós”19 e, então, o modelo de trocas comerciais das relações humano-divinas é rejeitado.
Portanto, Aristófanes, explicitamente em desacordo com Sócrates no tema da religião, pode estar mais próximo de se tornar um alvo das próprias críticas do que percebe: ambos os pensadores satirizam atitudes populares em relação à oração como baseada em um modelo inadequadamente mercantil de relacionamento entre os deuses e a humanidade.
No fim das contas, o dramaturgo oferece à sua plateia parca orientação de como reconciliar a noção tradicional dos deuses como garantidores da justiça com o Zeus que explode árvores inofensivas e os próprios templos com seus raios, enquanto permite aos perjuros que sigam livres. A preocupação de Hesíodo permanece: se os deuses não premiam a justiça e punem a injustiça, que razão temos para tratar nossos vizinhos de forma justa? Ou a justiça é recompensada, afinal, mas de maneira diferente daquela que Hesíodo esperava? Essas são questões que Sócrates e seus seguidores endereçarão.
Algumas fontes atribuem a peça a Eurípides, outras a Crítias (tio de Platão e líder da Tirania dos Trinta). O contexto e o falante da passagem são desconhecidos; e seus sentimentos, é claro, não devem necessariamente ser atribuídos ao autor, quem quer que seja. ↩
Sisyphus fragment 12-16; tradução de R. G. Bury e J. Garrett. ↩
Aristophanes, Thesmophoriazousai 478-481; in Aristophanes, The Complete Plays: The New Translations, trad. Paul Roche (New York: New American Library, 2005), p. 500. ↩
Veja, por exemplo, a descrição de Apolo em Íon, de Eurípides, como retratada na parte 15 desta série. ↩
Aristophanes, Clouds 247-248; tradução de Roche, p. 144. ↩
Veja, p. ex., Plato, Euthyphro 5e-6b. ↩
Clouds 366-407; tradução de Roche, pp. 150-153. ↩
Veja Plato, Phædo 97c-98b. ↩
Clouds 397-402; tradução de Roche, p. 152. ↩
Ploutos 1173-1184; tradução de Roche, p. 714. ↩
Ploutos 1107-1116; tradução de Roche, p. 711. ↩
Assemblywomen 778-782; p. 645. ↩
Birds 184-192; tradução de Roche, p. 346. ↩
Plato, Euthyphro 14d-e; tradução de Cathal Woods e Ryan Pack. ↩
Ibid., 13c. ↩
Ibid., 15a. ↩