O legado da Grécia Antiga para a liberdade: Eurípides sobre as agruras da guerra

Ancient Greece's Legacy for Liberty: Euripedes on the woes of war · Tradução de Gabriel Goes
· 8 minutos de leitura

A carreira de Eurípides como tragediógrafo coincide, em grande medida, com a Guerra do Peloponeso, um longo e destrutivo conflito entre Atenas e Esparta que convulsionou a Grécia por quase três décadas.1 Duas de suas peças em particular – As Troianas e Helena –, enquanto retratam eventos da Guerra de Troia e seus resultados, parecem se aplicar deliberadamente à guerra travada nos dias do autor e carregam uma forte mensagem antiguerra.

As Troianas, produzida em 415 a.C., descreve o tratamento brutal da população troiana conquistada pelos vitoriosos gregos. Os apuros de mulheres capturadas daquela cidade eram um tema de que Eurípides já havia tratado nas obras Hécuba e Andrômaca; porém, a condenação da conduta grega é ainda mais feroz na obra em questão, que é em geral entendida como uma crítica codificada da igualmente brutal conquista ateniense da ilha de Melos mais cedo no mesmo ano, na qual os vencedores massacraram todos os homens e escravizaram mulheres e crianças.2 O lamento da rainha dos troianos por seu neto infante, e sua repreensão aos aqueus (gregos) que o assassinaram por razões políticas, deve ter recaído sobre ouvidos desconfortáveis:

Aqueus! Toda sua força está em suas lanças, não

na mente. Do que têm tanto medo, que os fizeram matar

esta criança com tanta selvageria? Aquela Troia, que caiu, poderá

ser levantada do chão uma vez mais?3

Três anos depois, em 412, Eurípides retorna ao tema da Guerra de Troia em Helena. Essa peça surgiu na esteira da derrota desastrosa de Atena na Sicília, em 413, na qual foram perdidos milhares de soldados e centenas de navios; a ênfase do autor no horror e na futilidade da guerra pode muito bem ter ressoado entre a desmoralizada plateia ateniense.

Na versão tradicional da lenda, Helena deixa seu marido grego Menelau para se juntar ao príncipe troiano Páris – por vontade própria em alguns relatos, mas não por outros –, o que, portanto, precipitou a Guerra de Troia. Contudo, para sua obra, Eurípides se baseou em uma variação do mito, na qual Helena nunca foi a Troia, mas sim passou a guerra cativa no Egito como resultado de um ardil desenvolvido pelos deuses, o que, então, tornou sem sentido toda a expedição helênica (grega) para retomar Helena de Troia (ou Ílion). A personagem explica:

Eu mesma fui capturada por Hermes, escondida […]

e deixada por ele onde me veem [no Egito] […]

no entretempo, meu mal-aventurado lorde [Menelau]

juntou um exército para me rastrear na trilha

de meu sequestro, e avançou contra as torres de Ílion.4

Por isso, a jornada de Menelau estava fadada ao fracasso, e “toda a dura guerra foi guerreada por nada”5 – enquanto a própria Helena é, por engano, “condenada por tudo e tida como traidora de seu lorde / e para os helenos acendeu a chama de uma grande guerra”6. Os deuses perpetraram essa fraude para ludibriar a raça humana para que travasse um conflito infrutífero e despovoasse a Terra:

[Zeus] lançou a guerra sobre solo helênico

para drenar nossa mãe-terra

do fardo e da multidão da humanidade.7

Foi com a devastadora derrota para os sicilianos no ano anterior fresca em suas mentes que a plateia de Eurípides teria ouvido o ardente lamento de Helena pelos mortos em ambos os lados do conflito troiano:

Ah, Troia, a infeliz,

por coisas feitas que nunca o foram

morrestes, lamentavelmente ferida. […]

Mães que viram os filhos perecerem, donzelas que cortaram os longos cabelos

por parentes que sucumbiram ao lado das águas

do frígio Escamandro.

Hellas também chorou, gritou

em lamentação,

golpeou com as mãos a própria cabeça

e com a trilha de sangue das unhas

rasgou a maciez de sua face.8

Os sentimentos de Helena encontram eco no coro de mulheres cativas, que condenam a guerra e mostram as vidas que poderiam ter sido salvas se os gregos e troianos tivessem recorrido à negociação em vez de à guerra:

Estou em luto pelas duras penas

de Helena, por todo o sofrimento,

todas as lágrimas das filhas de Troia

que brotaram de lanças erguidas pelos aqueus […]

E houve muitos aqueus que, pela lança

e pelo esmagar da pedra perderam a vida

e foram dados, em vão, a Hades.

Por eles, esposas infelizes cortaram os longos cabelos.

As câmaras de seu amor quedam-se abandonadas. […]

Estultos, todos vocês, que com a força da lança

e do gume da lâmina conquistam seu valor

pela guerra, e estupidamente tentam

deter a dor do mundo.

Porque, se a contenda sangrenta deverá decidir

a questão, nunca mais

o ódio há de abandonar as cidades dos homens.

Pelo ódio conquistaram as câmaras da cidade de Príamo;

Poderiam ter resolvido, por razão e palavras,

a querela […]

Agora são oferecidos ao Deus da Morte abaixo.9

Em contexto, a clara implicação é que o conflito corrente entre Atenas e Esparta, pelo qual os atenienses da época sofriam tanto, era, da mesma forma, um pavoroso erro, combatido sob pretextos frágeis e que também deveria ter sido evitado por meio de negociação. Helena dá prosseguimento, com uma moral libertária mais ampla:

Deus odeia a violência. Ele ordenou que todos os homens

possuam com justiça sua propriedade, não a tomem. […]

Há o céu, que é de todos juntos, há

o mundo para se viver: preenche-o com nossas casas

e não ocupe as de outro, nem arranque-as de suas mãos à força.10

Em suma, a oposição de Eurípides à guerra se dá em uma crítica geral à agressão contra a pessoa ou a propriedade de outrem.

Notas

  1. A guerra foi de 431 a 404 a.C.; a peça mais antiga de Eurípides de que se tem notícia, Alceste, foi produzida em 438 (embora outras obras, agora perdidas, possam tê-la precedido), e ele ainda estava escrevendo à época de sua morte, em 406. 

  2. Sobre o tratamento ateniense de Melos e os argumentos de que “a força faz o direito” (possivelmente inventados por Tucídides) com os quais os conquistadores de Atenas supostamente tentavam justificá-lo, veja o livro 5, capítulo 17 da História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides. 

  3. Euripides, Trojan Women 1158-1161; tradução de Richmond Lattimore, in David Grene and Richmond Latimore, eds., Euripides III (University of Chicago Press, 1958), p. 198. 

  4. Euripides, Helen 44-51; tradução de Richmond Lattimore, in David Grene and Richmond Lattimore, eds., Euripides II (University of Chicago Press, 1956), p. 192. 

  5. Helen 717-718; p. 221. 

  6. Helen 54-55; p. 192. 

  7. Helen 38-50; p. 192. 

  8. Helen 361-374; pp. 205-206. 

  9. Helen 1113-1161; pp. 237-238. 

  10. Helen 903-908; p. 229.