O legado da Grécia Antiga para a liberdade: Eurípides sobre as agruras da mulher

Ancient Greece's Legacy for Liberty: Euripedes on the woes of woman · Tradução de Gabriel Goes
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Como vimos da última vez, Eurípides devotou uma série de obras troianas – Hécuba, Andrômaca, As Troianas e Helena – aos males da guerra em geral e a seu efeito maligno nas mulheres em particular. A essas, pode-se adicionar Ifigênia em Áulide, que retrata brutalmente a decisão de Agamenon de sacrificar a filha para os deuses, de modo a assegurar ventos favoráveis para a expedição grega a Troia.1

A solidariedade do autor para com a posição das mulheres na sociedade grega surge em outras peças. Em Íon, por exemplo, a cadeia de eventos infelizes se inicia quando o deus Apolo engravida à força uma mortal, Creúsa, que, então, abandona sua prole semidivina e tenta acobertar o evento para evitar escândalo. Eurípides apresenta a condição de Creúsa com simpatia, enquanto representa Apolo com algo como desprezo. Ao fim da peça, quando a deusa Atena descende ex machina para resolver as coisas, ela explica que foi “mandada por Apolo, / Que não considerou certo vir ele mesmo / Diante de ti, para que não fosse culpado / Pelo que ocorreu no passado”2. Em outras palavras, Apolo manda a irmã limpar a bagunça porque ele não tem a coragem de encarar as consequências de suas ações.

Dada a maneira frequentemente empática com que Eurípides retrata as mulheres, pode ser surpreendente que, à época, suas tragédias tivessem reputação de serem misóginas. O poeta cômico Aristófanes, de fato, dedicou uma obra inteira, As tesmoforiantes, para dramatizar (sem necessariamente endossar) essa acusação contra Eurípides.

Muita dessa reputação parece vir de duas peças mais antigas do tragediógrafo, Hipólito e Medeia. Na primeira, a jovem esposa de Teseu, Fedra, apaixona-se por seu enteado, Hipólito e, quando é rejeitada, comete suicídio e deixa uma nota em que acusa falsamente Hipólito de estupro, o que leva Teseu a conclamar fatal vingança divina contra o enteado inocente, antes de descobrir a verdade tarde demais.3 Essa peça contém um discurso de Hipólito sobre o tema “quão grande maldição é uma mulher”, que conclui:

Odiá-las-ei, mulheres, odiarei, odiarei, odiarei,

e nunca me cansarei de odiar […]

eterna, também, é a perversidade feminina.

Ou deixe que as ensinem a ser castas,

ou sofram comigo as pisoteando para sempre.4

Contudo, é duvidoso se o próprio autor pretende endossar a hostilidade de Hipólito em relação às mulheres, já que ele começa a obra com Afrodite, deusa do amor, reclamando que Hipólito “não terá nem o leito do amor nem o casamento” e “blasfemou-me / dizendo-me a mais vil dos Deuses no Céu”. Ela jura que “por seus pecados contra mim / hei de punir Hipólito neste dia”5 e os eventos subsequentes representam a punição prometida. Em suma, a misoginia de Hipólito é descrita como uma falha fatal que o leva à derrocada. Assim como Penteu, em As Bacantes, é destruído por se recusar a pagar o respeito devido a Dioniso, também Hipólito é arruinado por uma falha similar em relação a Afrodite.6

Ademais, enquanto Eurípides não demonstra aprovar a decisão de Fedra em levantar falsa acusação de estupro contra Hipólito, ele a apresenta de forma a mover a simpatia do espectador em direção a essa personagem. Hipólito, ao descobrir o amor de Fedra por ele, ameaça revelar esse segredo para o mundo, apesar de ter prometido não o fazer. Essa expectativa leva Fedra a entrar em pânico: “Amargo, deveras, é o destino da mulher! […] / Onde poderei escapar de minha sina? […] / Ele há de encher toda a terra com minha desonra”7. A acusação de estupro é um movimento preventivo projetado por ela para desacreditá-lo antes que ele possa desacreditá-la, o que a permite “legar aos meus filhos depois de mim / uma vida com nome puro”8. Eurípides mostra como a falsa acusação está enraizada na sensação de aprisionamento de Fedra pelos costumes sexuais gregos e pelos padrões prevalentes de reputação das mulheres.

A outra grande base para a acusação de misoginia contra o autor é Medeia, na qual Jasão, herói lendário da busca pelo velocino de ouro, propõe deixar de lado sua amante de longa data, Medeia, para se casar com uma mulher mais nova de família influente; disso a personagem homônima da obra se vinga ao matar seus próprios filhos com Jasão. Porém, de novo, como com Fedra, embora a ação de Medeia não seja incentivada, sua situação é tratada com uma estima que reflete preocupação em relação ao status de oprimidas das mulheres na sociedade grega.

Algumas das reclamações de Medeia são específicas sobre os detalhes de sua história pessoal com Jasão, como quando ela o lembra de que:

Salvei tua vida, e todo grego sabe que o fiz […]

Eu mesma traí meu pai e meu lar,

E vim contigo para Iolcos, a terra de Pélias. […]

Mas tu me abandonaste, tomaste outra para tua cama,

Embora tivesses filhos […]

Aonde devo ir? Para a casa de meu pai?

A ele traí, e à sua terra, quando contigo vim. […]

Em casa, por bondade a ti, inimigos fiz […]

E quão feliz entre as mulheres gregas me fizeste

Ao teu lado por tudo isso! Um marido distinto

Tenho eu – para quebrar promessas. Quando, em miséria,

For expulsa desta terra e exilada […]

Será essa uma bela vergonha para o recém-casado,

Que seus filhos perambulem como pedintes, mesmo tendo ela o salvo. […]

Que lucro tenho na vida?

Não possuo terras, não tenho casa, não há refúgio da minha dor.

Meu erro foi cometido quando deixei para trás

A casa de meu pai, e confiei nas palavras de um grego […]9

Por outro lado, seu lamento também se desloca das particularidades de sua vida para os grilhões que aprisionam as mulheres em geral:

Era tudo, para mim, crer na bondade de um homem,

E ele, meu próprio marido, mostrou-se completamente vil.

De todas as coisas que vivem e podem formar julgamento

Nós mulheres somos as mais desafortunadas.

Primeiro, excesso de riqueza é necessário

Para que compremos um marido e tomemos, para nosso corpo,

Um mestre; pois não o tomar é ainda pior.

E agora a questão é séria se escolhemos

Bem ou mal; pois não há saída simples

Para uma mulher, nem pode ela dizer não a seu casamento.

Ela se encontra dentre novos modos de comportamento e maneiras,

E precisa possuir poderes proféticos, a não ser que tenha aprendido em casa,

Como melhor administrar aquele que com ela divide a cama

E se isso trabalharmos bem e com cuidado,

E o marido viver conosco e, com serenidade, carregar seu fardo,

Então a vida é invejável. Se não, preferiria morrer.

Um homem, quando está cansado da companhia que tem em casa,

Dela sai e põe fim a seu tédio

E recorre a um amigo ou companheiro de sua idade.

Mas nós somos forçadas a ter olhos para um, e só um.

O que dizem de nós é que temos uma vida pacífica

Vivendo em casa, enquanto eles lutam na guerra.

Quão errados estão! Preferiria muitíssimo estar

Três vezes nas vanguardas da batalha do que ter um filho.10

Em conjunção com o apuro de Medeia como uma mulher à mercê dos homens está sua condição como uma imigrante à mercê dos gregos nativos. Como ela, de novo, lembra Jasão:

Tu tens um país. A casa de tua família é aqui.

Desfrutas da vida e da companhia de amigos.

Mas eu sou uma desertora, uma refugiada, tratada como ninguém

Por meu marido – como algo que conquistou em terra estrangeira.

Não tenho mãe ou irmão, nem qualquer relação

Na qual possa encontrar abrigo neste mar de agruras.11

Dessa forma, as tragédias de Eurípides dão voz às queixas dos impotentes na sociedade – mulheres, imigrantes, prisioneiros de guerra.

Notas

  1. A versão de Ifigênia em Áulide que chegou aos dias de hoje acaba com a deusa Ártemis intervindo no último minuto para evitar a morte da personagem principal, mas estudiosos concordam que esse final não foi escrito por Eurípides. Qual versão da lenda ele seguiu não se sabe, embora ele, de fato, retrate a sobrevivência de Ifigênia em uma peça anterior, Ifigênia em Tauris. Em Agamêmnon, de Ésquilo, por outro lado, o sacrifício é evidentemente bem-sucedido. 

  2. Ion 1556-1559; tradução de Ronald Frederick Willetts, in David Grene and Richmond Latimore, eds., Euripides III (University of Chicago Press, 1958), p. 252. 

  3. Na versão original, agora perdida, Eurípides aparentemente fizera com que Fedra se declarasse para Hipólito de forma direta, para desgosto da plateia. Na versão revisada, que hoje possuímos, ela luta para suprimir seu desejo, mas o segredo é vazado a Hipólito pela intrometida ama de Fedra. 

  4. Euripides, Hippolytus 663-668; tradução de David Grene, in David Grene and Richmond Latimore, eds., Euripides I (University of Chicago Press, 1955), p. 190. 

  5. Hippolytus 11-21; p. 163. 

  6. Essa similaridade de temas (o perigo de tentar reprimir ou desvalorizar as paixões) entre Hipólito e As Bacantes, ao lado do fato de que Hipólito foi escrita mais de duas décadas antes de As Bacantes, apresenta um problema para a tese de Friedrich Nietzsche (The Birth of Tragedy (1872), seção 12) de que As Bacantes representa o distanciamento de Eurípides, no leito de morte, de um racionalismo naturalista que havia durado a vida inteira. 

  7. Hippolytus 669-693; p. 191. 

  8. Hippolytus 716-718; p. 193. 

  9. Euripides, Medea 476-801; tradução de Rex Warner, in Euripides I, op. cit., pp. 74-86. 

  10. Medea 228-251; pp. 66-67. 

  11. Medea 253-258; p. 67.