A Nova Tirania

The New Tyranny · Tradução de Leonardo Tavares Brown
· 16 minutos de leitura

Como especialistas em desenvolvimento tem fortalecido o regime de ditadores, ajudando a manter milhões de pessoas na pobreza.

Na manhã de domingo de 28 de fevereiro de 2010, os habitantes do distrito de Mubende, em Uganda, estavam na igreja quando escutaram o barulho de tiros. Eles saíram e viram homens incendiando suas lavouras e suas casas. Soldados afastavam os moradores sob a mira de armas; uma criança de oito anos ficou presa e morreu no fogo. Os soldados então removeram os 20 mil fazendeiros da terra que havia estado em suas famílias por várias gerações.

A razão de toda a violência foi um projeto de silvicultura financiado pelo Banco Mundial que precisava da terra.

A única coisa que distingue esse episódio de outras diversas violações de direitos humanos que são perpetradas em nome do desenvolvimento é que esse chamou mais atenção que o comum. O New York Times publicou a história na primeira página em 21 de Setembro de 2011. No dia seguinte o Banco Mundial prometeu uma investigação.

O que é mais revelador sobre esse episódio foi o que aconteceu em seguida: nada. O Banco Mundial nunca investigou suas próprias ações no financiamento do projeto. Agora, depois do quarto aniversário da tragédia de Mubende, o que aconteceu já foi esquecido por quase todos, exceto por suas vítimas.

A triste negligência com os direitos dos pobres em Mubende decorre das ideias por trás da guerra global contra a pobreza. Aqueles que trabalham com desenvolvimento preferem se focar em soluções técnicas para os problemas do pobre, como projetos de silvicultura, fontes de água potável e suplementos nutricionais. Especialistas em desenvolvimento aconselham líderes – que eles acreditam ser ditadores benevolentes – a implementar essas soluções técnicas. Os profissionais dessa comunidade internacional disseminam a ilusão de que a pobreza é um problema puramente técnico, distraindo a atenção da sua verdadeira causa: o poder sem limites do Estado contra gente pobre desprovida de direitos. Os ditadores que são aconselhados por esses especialistas não são a solução – eles são o problema.

Os direitos políticos e econômicos cruciais pro desenvolvimento incluem todos aqueles que nós temos como garantidos aqui, como o direito à propriedade, o direito de comercializar com quem você quiser, o direito de protestar contra más ações do governo (não queime nossas casas!), e o direito de votar por políticos que promovam ações benéficas (limpe nossa água!). Especialistas em desenvolvimento às vezes aceitam alguns direitos e negam outros, o que desrespeita direitos pelo que eles são: inalienáveis. O episódio em Uganda mostra a falta de direitos econômicos (direito sobre sua propriedade) e direitos políticos (impedidos de protestar por força de armas) dos fazendeiros de Mubende.

A tirania dos especialistas que negligenciam direitos é, antes de tudo, uma tragédia moral. Reflete um duplo padrão, no qual respeitamos os direitos dos ricos – é cabível imaginar que esqueceríamos esses fazendeiros se eles fossem de Ohio? – mas não dos pobres.

A abordagem tecnocrática de ditadores aconselhados por especialistas é também uma tragédia pragmática porque, no fim das contas, não funciona pra acabar com a pobreza. Novas pesquisas realizadas por economistas sobre experiências passadas e presentes sugerem que indivíduos livres com direitos políticos e econômicos são capazes de elaborar sistemas para solução de problemas de maneira extremamente eficaz. Esses sistemas baseados em direitos recompensam as pessoas de forma descentralizada: empreendedores econômicos com direitos de propriedade são recompensados ao resolver os problemas de seus consumidores. Empreendedores políticos em diversos níveis de governo são recompensados com mais mandatos se forem capazes de solucionar o problema dos cidadãos ou são retirados de suas posições caso não sejam.

Por outro lado, o ditador de Uganda Yoweri Museveni (um dos preferidos dos especialistas em desenvolvimento) utiliza repressão e patrimonialismo – financiado, por exemplo, com a venda das fazendas de Mubende – para se perpetuar no poder, apesar de prejudicar seu povo.

Focar em direitos proporciona duas perspectivas sobre como o desenvolvimento bem sucedido ocorre. Primeiro, sociedades que desfrutaram de liberdade individual escaparam da pobreza. Economistas vasculharam profundamente nossa própria história para confirmar essa amplamente aceita versão sobre nossa trajetória de desenvolvimento, mas parece que hesitamos em reconhecer que a mesma receita também pode funcionar no resto do mundo. Segundo, sociedades que experimentam uma mudança positiva em sua liberdade provavelmente também irão experimentar uma mudança positiva em sua prosperidade (quer dizer, rápido crescimento econômico e redução da pobreza). Apesar da indiferença ou até da hostilidade de especialistas em desenvolvimento, a liberdade ainda assim está se espalhando em outros lugares além do Ocidente.

A vida de um camponês coreano nascido em 1915, Chung Ju-yung, ilustra o que pode acontecer com mais liberdade. Chung nasceu em uma sociedade que havia recentemente abolido um sistema rígido de castas que incluía escravos e “párias”, uma sociedade na qual ele certamente não teria nenhum futuro. Uma declaração da independência coreana de 1919 dizia: “ao proteger nosso direito individual à liberdade nossa alegria será plena”. O regime colonial japonês ocupando a Coreia na época era muito menos entusiasmado com a ideia de direitos individuais, matando 7 mil pessoas que se manifestaram por independência e aprisionando outras 46 mil. No vilarejo Cheamni, perto de Suwon, os japoneses conduziram os aldeões pra dentro da igreja local, trancaram as portas e incendiaram o prédio.

Chung e outros coreanos iriam desfrutar de mais liberdade após a retirada do Japão em 1945, depois da Segunda Guerra. Em um primeiro momento, no entanto, os governantes pós-independência da Coreia impuseram controles extensivos nos direitos econômicos dos coreanos, como a limitação do comércio com o exterior, enquanto confiscavam a maior parte do seu trabalho. Mas então Chung testemunhou os governantes coreanos cederem cada vez mais e mais liberdade econômica a partir da década de 60. Chung também viveu pra ver o triunfo dos direitos políticos, depois que estudantes e outros ativistas protestaram e forçaram os autocratas a cederem espaço pra democracia, da qual a Coreia do Sul tem usufruído por 25 anos (A Coréia do Sul é frequentemente descaracterizada como um milagre de crescimento ditatorial, uma conclusão que falha em reconhecer a teoria que relaciona mudanças em liberdade com mudanças em prosperidade. A relação que ocorreu na Coreia do Sul é entre uma prosperidade ascendente e o poder decadente acompanhado do desaparecimento da ditadura).

Chung Ju-yung aproveitou a oportunidade proporcionada por essa nova liberdade pra abandonar a terra infértil de seu vilarejo natal e estabelecer uma oficina mecânica em Seoul, recuperando veículos descartados pelas forças de ocupação americanas.  Quando a Ford chegou na Coréia do Sul em 1960, procurando terceirizar sua produção através de manufaturas coreanas que pudessem fornecer trabalho barato pra montar os carros Ford, Chung já estava pronto pra eles. A Ford colaborou com Chung quando ele quis evoluir além da montagem de modelos Ford pra produzir seus próprios carros coreanos, sem temer um homem e um país que nem sequer tinham visto um carro até a Segunda Guerra Mundial. Ford acordou tarde demais pra ameaça competitiva da companhia fundada por Chung, a qual ele batizou com o termo em coreano que significa “moderno”: Hyundai. Sul coreanos escolheram os carros pequenos e baratos de Chung pra atender às suas necessidades de transporte. Depois de algum tempo, consumidores no resto do mundo acabaram se entusiasmando também pelos carros da Hyundai, impulsionando a renda dos trabalhadores coreanos. Hoje, o Sonata ganha prêmios por sua qualidade no mercado americano, a Hyundai é a quarta maior companhia automobilística do mundo e Chung é apenas um dos diversos solucionadores de problemas – empreendedores individuais, comerciantes, imitadores de tecnologias e ativistas políticos – que erradicaram a pobreza na Coreia do Sul.

Então o que devemos fazer sobre os direitos dos pobres? Um dos primeiros passos para a mudança de política dos países ocidentais é não financiar ditadores, não financiar projetos que incendeiam fazendas, não quebrar promessas de investigar violações de direitos e não nos deixar esquecer desses abusos e da ausência de investigações.

Mas ficar obcecado demais com a pergunta “o que devemos fazer?” não deve ser uma desculpa pra entregar novamente a responsabilidade para os mesmos especialistas técnicos que demonstraram tão pouco interesse nos direitos dos pobres em primeiro lugar. O perigo da tirania dos especialistas é ilustrada por uma longa história de políticos usando debates técnicos sobre a pobreza como uma desculpa para evitar lidar com a questão dos direitos dos pobres.

A concentração em estratégias especializadas para o desenvolvimento se mostrou extremamente útil pra evitar o direito de populações pobres de países em desenvolvimento por quase um século. Em 1919, nas conferências do Tratado de Versalhes após a Primeira Guerra Mundial, o presidente Woodrow Wilson justificou a transferência de colônias africanas da Alemanha para a Inglaterra como uma espécie de “custódia” das “partes miseráveis do mundo” que seriam “administradas em benefício de seus habitantes […] durante o seu período de desenvolvimento”. Todo projeto seria conduzido por especialistas, o que o presidente graduado em Princeton chamava de “o conselho da humanidade”. A ideia do desenvolvimento engendrado por especialistas foi uma distração oportunista da realidade política da África, com o despotismo colonial sendo exercido no interesse dos colonizadores.

Em 1925, tensões se inflamaram entre colonos brancos e a população nativa que estava sendo expropriada na colônia britânica do Quênia. Inspirados pela abordagem tecnicista do desenvolvimento exposta em Versalhes, a resposta dos burocratas colonos a essas tensões foi sugerir a elaboração de um relatório sobre a África britânica que seria “um estudo desapaixonado dos fatos” – evitando o verdadeiro problema, que eram os colonos violando os direitos da população africana nativa.

O “estudo desapaixonado” só ficou completo 13 anos mais tarde. Um burocrata colono chamado Lord Hailey chamou um grupo de especialistas técnicos em diversos campos pra produzir um relatório de 1837 páginas, publicado em 1938 com o título “An African Survey”. Esses especialistas fizeram diversas recomendações técnicas bastante precisas. Surpreendentemente, várias dessas recomendações – por exemplo, utilização de legumes fixadores de nitrogênio pra fertilidade do solo – são idênticos àquelas feitas pelos especialistas das Nações Unidas e da Fundação Gates hoje em dia.

O mesmo burocrata, Lord Hailey, tomou ainda outra medida pra usar o desenvolvimento tecnicista como método para evadir do debate sobre direitos da população no Império Britânico durante a Segunda Guerra Mundial. Lord Hailey retorquiu aqueles – incluindo alguns comentaristas americanos – que queriam um fim pro Império depois da guerra, justificando a perpetuação do Império como um agente para o “melhoramento da população subdesenvolvida do mundo”. Ele convenientemente assumiu que africanos perceberiam que  “liberdades políticas” são “irrelevantes se não puderem repousar sobre as fundações […] do progresso econômico”. Novamente, desenvolvimento técnico engendrado por um Estado com poderes irrestritos era uma desculpa pra postergar indefinidamente considerações sobre direitos humanos.

Ironicamente, essas ideias sobre desenvolvimento sobreviveram ao Império Britânico que elas buscavam justificar. O Império entrou em colapso mais cedo do que era previsto, no final da década de 50 e começo da década de 60. Mesmo assim, a mesma negligência tecnocrática de direitos fundamentais surtiu apelo para os ditadores africanos que assumiram o poder depois que o governo colono partiu. Os mesmos economistas do desenvolvimento que costumavam aconselhar o Ministério das Colônias agora aconselhavam os novos ditadores (o ganhador do prêmio Nobel, Sir Arthur Lewis, por exemplo, fez as duas coisas, trabalhando com Kwame Nkrumah em Gana depois que o país se tornou independente em 1957). Da mesma forma que autocratas costumavam apelar pro direito divino dos reis, agora utilizavam os especialistas pra articular sobre o direito ao desenvolvimento dos ditadores.

Negligenciar o direito dos cidadãos africanos também apelava para os especialistas em política externa americanos, que buscavam alianças com esses mesmos ditadores durante a Guerra Fria, consolidadas por empréstimos de uma nova organização fundada após Segunda Guerra Mundial e com o quadro repleto de especialistas tecnocratas: o Banco Mundial. Décadas de estagnação econômica na África vieram em seguida.

Hoje ainda existe uma relação tecnocrática forte entre os Estados Unidos e ditadores aliados na África e em outros continentes, dessa vez engajados na “guerra ao terror”, também financiada por empréstimos do Banco Mundial. O “Comando África” do exército americano vê o governo de Museveni na Uganda como “um aliado estratégico chave dos Estados Unidos”, provendo tropas pra perseguir terroristas na Somália, por exemplo. A visão tecnocrática tornou possível que Hillary Clinton, enquanto atuava como Secretária de Estado, declarasse que “defesa” (dos Estados Unidos) e “desenvolvimento” (do resto do mundo) se “reforçavam mutuamente”, permitindo assim uma grande aliança pelo desenvolvimento entre interesses humanitários e interesses de segurança nacional.

Infelizmente, é esse mesmo alinhamento político que permite que o Banco Mundial se isente da sua responsabilidade na violação de direitos humanos em Mubende, Uganda, sem sequer uma investigação. Essa mesma política também ajuda a explicar o fracasso da comunidade científica em torno do desenvolvimento em protestar sobre os crimes ligados ao Banco Mundial e sobre a ausência de investigações sobre esses crimes.

Por causa dessa longa história, o debate entre uma corrente de desenvolvimento autoritária e uma corrente de desenvolvimento livre acabou nunca acontecendo. Por isso a escolha que o desenvolvimento fez um longo tempo atrás de aderir à tirania dos especialistas em detrimento dos direitos dos pobres infelizmente continua até hoje.

Ainda existem muitas pessoas com compaixão nos países ocidentais que possuem todas as boas intenções ao perguntar “o que devemos fazer?

E a resposta é deixar que o debate entre o desenvolvimento autoritário e o desenvolvimentismo livre aconteça.

Está na hora de acabar de uma vez com a tirania dos especialistas. Está na hora de acabar com o silêncio sobre a desigualdade entre os direitos dos povos desenvolvidos e subdesenvolvidos. Está na hora de todos os povos serem igualmente livres.

(Este artigo é um excerto do livro The Tyranny of Experts: Economists, Dictators, and the Forgotten Rights of the Poor, publicado em março de 2014.)