Por que uma lei objetiva requer a anarquia

Why Objective Law Requires Anarchy · Tradução de Giácomo de Pellegrini
· 22 minutos de leitura

Não vejo nenhum padrão ético pelo qual medir toda a concepção antiética de um Estado, exceto na quantidade de tempo, de pensamento, de dinheiro, de esforço e de obediência, que uma sociedade extorque de cada um de seus membros. Seu valor e sua civilização estão em proporção inversa a esta extorsão […]

Ayn Rand

Enquanto todos os libertários concordam sobre a necessidade de uma redução drástica no tamanho e poder do Estado, faz tempo que o movimento libertário foi dividido entre os anarquistas, que acreditam que o Estado deve ser abandonado completamente, e os minarquistas, que desejam reduzi-lo a poucas funções consideradas essenciais. Esta disputa também se passa no âmbito da Free Nation Foundation, cuja associação (incluindo o próprio Conselho de Administração) está dividida sobre a questão do anarquismo (também conhecido como anarcocapitalismo, ou anarquismo de mercado) versus o minarquismo (também conhecido como governo limitado). Saúdo a contribuição de Adrian Hinton como uma oportunidade para avançar nesta discussão.1

O que é uma lei objetiva?

Para Hinton, o principal defeito do anarquismo é a sua incompatibilidade (como ele vê) com uma lei objetiva. Infelizmente, Hinton não define a noção de lei objetiva, mas nos dá algumas pistas. Ele contrasta a lei objetiva com um sistema em que “vale tudo”; em que os indivíduos ou grupos podem agir em conformidade com regras que elas simplesmente inventam, sem ter nenhuma necessidade de dar uma justificativa racional.

Percebi, então, que uma lei objetiva é confiável e baseada em princípios. Sob um sistema de leis objetivas, requisitos legais não irão simplesmente surgir ou desaparecer com os caprichos dos legisladores ou pelo deslocamento de fortunas advindas de grupos de pressão. Há alguma previsibilidade para a lei, no que diz respeito ao conteúdo e à execução; uma previsibilidade em que se pode contar. E a razão para isto é que os requisitos da lei objetiva baseiam-se em razões que são acessíveis e justificáveis para mentes humanas racionais em geral, independentemente de idiossincrasias e preconceitos emocionais pessoais.

Se isto é o que significa uma lei objetiva, então eu concordo que uma lei objetiva é uma coisa boa. Mas é verdade que a lei objetiva pode ser fornecida apenas por um monopólio estatal?

Uma lei objetiva exige concorrência

Considere o caso paralelo da ciência objetiva. Objetividade é uma coisa boa para a ciência também; mas como podemos alcançá-la? Nós não vamos supor que a maneira de obter ciência objetiva é colocar toda a pesquisa científica nas mãos de um único monopólio estatal; pelo contrário, reconhecemos que é somente através da concorrência entre teorias científicas e programas de investigação científica que a objetividade científica é possível. Como John Stuart Mill argumentou em On Liberty, aprendemos o valor de nossas ideias, vendo o quão bem elas podem suportar um desafio, seja na forma de argumentos intelectuais ou sob a forma de experiências alternativas em ação. Uma visão que é isolada da crítica é bem menos fundamentada, uma vez que não podemos dizer se ela teria sobrevivido caso a crítica tivesse sido permitida. Nada seria mais mortal a objetividade científica do que o controle monopolista.

E como os economistas austríacos, Ludwig von Mises e Friedrich A. Hayek mostraram, este argumento se aplica ao mercado de bens e serviços, tanto quanto para o mercado de ideias; a concorrência é um processo de descoberta, uma importante fonte de informação, mas uma na qual os dados se tornam progressivamente menos confiáveis assim que estão sob a direção e o controle de um Estado centralizado. Se isto é verdade para ideias, bens e serviços, por que não seria para uma lei também?

Lei sem Estado

Hinton diz que “anarquia certamente significaria na prática […] ter nenhum governo.” Se por “governo” Hinton que dizer o Estado, ou seja, uma agência detendo um monopólio (ou quase-monopólio; já que nenhuma instituição realizou um verdadeiro monopólio) sobre o uso da força dentro de um determinado território, então é trivialmente verdadeiro que anarquismo significa não ter nenhum governo. Anarquia é apenas a ausência de um governo.

Mas o fraseado de Hinton — dizendo que a ausência de governo é o que o anarquismo significaria “na prática” — leva-me a suspeitar que ele se refere a ausência de governo como resultado da anarquia, ao invés da mesma coisa com outro nome. Essa suspeita é confirmada pelo seu uso da frase de Ayn Rand “governos concorrentes” (uma frase que raramente é usada pelos próprios anarquistas) para descrever o sistema anarquista; Obviamente por “governos concorrentes”, Hinton não quis dizer Estados concorrentes. Meu palpite, então, é que por “governo” Hinton quer dizer algo como: uma instituição ou um conjunto de instituições que regem a atividade humana através da aplicação de regras. Em suma, por governo, ele quer dizer algo como a lei.

Mas será que Hinton realmente quis dizer que não haveria nenhuma lei, nenhum sistema jurídico, na ausência de um Estado centralizado (ou seja, um monopólio territorial)? Isso seria uma reivindicação extraordinária, já que pelas preponderantes e esmagadoras evidências históricas e antropológicas, verifica-se que a lei é muito mais antiga do que o Estado. Até recentemente, os Estados eram a exceção, não a norma, na sociedade humana; e as sociedades sem Estado desfrutaram bastante de sofisticados e duradouros códigos legais.

Claro, o fato de que sistemas jurídicos sem monitoração do Estado existem não demonstra que sejam particularmente bons. Evidentemente, nenhum desses sistemas jurídicos sem monitoração do Estado representa o ideal libertário. No entanto, isto serve também para nenhum Estado conhecido na história. Qual é melhor?

Pode-se pensar que um sistema de monopólio é melhor apenas em virtude dele ser mais confiável e previsível. Se uma agência é acusada de legislar e aplicar as regras de conduta em uma determinada área, pode-se esperar que essas regras serão razoavelmente uniformes; considerando que se muitas agências diferentes estão produzindo uma lei, uma agência tem pouco para contar.

Mas o registro histórico sugere o contrário. Por exemplo, a Lei Mercante — o sistema sem monitoramento do direito comercial do Estado que evoluiu durante o final da Idade Média e início da Renascença — foi capaz de competir com sucesso com os tribunais estatais precisamente porque oferecia um sistema mais confiável e uniforme do que seus concorrentes estatais. Não é difícil de encontrar a razão: um sistema fundado na competição e financiado voluntariamente precisa agradar seus clientes, enquanto um monopólio estatal, que proíbe a concorrência e extrai suas receitas pela força, não enfrenta tal incentivo. (Para oferecer uma analogia contemporânea: a razão pela qual nenhuma empresa oferece cartões de crédito triangulares não é porque a forma de cartão é regulada pelo Estado, mas porque os clientes não iriam comprar um cartão que não coubesse em máquinas do padrão ATM. Padronização surge por causa da pressão do mercado, não no cano de uma arma estatal).

Hinton mantém que sob o anarquismo, cada indivíduo “teria que ou carregar uma arma em todos os momentos, ou então se juntar a uma milícia privada composta por tais pessoas. Em outras palavras, os EUA ficariam um pouco como o Velho Oeste.” Para começar, isso pode não ser tão ruim; contrariando o estereótipo de Hollywood de ilegalidade e violentos tiroteios, a realidade da vida na fronteira, os historiadores de hoje estão descobrindo, foi relativamente pacífica e civilizada — certamente muito mais do que nos EUA de hoje. Uma sociedade anarquista poderia fazer pior do que imitar o chamado “Oeste Selvagem”.

Deixando isso de lado, no entanto, por que se deve assumir que as opções que Hinton descreve são as únicas? Se os sapatos não são fornecidos por uma agência estatal centralizada, nós não inferimos que todo mundo terá de se tornar seu próprio sapateiro ou então juntar-se numa comuna que fabrica sapatos. Em vez disso, prevemos uma divisão do trabalho: algumas pessoas se especializarão na fabricação de sapatos, que outras pessoas irão comprar delas. Por que não esperar um desenvolvimento semelhante no mercado de leis?

Talvez Hinton supõe que uma sociedade anarquista não poderia proporcionar uma divisão de trabalho na produção da lei, porque a aplicação da lei, normalmente, requer o uso de força física, e se apenas alguns membros da sociedade estão se especializando no uso de força física, então todos os outros na sociedade ficarão à mercê. Mas se esta é uma objeção à anarquia, por que não é uma objeção ainda mais forte para o Estado, já que o Estado, ao contrário de uma agência de segurança sob a anarquia, está desprovido de quaisquer rivais, logo, está numa posição ainda melhor para abusar do seu poder?

O governo limitado é uma alternativa genuína?

Hinton vislumbra uma utopia minarquista em que as ações estatais estão “rigidamente definidas, delimitadas e circunscritas,” enquanto o próprio governo é “como um robô impessoal”, operando livre de qualquer “toque de arbitrariedade e capricho”. Isso parece bom, mas, afinal, o Estado é uma instituição de natureza definitiva, e as ações esperadas disso são determinadas pela sua natureza e não pelos nossos desejos e fantasias. Então a verdadeira questão é se é realista esperar este tipo de operação automática e imparcial de um monopólio centralizado.

Mas certamente o veredito da escola econômica Escolha Pública é negativo. O Estado é uma instituição humana, povoado por indivíduos que respondem a incentivos. E, como Madison e Hamilton apontaram em The Federalist, na nossa escolha de instituições políticas não podemos supor que aqueles que colocamos no comando podem ser considerados como sensatos e justos. O poder corrompe, porque atrai o corruptível. E o sistema de incentivos de um monopólio estatal é verdadeiramente perverso. Imagine um burocrata que controla um milhão de dólares em dinheiro de imposto. Qual seria a motivação dele para gastar essa quantia? Em um mercado competitivo, ele estaria motivado a gastá-lo na forma que satisfaça seus clientes (no caso, os contribuintes), mas nessa situação os clientes não têm outra opção. (Se ele for eleito, talvez os clientes terão a chance de votar contra ele, em poucos anos, mas a eleição, com seu caráter de tudo ou nada, é um mecanismo um pouco menos eficaz para a expressão de preferências do que o mercado). Mas se o burocrata ofereceu favores ou subornos para grupos de interesses especiais, então ele tem um incentivo para desviar dinheiro para essa causa; afinal, não é o dinheiro dele, então não tem nada a perder.

Hinton pode replicar que tais problemas devem ser resolvidos por uma estrutura constitucional, incorporando um sistema de freios e contrapesos. Eu concordo. Mas vejo o anarquismo como a conclusão lógica da abordagem de freios e contrapesos. O objetivo de freios e contrapesos é travar a tendência das instituições políticas de agigantar o poder, organizando uma parte do sistema como uma trava (um freio) de poder que provocará oposição a outras partes do sistema. Esta era a ideia por trás da Constituição dos EUA, com sua divisão de poderes e com o Federalismo. Infelizmente, ela falhou, com as peças supostamente antagônicas aprendendo os benefícios de trabalhar em conjunto para oprimir o povo. De uma perspectiva anarquista, o problema com a versão do minarquismo de freios e contrapesos é que não funciona depois de um tempo; as partes opostas são muito poucas em número e também intimamente ligadas entre si em uma única instituição centralizada.

Uma vez me opus ao anarquismo precisamente porque estava tão convencido (em grande parte como resultado da leitura de The God of the Machine de Isabel Paterson) da importância da estrutura constitucional. Eu assumi (como Paterson também) que não há nenhuma estrutura constitucional sob a anarquia. Mas me parece agora que a verdade é precisamente o contrário: o mercado competitivo fornece uma estrutura constitucional muito mais sofisticada e complexa do que qualquer monopólio estatal.

Hinton, preocupa-se que num sistema anarquista, tribunais privados “poderiam livremente dispensar tais sutilezas como procedimentos ou regras de evidência”. Sim, poderiam. Assim como os tribunais estatais (como de fato fazem muitas vezes). Desde que os seres humanos possuam livre arbítrio, nada pode garantir que agirão como deveriam. A questão fundamental é esta: sob qual sistema — mercado competitivo ou monopólio estatal — o abuso de poder é mais provável?

Mas o problema não é somente por causa de motivações solitárias maldosas. Mesmo um Estado governado por santos enfrentaria um problema informacional. Assim como o planejador central mais bem-intencionado é incapaz de tomar decisões objetivas sobre produção econômica, consumo e distribuição, pois a informação gerada pela ordem espontânea do mercado está inacessível a ele, sem o processo competitivo e evolutivo através do qual a lei se originou e se desenvolveu antes do Estado, uma legislatura centralizada seria incapaz de tomar decisões objetivas sobre quais regras jurídicas e procedimentos funcionariam melhor.

Resistência é feudal

A história da Europa oferece um exemplo instrutivo. No início da Idade das Trevas, o Império Romano entrou em colapso no Ocidente, enquanto ainda sobrevivia no Oriente na forma do Império Bizantino. Para os próximos mil anos, a Europa estava dividida entre essas duas regiões. Um observador no início deste período provavelmente preveria que o Oriente, não o Ocidente, seria o mais bem sucedido. Afinal, o Oriente retinha muito da aprendizagem clássica que tinha sido perdida no Ocidente; Além disso, a instituição do Direito Romano estava sendo mantida no Oriente, enquanto o Ocidente se tornara politicamente fragmentado e descentralizado. Mas foi precisamente por causa disso que o próximo passo em frente à civilização foi dado pelo Ocidente e não pelo Oriente. No Oriente, o Estado foi se tornando mais poderoso, mais centralizado, mais burocrático e mais opressivo. Rival algum a sua autoridade era permitido; até a Igreja foi absorvida por ele. Ineficiente, estagnado, ossificado, o Império Bizantino tornou-se uma estrutura frágil incapaz de suportar o constante avanço das migrações turcas. Até mesmo a herança clássica do pensamento greco-romano não fez bem ao Oriente, quando o Imperador, com êxito, emitiu um édito para fechar as escolas de filosofia.

No Ocidente, em contrapartida, não havia nenhum monopólio político. O poder foi dividido entre reis, nobres, comunas livres e a Igreja. Uma decisão adversa no Tribunal Senhorial poderia ser objeto de recurso à Corte Real, ou ao Tribunal Mercante, ou ao Tribunal Eclesiástico e assim por diante. (Para obter detalhes, consulte o livro de Harold Berman, Law and Revolution). A concorrência criou um processo de tentativa e erro, através do qual os sistemas de common-law evoluíram, progrediram e se adaptaram às necessidades do tempo. E é por causa dos espaços de liberdade que foram abertos através deste sistema descentralizado e competitivo que o comércio e a cultura começaram a florescer novamente no Ocidente. (Em contrapartida, no Oriente, o Direito Romano — que originalmente continha elementos competitivos e evolutivos, como Bruno Leoni mostra em Freedom and the Law — tornou-se codificado e estático.)

Anarquia e Guerra de Gangues

Hinton oferece dois cenários como um desafio para o defensor do anarquismo de mercado. No primeiro cenário, Smith pede a sua agência de segurança A impor sanções legais por um alegado roubo de Jones e Jones pede a sua agência de segurança B para protegê-lo. Não deve tal situação inevitavelmente levar a conflitos violentos entre as agências de segurança?

Talvez, mas isto parece improvável. As agências de segurança não são Estados com uma garantia de fornecimento de receitas fiscais. Elas dependem de seus clientes e por isso são muito mais sensíveis às demandas do cliente. A guerra é um meio caro para resolver disputas, e até mesmo o cliente mais beligerante pode pensar duas vezes ao receber a sua fatura mensal. Agências de segurança que resolverem os seus conflitos pela força em vez de por meio de arbitragem terão que cobrar prêmios mais elevados e então perderão clientes para seus concorrentes.

Isto garante que um sistema competitivo de agências de segurança nunca irromperá numa guerra? Não, nada pode garantir isso. Tudo o que estou fazendo é uma comparação: as agências de segurança num ambiente de competição são muito menos prováveis em recorrer à força do que monopólios estatais.

O segundo cenário de Hinton diz respeito a uma manifestação de uma milícia punk-rock comunista armada com metralhadoras e cantando a Internacional (aquele padrão antigo punk-rock). Hinton pergunta qual a resposta, se existe uma, o anarquista consideraria como legítima.

A primeira coisa que o anarquista iria querer saber é quem é o dono da rua onde a demonstração está ocorrendo. Se os manifestantes não obtiveram permissão para estar lá, os proprietários tem o direito de chamar uma agência de segurança para retirar os invasores.

Mas talvez a demonstração esteja ocorrendo em propriedade pública. (Considero propriedade pública como um conceito legítimo, apesar de muitos anarquistas de mercado não acharem o mesmo). Nesse ponto, a questão é se os manifestantes estão violando os direitos de alguém. Certamente não pode haver nenhuma objeção libertária para o exercício do direito de portar armas, um direito aprovado tanto por minarquistas quanto por anarquistas. A questão é se os manifestantes ameaçam uma agressão. Se for, então é legítimo chamar as forças de segurança para contê-los — e mais uma vez, isto é assim tanto numa concepção anarquista quanto numa minarquista. A posição anarquista não é que “os punks comunistas devem ter a liberdade de fazer o que quer que sintam vontade”. Em vez disso, os anarquistas asseguram que os punks comunistas devem ter a liberdade de fazer tudo o que tenham vontade desde que não iniciem força — ao passo que os minarquistas desejam restringir não apenas o uso da força inicial, mas o uso da força defensiva e restitutiva também. Não vejo como estas restrições adicionais podem ser moralmente justificadas. E em termos práticos, garantir o monopólio a uma agência (o Estado) ao direito de usar formas de força defensiva e restitutiva e negar aos demais o mesmo direito é extremamente perigoso.

Nós abraçamos o debate.

Notas

Nota Bibliográfica

Para aqueles interessados em uma defesa mais detalhada do anarquismo de mercado, ou por um exame de exemplos históricos de sucesso de sistemas jurídicos sem monitoração do Estado, recomendo começar com as seguintes obras: “As Engrenagens da Liberdade” de David Friedman; The Enterprise of Law de Bruce Benson; “Direito, Legislação e Liberdade” de Friedrich Hayek (particularmente o Vol. 1); The Structure of Liberty de Randy Barnett; Uncle Sam, the Monopoly Man de William Wooldridge; “Por Uma Nova Liberdade” de Murray Rothbard; e For and Against the State de John Sanders e Jan Narveson.

  1. Este artigo foi escrito em resposta a The Importance of Objective Law: Why I support Limited Government por Adrian Hinton, nesta mesma edição de Formulations