Em 1888, um leitor do periódico anarquista individualista de Benjamin Tucker, Liberty, escreveu para contestar a defesa de Tucker da competição de livre mercado. “Competição, se significa algo, significa guerra”, argumentou W. T. Horn, “e, longe de tender a incrementar o crescimento da confiança mútua, leva, na verdade, à divisão e à hostilidade entre os homens”. Em resposta, Tucker argumentou que, pelo contrário, “[q]uando universal e irrestrita, competição significa a mais perfeita paz e a mais verdadeira cooperação; porque então se torna simplesmente um teste de forças que resulta na utilização mais vantajosa possível dessas”1.
A questão do vínculo entre guerra e competição econômica é muito antiga. Uma das mais justamente famosas passagens do poeta grego Hesíodo – e de interesse especial aos libertários – é sua discussão das “duas Discórdias”.
Primeiro, algum pano de fundo. Discórdia, ou Conflito, personificados como a deusa Éris, são importantes figuras da mitologia grega. Ela é geralmente associada ao deus da guerra, Ares, como sua irmã, sua amante ou ambas; algumas fontes, incluindo Homero, equivalem-na à deusa da guerra Enyo, mas outras distinguem entre as duas.
De acordo com a tradição mitológica da Grécia, Éris foi responsável por toda a Guerra de Troia, ao incitar uma disputa entre as mais importantes deusas do Olimpo sobre quem dentre elas merecia um pomo dourado com a inscrição “para a mais bela” – uma contenda cuja decisão tomada por Páris em favor de Afrodite levou essa deusa a presenteá-lo com a mais bela das mulheres, Helena, sem ao menos consultar seu marido.
Em outra história antiga2, um casal humano, Aédona (Aëdon) e Politecno (Polytekhnos), é punido por Éris por ter se gabado de que seu amor mútuo era maior que o dos deuses; Éris atrai o casal para uma competição de artesanato, a qual Politecno perde, levando o marido ressentido a se vingar contra sua esposa Aédona ao estuprar e escravizar sua irmã, o que, por sua vez, incita Aédona a se vingar de Politecno matando seu filho, cozinhando-o e dando-o de comer ao pai – dessa forma estabelecendo que o amor do casal era, de fato, um pouco mais frágil do que eles haviam proclamado.
Em suma, Éris não é coisa boa.
Essa deusa da Discórdia figura nos épicos homéricos como se segue (o tradutor apresenta “Éris” como “Ódio”):
Ódio, cuja ira é implacável,
ela, a irmã e companheira do assassino Ares,
ela, que é apenas uma pequena coisa a princípio, mas daí em diante
cresce até que pise sobre a terra com a fronte a rasgar os céus.
Ela então lançava amargor igualmente aos dois lados
enquanto caminhava entre o massacre, tornando a dor dos homens ainda mais pesada.3
Perceba como Discórdia é aqui retratada tanto de forma metafórica – começando como algo pequeno mas depois crescendo, como um conflito literal –, quanto de forma antropomórfica, como um guerreiro armado abrindo caminho pelo campo de batalha. A metáfora de Homero aparece em uma das fábulas de Esopo também4: o herói andarilho Héracles (Hércules) encontra um pequeno objeto em seu caminho e, sendo quem é, tenta esmagá-lo com sua clava, só para descobrir que cresce com cada golpe – até que a deusa Atena intervém e o aconselha de que, sem saber, ele combate Discórdia, ou Éris, que só se alimenta da oposição5.
Éris também aparece na Teogonia de Hesíodo, que contém uma genealogia dos deuses. O poeta descreve Éris (traduzida aqui como “Discórdia”) como a fonte da maioria das misérias da vida humana:
E ela, Noite destrutiva, deu à luz Nêmese, que dá imensa dor
aos mortais; e depois a fraudulenta Enganação e a amorosa Afeição
e a maligna Velhice e a arrogante Discórdia.
A odiosa Discórdia, por sua vez, deu à luz a dolorosa Dificuldade,
e o Esquecimento, e a Fome, e as Dores, cheias de lamentos,
as Batalhas e as Querelas, os Assassinatos e os Massacres,
as Aflições, as mentirosas Histórias, as Disputas,
a Ilegalidade e a Ruína, que dividem uma mesma natureza,
e o Juramento, que causa mais dano do que qualquer outro aos
homens terrenos, quando alguém, em consciência, comete perjúrio.6
Porém, em “Os Trabalhos e os Dias” (presumivelmente escrito após Teogonia), Hesíodo provê uma espécie de retratação. A deusa que ele descreveu na verdade são duas deusas diferentes; e enquanto uma delas é tão danosa quanto ele disse anteriormente, a outra é benéfica:
Nunca foi verdade que só há um tipo de discórdia.
Sempre houve
duas na terra. Há uma de que se pode gostar quando se a entende.
A outra é detestável. As duas Discórdias têm naturezas separadas.
Há uma que incita a guerra má e o massacre.
Ela é impiedosa; ninguém a ama […]
Mas a outra é a primogênita da negra Noite. […]
e é muito mais doce.
Ela estimula o homem indolente ao trabalho, mesmo com toda sua preguiça.
Um homem olha para o seu vizinho, que é rico: então ele também
quer trabalhar […] Tal Discórdia é uma boa amiga para os mortais.
Dessa forma, oleiro é inimigo de oleiro, artesão é rival de artesão;
vagabundo tem inveja de vagabundo, e cantor, de cantor.7
Aqui, Hesíodo traça a distinção crucial entre os dois tipos de conflito: guerra, por um lado e, por outro, competição econômica. O tipo de rivalidade que leva ao derramamento de sangue é condenado; mas aquele que leva competidores a superar outros no provimento de bens e serviços é celebrado. O motor da boa Discórdia é o desejo por riqueza e benefícios materiais; longe de ser um motivo ignóbil, a ser comparado de maneira desfavorável com as glórias da honra militar, a ambição comercial com interesse próprio é aqui louvada como o incentivo do progresso.
De volta à Teogonia, antes que a boa Discórdia tivesse sido identificada, Hesíodo descrevera a Discórdia má como filha da Noite. Contudo, em “Os Trabalhos e os Dias”, o poeta informa que a boa Discórdia é a filha mais velha da Noite, o que implica ser a má Discórdia sua irmã mais nova. A sugestão é, talvez, de que a boa Discórdia é a original e saudável forma de conflito, e a Discórdia má uma perversão mais recente dela – um tema que se encaixa na narrativa de Hesíodo de um declínio gradual da civilização humana de uma Era de Ouro de paz e prosperidade rumo a uma Era do Ferro cruel e selvagem, na qual ele lamenta ter nascido.8
A oposição que o poeta cria entre competição econômica e conflito violento não é geralmente feita por outros que escreveram sobre Éris. Na já mencionada história de Aédona e Politecno, por exemplo, o conflito inspirado por essa deusa entre os dois amantes começou com uma competição de trabalho produtivo antes de degringolar em uma vendeta brutal; a escalada é apresentada como uma mudança em grau, não em tipo. O reconhecimento de uma diferença essencial entre a Discórdia que se expressa em derramamento de sangue e a Discórdia que se expressa no desejo de prover os melhores bens e serviços é um traço distintivo da obra de Hesíodo.
Como outrora vimos, Homero também contrastou os caminhos da guerra e da paz; mas ele não destacara o papel da competição econômica no último. A única disputa que Homero descreve em sua “cidade da paz”, a alternativa pacífica à guerra, é um processo legal9 – forma de rivalidade sobre a qual Hesíodo é muito mais pessimista, descrevendo as cortes como arenas não da boa Éris, mas da má, “a Discórdia que ama a confusão”, nas quais os participantes “fazem planos para ter os bens dos outros”, enquanto os juízes “se alimentam de subornos”10. A ligação entre a competição do mercado e a prosperidade serena parece ser uma inovação de Hesíodo – o que o faz um importante precursor das ideias libertárias.
Benjamin Tucker, “Does Competition Mean War?” em Instead Of A Book, By A Man Too Busy To Write One. Originalmente publicado em Liberty, 4 de Agosto de 1888. ↩
Antoninus Liberalis, Metamorphoses 11. ↩
Homer, Iliad 4.440-445; Richmond Lattimore translation (Chicago: University of Chicago Press, 1951). ↩
”Heracles and Athena,” Aesop’s Fables, trans. Laura Gibbs ↩
Esse tema de um guerreiro famoso por sua força sendo incapaz de derrotar um inimigo aparentemente insignificante que na verdade se mostra como a personificação de uma vasta força cósmica também é encontrado na mitologia nórdica, na história da visita de Thor a Utgard, onde seus oponentes disfarçados incluem o Mar, o Fogo e a Velhice: The Younger Edda: Also called Snorre’s Edda, or The Prose Edda trans. Rasmus B. Anderson, Chapter 14: “Thor’s Adventures.” ↩
Hesiod, Theogony 223-232; Richmond Lattimore, trans., Hesiod: The Works and Days; Theogony; The Shield of Herakles (Ann Arbor: University of Chicago Press, 1959). ↩
Hesiod, Works and Days 11-26. ↩
Works and Days 109-201. ↩
Iliad 18. 497-508. ↩
Works and Days 27-39; cf. 256-264. ↩