O legado da Grécia Antiga para a liberdade: Um conto de dois irmãos

Ancient Greece's Legacy for Liberty: A Tale of Two Brothers · Tradução de Gabriel Goes
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Em seu ensaio de 1908, O Estado, o sociólogo alemão Franz Oppenheimer criou a distinção famosa entre “dois meios fundamentalmente opostos através dos quais o homem, ao precisar de sustento, é impelido a obter o necessário para satisfazer seus desejos” – quais sejam, “o próprio trabalho e a troca equivalente desse pelo de outros”, que ele chamava de “meios econômicos”, e a “apropriação forçada do trabalho de outros”, que ele rotulava como “meios políticos”. Oppenheimer, dessa forma, definia o Estado, dada sua dependência na taxação, como “a organização dos meios políticos”, tendo como essência “a exploração do trabalho humano”1.

O escritor da Grécia Antiga mais associado com a defesa dos meios econômicos e a condenação dos meios políticos é Hesíodo.

Hesíodo e Homero são, por reputação, os fundadores gêmeos da poesia épica grega. A tradição os tem como contemporâneos e rivais; um relato tardio (século II d.C., mas talvez com base em material mais antigo) dá conta até mesmo de uma disputa pública em que Hesíodo vencera Homero, com a declaração do juiz de que “é o certo que aquele que conclamava os homens a perseguir a paz e a agricultura deva levar o prêmio, ao invés daquele que se debruçava sobre a guerra e o massacre”2. No entanto, embora os poemas de Hesíodo pareçam datar dos séculos VII ou VIII a.C. – e, portanto, de por volta de quando o corpus homérico supostamente atingiu algo próximo da forma atual –, de fato não há evidência definitiva de que algum dos dois autores estivesse ciente da existência do outro (ainda que houvesse um indivíduo “Homero” ou um indivíduo “Hesíodo”).

Enquanto os poemas de Homero não contêm autorreferências autorais, os de Hesíodo identificam seu autor – com precisão desconhecida – por nome, profissão e localização geográfica como um fazendeiro na região do Monte Hélicon no centro da Grécia, local que ele descreve como “sagrado” em uma obra e como “ruim no inverno, cansativo no verão e bom em estação alguma” em outra.3 Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, um poema de conselhos para ter sucesso na agricultura, direcionado ao seu irmão aparentemente irresponsável Perses, resume a experiência do poeta com a terra e, de forma mais ampla, com a vida.

Apesar de o tom arrogante, a moralização piedosa e a admoestação enfadonha muitas vezes direcionarem a simpatia do leitor para Perses, Os trabalhos e os dias oferece, em um espírito protolibertário, uma defesa constante dos meios econômicos contra os meios políticos. “[O]uça a justiça”, Hesíodo aconselha a Perses, “e deixe de lado todas as noções de violência”; pois “peixes e animais selvagens e os pássaros no céu” podem “se alimentar uns dos outros, já que não há ideia de justiça entre eles”, mas “aos homens [Zeus] deu justiça”, que é “a melhor coisa que eles têm”4. Hesíodo condena tanto o uso da força quanto a fraude: “[b]ens não devem ser apanhados”, seja pela “força das mãos”, seja pela “sagacidade da […] língua”5. Há um viés pessoal nessa recomendação; pelo relato de Hesíodo, muito de sua herança fora injustamente apropriado por Perses, que primeiro o obteve em um processo ao subornar os juízes6 e, depois, tendo desperdiçado quase a totalidade do dinheiro, foi implorar a Hesíodo por mais, e de fato recebeu ajuda por um tempo, até que Hesíodo perdeu a paciência.7

A maneira correta de se conseguir bens, Hesíodo diz a Perses, é, na verdade, através de trabalho produtivo:

A fome é a companheira mais constante do homem desocupado. […]

É do trabalho que os homens enriquecem e obtêm rebanhos e gado […]

O trabalho não é nenhuma desgraça; a desgraça é não trabalhar […]

[A] vergonha acompanha a pobreza, mas a confiança acompanha a prosperidade.8

Hesíodo enfatiza os benefícios materiais da produtividade e encoraja Perses a desenvolver hábitos de poupança e previdência: “formule uma maneira de pagar suas dívidas e escapar da fome”9. “Nem sempre será verão. Os celeiros têm que começar a ser construídos.”10

O poeta grego também urge a seu irmão cultivar a virtude da reciprocidade, já que ele terá dificuldade em conseguir assistência de outros se o próprio não quiser oferecê-la:

Tome em boa medida de seu vizinho, depois o pague justamente

na mesma medida, ou com ainda mais, se conseguir;

então, quando precisar dele em outro momento, encontrá-lo-á inabalável. […]

Damos ao homem generoso; ninguém dá àquele que é avarento.11

Enquanto Hesíodo defende o trabalho produtivo, seria enganoso dizer que ele o celebra. Na maioria das vezes, considera-o um mal necessário e olha com nostalgia para uma era de ouro em que “as raças dos homens” viviam “livres da atividade laboriosa”12. A perspectiva de tecnologia que economizasse trabalho o fascina: “os deuses esconderam […] o que poderia ser o sustento do homem”, através do que “facilmente em um dia poder-se-ia trabalhar o suficiente para se manter por um ano sem mais esforço”13. No entanto, em oposição à esperança cristã de um retorno final ao paraíso do qual a humanidade foi exilada, Hesíodo conclui taciturnamente que “[n]unca durante o dia haverá um fim para o trabalho duro e a dor, nem durante a noite para o cansaço”14. Contudo, ele talvez não seja plenamente consistente nisso, já que também argumenta como possibilidade vívida a perspectiva de uma comunidade dos “direitos e justos” que “fazem seu trabalho como se o trabalho lazer fosse”, enquanto a “terra rica em grãos provê-lhes sua colheita” e eles “prosperam do começo ao fim em boas coisas”15.

A crítica de Hesíodo ao uso da força e da fraude não é direcionada só a atores privados; ele também oferece denúncias espirituosas contra os governantes da sua época. Em contraste com Homero, que se foca na perspectiva de reis e nobres (mesmo que, como argumentei, nem sempre concorde com ela), Hesíodo apresenta o ponto de vista do homem comum, ao denunciar “barões que devoram subornos”16 e “governantes […] que, por propósitos gananciosos, retorcem sobremaneira as cortes de justiça”17, além de comparar aristocratas com aves de rapina, com suas vítimas indefesas “empaladas nos ganchos das garras”18.

Com efeito, em Hesíodo vemos os heróis dos épicos homéricos de um ponto de vista inferior, através dos olhos de um Térsites revivido e vindicado. Hesíodo, entretanto, não está ansioso para repetir o erro de Térsites de desafiar as autoridades diretamente – pois “[e]le é um tolo que tenta equivaler sua força com a dos mais fortes”19. Hesíodo aprendeu a lição do bastão de Odisseu nas costas de Térsites (mas, novamente, não é claro se Hesíodo conhecia a obra de Homero e a estava respondendo de forma direta).

A defesa de Hesíodo da produção e da troca contra a força e a fraude tem seus limites, contudo. Ele jamais tece objeções à legitimidade da escravidão, em vez disso dando como garantido que o fazendeiro ideal terá servos que, ao que tudo indica, serão escravos. A subordinação da mulher ao homem e a exploração do trabalho doméstico feminino ficam, da mesma forma, sem o devido questionamento. Deveras, uma forte suspeição em relação às mulheres – que “vivem com homens mortais e são para eles um grande desalento”20 – perpassa os maiores poemas do grego; ele aconselha, por exemplo:

Não deixe qualquer mulher de fala mansa seduzir seu bom senso

com os fascínios de suas formas. É o seu celeiro que ela quer.

Qualquer um que confie numa mulher confia em aduladores.21

E o mito de Pandora, que trata a criação da mulher como uma maldição enviada por Zeus para punir os homens, encontra seu testemunho mais antigo em Hesíodo.22 De maneira nada surpreendente, o poeta estava mais alerta a formas de opressão que ele e pessoas similares sofriam do que àquelas das quais ele e pessoas como ele se beneficiavam.

Notas

  1. The State, capítulo 2, seção “Political and Economic Means” 

  2. Of the Origin of Homer and Hesiod, and of Their Contest 

  3. Theogony 23, Works and Days 640; Richmond Lattimore, trans., Hesiod: The Works and Days; Theogony; The Shield of Herakles (Ann Arbor: University of Chicago Press, 1959). 

  4. Works and Days 275-280. 

  5. Works and Days 320-322. 

  6. Works and Days 30-39. 

  7. Works and Days 394-397. 

  8. Works and Days 303-319. 

  9. Works and Days 404. 

  10. Works and Days 503. 

  11. Works and Days 349-355; cf. 109-119. 

  12. Theogony 90-91. 

  13. Works and Days 42-44. 

  14. Works and Days 177-178. 

  15. Works and Days 231-237. 

  16. Works and Days 38-39. 

  17. Works and Days 261-262. 

  18. Works and Days 203-204. 

  19. Works and Days 210-215. 

  20. Theogony 591. 

  21. Works and Days 373-375. 

  22. Brevemente em Theogony 570-602, e em maior extensão em Works and Days 57-95.