O legado da Grécia Antiga para a liberdade: Serviços públicos em Atenas

Ancient Greece's Legacy for Liberty: Public Services in Athens · Tradução de Gabriel Goes
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Atenas, na antiguidade, como a maioria das comunidades políticas de então e de agora, financiava os serviços públicos por meio de uma combinação de impostos e trabalho forçado (que ia da conscrição militar para os “livres” à escravidão total para os não livres). Tais serviços incluíam financiamento para as artes; por exemplo, cidadãos ricos eram selecionados a cada ano pelo Estado para a “honra” de custear peças trágicas ou cômicas nos festivais públicos periódicos.

No entanto, muito do fardo da taxação ateniense repousava não sobre os cidadãos, mas sim sobre as chamadas cidades “aliadas”, no que começara na esteira das guerras greco-pérsicas como uma aliança defensiva entre iguais, a Liga de Delos, mas que subsequentemente evoluiu para um império naval liderado por Atenas.

Os meios pelos quais essa transformação ocorreu são informativos: membros da Liga inicialmente tinham a opção de contribuir com dinheiro ou navios de guerra para a aliança. A maioria das cidades achou mais conveniente dar dinheiro; os atenienses, em contraste, fizeram questão, de forma engenhosa, de contribuir com navios, além de mover a tesouraria de Delos (o quartel-general original da Liga, daí o nome) para Atenas, como medida de “proteção”. Em consequência, os aliados logo descobriram que a frota da Liga consistia, sobretudo, de navios atenienses sob comando ateniense e que suas próprias contribuições financeiras passaram a ser meros tributos pagos para a hegemônica Atenas.

Ainda assim, um número surpreendentemente alto do que hoje consideramos “serviços públicos” era fornecido por meios voluntários e privados, ao invés de por força governamental. Ademais, isso é verdade, em larga medida, para precisamente aqueles serviços para os quais boa parte dos liberais considera o monopólio estatal essencial: isso é, polícia e justiça.

À parte de um séquito de escravos públicos encarregados de manter a ordem em reuniões comunitárias (e, caso fosse preciso, recolher pessoas no mercado para garantir o quórum na Assembleia), Atenas não possuía força policial (o mesmo é verdade para muitas sociedades antigas, incluindo a República de Roma – mas não o Império Romano). Investigar crimes era uma tarefa deixada para cidadãos privados, assim como o trabalho de assegurar que um réu fosse ao seu julgamento. Dada a falta do monopólio da força em Atenas, é discutível se ela sequer conta como um Estado pelas definições mais comuns.

Os próprios tribunais eram financiados publicamente, mas o Estado, não obstante, ausentava-se de muitos aspectos centrais do procedimento judicial. Por exemplo, Atenas não tinha promotor público e código penal; se você acusasse seu vizinho de um crime, era tarefa sua processá-lo. Isso não significava contratar um advogado para apresentar seu caso; especialistas poderiam ser chamados para ajudar na preparação, mas a apresentação em si tinha que ser feita pelo próprio querelante (o mesmo era válido para o réu).

A lei de Atenas, de fato, traçava uma distinção, similar à distinção entre civil e criminal de hoje, entre o ajuizamento de ofensas contra um indivíduo e contra a comunidade como um todo; mas o último era tratado como ações coletivas impetradas por agentes privados, em vez de por um empregado do Estado. Dessa forma, cada julgamento tinha de ser iniciado como resposta a reclamações levantadas pelos cidadãos, e não pela imposição do projeto de algum burocrata.

A aversão a advogados no sistema legal ateniense advém, pode-se presumir, da mesma fonte que a confiança na democracia direta ao invés da indireta: uma suspeita em relação à representação como tal e em relação ao problema do principal-agente [ou dilema da agência] que ela traz consigo. De forma notável, a ausência tanto de advogados nos tribunais, quanto de representantes na Assembleia encorajava o desenvolvimento, entre o público geral, da habilidade de argumentação e, dessa forma, pode-se acreditar que também ajudava a fomentar uma cultura de justificação racional, o que levou ao desenvolvimento mais completo da filosofia.

As cortes atenienses também não contavam com juízes; nenhum oficial tinha o poder de rejeitar potenciais jurados, determinar a quais evidências eles poderiam ter acesso, ou ditar-lhes qualquer interpretação particular da lei.

Em seu Ensaio sobre o julgamento por júri (Essay on the Trial by Jury), o libertário e teórico do direito do século XIX Lysander Spooner argumenta que tais poderes judiciais eram, em qualquer caso, contrários à função correta de um julgamento por júri. Esse instituto, arguia Spooner, supostamente deve ser “uma justa epítome do ‘país’ como um todo, e não só do partido ou facção que sustenta as medidas do governo”. Em suma, ele deveria ser, tanto quanto possível, “um julgamento pelo país”, o que significa que um júri de fato representativo deve “aquiescer a nenhuma convicção, a não ser aquelas com as quais o país inteiro concordaria, se estivesse presente”. Porém, isso requer que “de forma substancial, todas as classes de opiniões prevalentes entre as pessoas estejam representadas no júri; e, especialmente, as dos opositores do governo […] estarão lá representadas, assim como as de seus aliados”. Dessa forma, um julgamento “não seria, de forma alguma, ‘pelo país’, mas apenas pelo governo, se esse pudesse declarar quem poderia e quem não poderia fazer parte do júri, ou se pudesse ditar ao júri qualquer coisa, seja sobre a lei, seja sobre as evidências”, já que “[s]e o governo pode decidir quem pode e quem não pode ser jurado, ele sem dúvida selecionará apenas seus partidários e aqueles amigáveis a suas medidas”1.

Preocupações acerca da habilidade do Estado em controlar a composição de júris são especialmente presentes hoje, dados estudos recentes que mostram que, em muitos tribunais americanos, promotores rejeitam jurados negros três vezes mais do que não negros, em particular nos casos de pena de morte (nos quais jurados negros são tidos como mais relutantes em aplicar a pena capital).2

Os democratas atenienses teriam concordado fortemente com o argumento de Spooner contra juízes ou promotores governamentais que rejeitam potenciais jurados para assegurar um veredito ou uma penalidade em particular. Além disso, o grande tamanho dos júris de Atenas (era comum que contassem com 201 ou 501 pessoas, mas podiam chegar a 1001 ou até mais) também ajudava a garantir seu caráter representativo, deixando menos para o acaso do que os júris de 12 membros que Spooner tinha em mente.

Em quaisquer processos, os cidadãos eram encorajados a fazer uso da arbitragem antes de recorrer às cortes. Havia dois tipos de mediadores, públicos e privados. Como escrevi em outro lugar:

Na arbitragem privada, as duas partes na disputa selecionavam uma terceira, em acordo mútuo, para decidir o caso; os resultados eram reconhecidos em lei como compulsórios e finais e não era permitido recorrer (a não ser que se pudesse demonstrar que o mediador prevaricara). De forma alternativa, as partes litigantes poderiam levar sua disputa a um mediador público nomeado pelo Estado (o conselho de mediadores públicos consistia de todos os cidadãos homens com 60 anos). Porque os litigantes não tinham escolha sobre o mediador que lhes era designado e poderiam acabar com alguém insatisfatório, considerava-se justo que se pudesse apelar da decisão do mediador para os Tribunais de Júri na arbitragem pública (mas não na privada). A escolha entre mediadores privados, mediadores públicos e Tribunais de Júri introduziu um elemento de competição salutar ao sistema judicial ateniense.3

Outra área que Atenas deixava aberta às escolhas privadas e voluntárias era a educação. Ao contrário da arquirrival Esparta, onde crianças de ambos os sexos eram sujeitas a um rigoroso currículo imposto pelo Estado dos sete anos em diante, Atenas deixava que os pais providenciassem a tutoria dos filhos – para o desalento de filósofos como Platão, que clamavam por controle estatal da educação4. Contudo, poucos reclamariam que Atenas, o centro intelectual da Grécia, era inferior em educação se comparada a cidades rivais.

Os sofistas – termo que hoje carrega conotação negativa (em ampla medida graças a críticos hostis como Aristófanes e Platão), mas que se referia estritamente a qualquer provedor profissional de instrução a adultos – foram os pioneiros da educação superior na cidade. Tais ensinamentos incluíam conselhos em oratória e argumentação para a Assembleia e as cortes, assim como dicas de “autoajuda” em geral, mas também treinamento em assuntos que variavam de matemática e ciências naturais a filosofia moral e linguística. Muitos sofistas eram estrangeiros, atraídos a Atenas pela relativa liberdade intelectual que ela oferecia.

Os sofistas cobravam por seus serviços, mas patrocinadores abastados organizavam reuniões nas quais os convidados poderiam assistir a palestras e debates de sofistas de graça (uma dessas reuniões é retratada no diálogo platônico Protágoras5). E Sócrates, é claro (que não se considerava um sofista – porém, a julgar pela comédia “As Nuvens”6, de Aristófanes, nem todos concordavam), geralmente não cobrava pelos seus serviços. Dessa forma, o fornecimento privado de educação superior tomava formas tanto lucrativas quanto voluntárias – em ambos os casos sem envolvimento estatal.

Na educação, assim como na aplicação da lei, os atenienses confiavam em larga medida – e com bastante sucesso – no setor privado, inclusive para serviços que hoje assumimos prontamente precisarem de envolvimento do Estado.

Notas

  1. Lysander Spooner, An Essay on the Trial by Jury I.1 (Boston: John P. Jewett, 1852). 

  2. Roderick T. Long, “Black Jurors Need Not Apply,” Center for a Stateless Society (22 October 2015). 

  3. Roderick T. Long, “The Athenian Constitution: Government by Jury and Referendum,” Formulations 4.1 (Autumn 1996). 

  4. See George H. Smith, “The Roots of State Education, Part 2: Plato’s Case Against Free-Market Education” (Libertarianism.org, 21 February 2012). 

  5. Plato, Protagoras. 

  6. Aristophanes, The Clouds.