O legado da Grécia Antiga para a liberdade: Os fantasmas da fúria

Ancient Greece's Legacy for Liberty: The Wraiths of Wrath · Tradução de Gabriel Goes
· 17 minutos de leitura

Uma das explorações de ideias políticas mais sutis e complexas em qualquer tragédia grega sobrevivente pode ser encontrada em As Eumênides, peça que conclui a trilogia A Oresteia, de Ésquilo.1

No início da peça, Orestes está sendo perseguido pelas Fúrias, espíritos de vingança divina, como retribuição por ter matado sua mãe, Clitenestra, o que fez como retaliação por sua participação na morte do pai, Agamenon – ato, por sua vez, motivado em parte como revide de Clitenestra por Agamenon ter sacrificado sua filha Ifigênia em um ritual2 (as noites em volta da mesa de jantar devem ter sido bastante embaraçosas). Orestes chega a Atenas, como suplicantes estrangeiros geralmente fazem na tragédia grega, e pede à deusa Atena, matrona divina da cidade, por proteção contra as Fúrias. Essas, por seu turno, fazem uma defesa da necessidade social de instituições de punição:

Aqui se dará a derrubada

de todas as jovens leis, se a reivindicação

desse matricida permanecer

intocada, seu crime sustentado.

Se assim for, cada homem encontrará uma forma

de agir por seus próprios caprichos;

de novo e de novo no tempo

que há de vir, pais aguardarão

o golpe fatal pelas mãos de seus filhos. […]

Há tempos em que o medo é bom.

Ele deve manter seu lugar de vigília

nos controles do coração. Há

vantagem

na sabedoria adquirida da dor.

Se a cidade, se o homem

criar um coração que não vá a lugar algum

por medo, como deverá ele

não mais respeitar o direito?3

O deus Apolo, em contraste, aparece como defensor de Orestes e trata com desprezo o desejo obsessivo de vingança das Fúrias:

Essa casa não é o local certo para que alguém como vocês

se agarre; mas sim onde, por julgamento, cabeças são decepadas

e olhos arrancados, gargantas cortadas e, pelo espólio do sexo,

a glória de jovens é derrotada, onde a mutilação

vive, e o apedrejamento, e o longo lamento de homens torturados

empalados por baixo da espinha e pendurados em paliçadas. Ouça

como os deuses esbravejam contra a maneira desse banquete

ao qual se inclinam seus amores.4

Atena, do bom (e novamente anacrônico) jeito democrático ateniense, submete a questão a votação por júri; quando os votos se mostram igualmente divididos, no entanto, cabe à deusa dar o voto decisivo. Porém, ela se recusa a tomar o partido de forma definitiva tanto das Fúrias quanto de seu irmão Apolo. Contra as Fúrias, Atena decide perdoar Orestes, dessa forma encerrando o ciclo de vingança. Contudo, ela rejeita a atitude desdenhosa de Apolo em relação às Fúrias e insiste que a vingança merece um lugar inextirpável dentre as instituições sociais dos homens. Ela diz a Orestes:

Este assunto é grande em demasia para qualquer mortal

que pensa poder julgá-lo. Mesmo eu não tenho o direito

de analisar casos de assassinato nos quais o gume da ira

é afiado, ainda mais depois que viestes, e te agarrastes,

um suplicante limpo e inocente, às minhas portas.

Não trazes prejuízo à minha cidade. Respeito teus direitos.

Contudo, essas [as Fúrias] também têm seu trabalho. Não podemos

descartá-las,

E se esta ação correr de modo que falhem em vencer,

O veneno de sua determinação retornará

para infectar o solo, e adoecer minha terra até a morte.

Aqui está um dilema. Deixando-as ficar ou

enxotando-as, o caminho será duro e doloroso.5

Entretanto, embora as Fúrias hão de causar o caos se forem reprimidas, deixá-las completamente livres não é menos danoso à ordem social. Portanto, Atena busca – no fim das contas, com sucesso – “domá-las” ao incorporá-las à comunidade ateniense. Sua súplica às Fúrias é a seguinte:

Não mais se enfureçam com esta terra

nem lancem todo o volume de seu ódio sobre ela […]

Em completa honestidade lhes prometo um lugar

só seu, escondido nas profundezas do solo, seu por direito

onde sentarão em tronos reluzentes ao lado da fogueira

para aceitar devoções oferecidas pelos cidadãos.

Não façam,

em toda sua raiva, deste lugar de homens mortais

inabitável. […]

Ponham para dormir a amarga força na negra onda

e vivam comigo e comigo compartilhem o orgulho da veneração. […]

E vocês, em seu lugar

de eminência, ao lado de Erecteu em sua casa,

ganharão, de homens e mulheres processionários,

mais do que as terras em volta jamais poderão dar.

Só neste lugar que frequento peço que não inflijam

seu estímulo sangrento para retorcer os corações

dos jovens, lançados em ira não de vinho,

nem, como se arrancando o coração de galos de rinha,

imprimam sobre meus cidadãos aquele espírito de guerra

que lança sua fúria de batalha contra eles mesmos. […]

Tal vida lhes ofereço, e é sua para reivindicar.

Façam o bem, recebam o bem, e sejam honradas […]6

Em suma, a punição cívica tanto acolhe quanto modera o espírito da vingança.

A ideia de paixões humanas como forças divinas que destruirão a sociedade caso sejam reprimidas por completo e que precisam ser, portanto, de alguma forma honradas e acolhidas a despeito de seu poder destrutivo, é também o tema de As Bacantes de Eurípides, cujo herói Penteu é rasgado em pedaços ao tentar suprimir o culto de Dionísio. Além disso, pode-se ver As Eumênides, de Ésquilo, como uma antecipação de O Mercador de Veneza de Shakespeare, em que Shylock, um representante, assim como as Fúrias, de uma religião antiga da vingança (como a audiência de Shakespeare teria percebido o judaísmo), abandona sua busca por vendeta e se converte a uma jovem religião da misericórdia, a pedido da mediadora Pórcia, uma figura sábia, como Atena.7

O compromisso de Atena com o meio-termo entre vingança descontrolada e retribuição completamente suprimida encontra paralelo no compromisso político entre liberdade excessiva e despotismo sem freios. A este chamam atenção tanto as Fúrias –

Rejeite uma vida de anarquia;

rejeite a vida devotada a

um mestre.

O meio-termo tem o poder

pela graça de Deus sempre, embora

suas ordens possam variar.8

– quanto a própria Atena:

Nem anarquia, nem o governo de um só mestre. Dessa forma

eu aconselho meus cidadãos a governar e agraciar,

e a não lançar medo, absolutamente, de sua cidade.9

Pode-se presumir que o ciclo infinito de vingança encampado pelas ctônicas Fúrias representa a anarquia, enquanto a total supressão da vingança, o despotismo (poder-se-ia ler esse par de forma diferente, mas o contexto parece privilegiar a interpretação apresentada). A vida política e o império da lei, portanto, constituem uma proporção áurea entre a vingança irreprimida e a retribuição esmagada por completo.10

Porém, há uma complicação mais no julgamento de Orestes, que introduz algumas políticas de gênero bastante estranhas. A oposição entre as Fúrias (deidades femininas subterrâneas) e Apolo (um deus masculino do sol), como Ésquilo a apresenta, já corrobora o suficiente com a popular teoria antropológica do conflito entre as deidades antigas da mãe-terra associadas aos povos agrícolas, e os deuses dos céus, mais novos e relacionados aos nômades que conquistaram os outros povos. Ademais, em Ésquilo, as Fúrias são vingadoras não de todos os assassinatos, mas só daqueles que envolvem relações de sangue; daí sua preocupação com Orestes por ter matado a mãe, mas não com Clitenestra por ter assassinado o marido:11

– Entoem seu glorioso privilégio.

– Este: expulsar matricidas de suas casas.

– Então

o que haverá se a esposa matar o marido?

– Tal assassinato não seria derramamento de sangue de parentesco.12

Apolo, em contraste, apesar de seu repúdio professado à vingança como um “banquete […] [contra o qual] os deuses esbravejam”, na verdade não apresenta qualquer objeção à vingança de Orestes contra sua mãe e, de fato, admite tê-lo incitado a realizá-la. Ele justifica isso, por um lado, por sua convicção de que “o amor matrimonial entre / homem e mulher é maior que juramentos, preservado pelas leis da natureza”13 (dessa forma, a traição do marido por parte de sua mulher é um assunto mais sério do que reconhecem as Fúrias). Por outro, porque, embora os papéis do pai e da mãe na geração sexual sejam ativo e passivo, respectivamente, apenas o homem é verdadeiro progenitor da criança resultante. Portanto, o matricídio é uma questão menos relevante do que o parricídio:

A mãe não é progenitora do que é chamado

seu filho, apenas cuida da recém-plantada semente

que cresce. O progenitor é aquele que monta. Uma estranha

preserva a semente de um estranho, se deus algum interferir.14

Tão absurda quanto possa parecer essa teoria da geração sexual, era amplamente aceita na Grécia antiga.15 Contudo, o corolário de Apolo de que o matricídio não é grande coisa não teria sido aceito de forma similar; de qualquer forma, uma passagem de As Nuvens, de Aristófanes, sugere que o ateniense médio teria achado a violência contra a mãe ainda mais chocante do que contra o pai.16

As Fúrias levantam outras objeções ao argumento de Apolo, apelando a fatos inconvenientes sobre a mitologia grega:

Zeus, por sua história, põe o parricídio em primeiro lugar.

Contudo, o próprio Zeus acorrentou o ancião Cronos, seu

pai [no submundo]. Não é essa uma contradição?17

Aparentemente sentindo-se compelida a escolher entre os argumentos especiosos das Fúrias para rebaixar a seriedade de se matar um esposo e os argumentos especiosos de Apolo para rebaixar a seriedade de se matar uma mãe, Atena opta pelo lado do deus do sol (e, portanto, de Orestes), com base no argumento de que, por ela ter nascido já crescida da cabeça de Zeus, consequentemente deve ser “sempre a favor do masculino”, porque “nenhuma mãe em qualquer lugar […] deu-me à luz”.18

De forma notável, essa razão para favorecer o caso de Orestes se aplica somente a Atena e, então, parece oferecer ao público de Ésquilo, todos presumivelmente nascidos do jeito normal, razão alguma para compartilhar do julgamento da deusa. Apesar do final feliz, em aparência – com Orestes liberto, as Fúrias aplacadas e o ciclo de violência findado –, as questões centrais são deixadas, pode-se arguir, menos do que completamente resolvidas. Como veremos, um bom número de escritores gregos posteriores possuía uma visão mais favorável das mulheres e da anarquia, e menos favorável da punição vingativa, do que a Atena de Ésquilo aqui apresenta.

Notas

  1. Agamêmnon, As Coéforas e As Eumênides. 

  2. As fortunas dessa família eram assunto popular na tragédia grega. Além da trilogia de Ésquilo e de Electra, de Sófocles, cinco das peças sobreviventes de Eurípides – Ifigênia em Áulide, Electra, Ifigênia em Táuris, Orestes e, de forma marginal, Andrômaca – lidam com a lenda. Também é uma temática familiar para dramaturgos posteriores como Sêneca, Jean Racine, Johann Wolfgang von Goethe, Hugo von Hofmannsthal, Eugene O’Neill, Jean Giraudoux, Jean-Paul Sartre, Mircea Eliade, Ezra Pound e Marguerite Yourcenar. 

  3. Aeschylus, Eumenides 490-525; tradução de Richmond Lattimore, in Lattimore, ed.,Aeschylus I: Oresteia (University of Chicago Press, 1953), pp. 152-153. 

  4. Eumenides 185-192; tradução de Lattimore, p. 141. 

  5. Eumenides 470-481; pp. 151-152. 

  6. Eumenides 800-868; pp. 163-185. 

  7. Obviamente, a outra grande atualização shakespeariana da lenda da Oresteia é Hamlet, cujo personagem principal combina aspectos tanto de Electra quanto de Orestes. 

  8. Eumenides 526-531; p. 153. 

  9. Eumenides 696-698; p. 160. 

  10. Simplesmente descrevo a solução de Atena, não a endosso. Para minha própria crítica à punição legal, veja Roderick T. Long, “A Irrelevância da Responsabilidade” Social Philosophy and Policy 16.2 (Summer 1999), pp. 118-145. E para minha defesa da anarquia, veja Roderick T. Long, “Market Anarchism As Constitutionalism” in Roderick T. Long and Tibor R. Machan, eds.,”Anarchism/Minarchism: Is a Government Part of a Free Country?” (Aldershot: Ashgate, 2012), pp. 133-154. 

  11. A morte de Ifigênia, estranhamente, parece ter sido esquecida neste ponto. 

  12. Eumenides 209-212; p. 142. 

  13. Eumenides 217-219; p. 142. 

  14. Eumenides 658-661; p. 158 

  15. Tal teoria é muitas vezes atribuída a Aristóteles. Porém, embora a visão desse filósofo chegue, de forma desconfortável, bem perto da que Apolo defende em As Eumênides, ela é um pouco mais sofisticada. Para uma discussão, veja Daryl McGowan Tress, “The Metaphysical Science of Aristotle’s Generation of Animals and Its Feminist Critics,” in Julie K. Ward, ed., Feminism and Ancient Philosophy (New York: Routledge, 1996), pp. 31-50; e Kathleen C. Cook, “Sexual Inequality in Aristotle’s Theories of Reproduction and Inheritance,” também in Ward, pp. 51-65. 

  16. Aristophanes, Clouds 1441-1450. 

  17. Eumenides 640-642; p. 158. 

  18. Eumenides 736-737; p. 161. Em algumas versões do mito tradicional, Atena teve, de fato, uma mãe, Métis, a quem Zeus engoliu enquanto estava grávida, por medo de que ela tivesse um filho mais poderoso do que ele próprio. É evidente que Ésquilo não segue essa versão da história aqui.