O legado da Grécia Antiga para a liberdade: O flerte de Aristófanes com o feminismo

Ancient Greece's Legacy for Liberty: Aristophanes' flirtation with feminism · Tradução de Gabriel Goes
· 13 minutos de leitura

Coloquemos os pescoços para fora e cantemos em elogio

A nós mesmas como mulheres, porque a tribo masculina

Não tem nada de bom a dizer a respeito da raça feminina […]1

Como seu contemporâneo Eurípides, Aristófanes demonstrava grande interesse no status das mulheres na sociedade ateniense. Três de suas peças, acima mencionadas, são especificamente devotadas aos apuros das mulheres como classe, e as duas primeiras oferecem representações simpáticas, ao que parece, de uma tomada de poder político pelas mulheres da cidade.

Dadas as intenções cômicas do autor, não se pode ter certeza da medida em que ele concorda com as queixas que faz com que suas protagonistas externem – e seria precipitado assumir que ele favorecia extensão literal de direitos políticos às mulheres (embora, por outro lado, essa possibilidade não possa ser rejeitada como impensável; afinal, sérios defensores da igualdade política entre os sexos – tais como Platão, os cínicos e os primeiros estoicos – surgiriam nas gerações subsequentes). No entanto, quaisquer fossem suas reais simpatias, nas três peças em questão, Aristófanes apresenta explorações importantes da justiça do status feminino e dá voz a alguns argumentos feministas intrigantes.

Em Lisístrata, a tomada de poder pelas mulheres é temporária e seu propósito é somente o de pressionar os homens a interromper a Guerra do Peloponeso; em As mulheres na assembleia, a tomada é permanente (e o objetivo das mulheres é substituir os governantes em vez de dividir o poder com eles de forma igualitária). Contudo, em ambos os casos, o papel financeiro das mulheres dentro de casa é mostrado como prova de sua qualificação para gerenciar as finanças da cidade como um todo. Lisístrata, líder da revolta feminina na peça que leva seu nome, tem o seguinte diálogo com o chefe dos magistrados:

– Tomaremos conta dos recursos para vocês.

– Vocês tomarão conta dos recursos?

– O que há de tão estranho nisso?

Não já cuidamos do orçamento do lar? […]

– Não é o mesmo.

– Por que não?2

De forma similar, Praxágora3, a líder análoga da rebelião em As mulheres na assembleia, argumenta:

Minha proposta é que a administração da cidade

seja passada para nós, mulheres. Afinal,

somos nós que já

cuidamos de nossos lares e finanças.4

Aristófanes, aqui, antecipa-se ao filósofo socrático Xenofonte, que argumentaria posteriormente, em Econômico, que as mulheres eram as verdadeiras administradoras da casa, e que a expertise necessária para o fazer era a mesma para governar um Estado, além de que homens e mulheres eram iguais em intelecto e virtude.5 A implicação óbvia é que mulheres estão tão qualificadas quanto os homens para governar6 (e sem dúvida não é coincidência que Platão, que advoga pela capacidade política das mulheres em A República7, concorda com Xenofonte que governo e administração do lar são a mesma habilidade8, enquanto Aristóteles, defensor da submissão política das mulheres, insiste que são diferentes9).

Historicamente, um argumento comum contra a extensão de direitos políticos às mulheres é que elas não estão sujeitas à conscrição militar.10 Herbert Spencer, por exemplo, apesar de ter defendido direitos políticos iguais para ambos os sexos em uma de suas primeiras obras, Social Statics11, reverteu sua posição 40 anos mais tarde em Principles of Ethics:

A cidadania não inclui somente o direito a voto, às vezes em conjunção com o cumprimento de funções representativas. Também inclui algumas responsabilidades sérias. Contudo, se assim o é, não pode haver igualdade de cidadania a não ser que tanto o bem quanto o mal sejam divididos. Chamar de igualdade algo em que uns têm poderes de graça enquanto outros pagam por esses poderes tomando riscos é absurdo. Agora, os homens, quaisquer sejam os poderes políticos que possam em qualquer caso possuir, estão, ao mesmo tempo, em risco severo de perda da liberdade, privação e, ocasionalmente, morte, por consequência de terem de defender o país; e se as mulheres, juntamente com os mesmos poderes políticos, não tiverem os mesmos riscos, sua posição não é de igualdade, se não de supremacia.

A não ser, portanto, que as mulheres forneçam contingentes para o exército e a marinha como os homens fazem, é manifesto que, eticamente considerada, a questão de “direitos políticos” iguais, assim chamada, não pode ser entretida até que se tenha alcançado um estado de paz permanente.12

Quando os magistrados atenienses em Lisístrata argumentam de forma similar que as mulheres não têm direito a igualdade política, já que “não fazem coisa alguma pela guerra”, a protagonista responde:

Fazemos mais do que nossa parte – muito mais.

Produzimos os filhos, para começar,

e os mandamos para a batalha. (…)

Além disso,

quando estamos no nosso auge e deveríamos aproveitar a vida,

dormimos sozinhas por causa da guerra.13

(Lisístrata não menciona, mas poderia, que as mulheres de cidades derrotadas frequentemente encaravam a perspectiva de escravidão – então seria difícil descrever o sexo feminino como isento dos riscos que a guerra apresenta.)

Aristófanes também descreve as maneiras pelas quais as preocupações das mulheres eram silenciadas, tanto na esfera política quanto em casa. Lisístrata reclama:

Antes de hoje e ainda muito antes

nós mulheres concordamos em débil silêncio com tudo feito

por vocês, homens.

Não nos era permitido responder;

no entanto, […] sabíamos muito bem o que acontecia.

Mais de uma vez em casa ouvimos

sobre alguma trapalhada idiota que vocês fizeram

em um assunto político importante,

e sufocaríamos nossa angústia, daríamos um sorriso modesto e diríamos

“Maridinho, gostaria que

me dissesses como foi no Parlamento hoje.” […]

e o Maridinho replicaria:

“Cuida do teu trabalho, mulher, e fecha essa matraca. […]

Cuida do teu bordado, mulher,

ou ficarás com uma orelha inchada.

‘Guerra é assunto de homem.’” […]

como isso poderia estar certo, teu paspalho,

quando não nos era permitido falar de modo algum,

mesmo quando vocês transformavam tudo em uma bagunça?14

Além das impotências políticas, Lisístrata aponta maneiras pelas quais costumes impactam mulheres e homens de forma diferente:

Quando um homem volta para casa,

mesmo se for velho e grisalho, logo encontra uma garota com quem se casar,

mas a mulher desfruta de um apogeu curto demais,

e, logo que ele se acaba, ninguém a escolherá como esposa.

Ela se lamenta em casa

cheia de sonhos frustrados.15

Em As Tesmoforiantes, o coro das mulheres demonstra as inconsistências no sistema prevalente de valores patriarcais: se as mulheres de fato são “uma peste para toda a humanidade”, então por que os homens “fecham a porta” contra elas e “[n]os impedem de fuçar ou nos aventurar do lado de fora”, dessa forma, perversamente, “[m]antendo uma peste dentro da própria casa”?16

Aristófanes também dirige a atenção do leitor ou do espectador à influência das representações culturais das mulheres. As Tesmoforiantes trata de uma assembleia de mulheres que se encontra para levar Eurípides a julgamento por seu retrato negativo do sexo feminino. Como vimos anteriormente17, enquanto leitores modernos tendem a encontrar temas protofeministas nas peças de Eurípides, em sua época elas eram vistas amplamente como misóginas – talvez, em parte, pelas mesmas razões (personagens femininas assertivas que desafiavam papéis tradicionais de gênero e expectativas de constituição de família).

Onde quer que haja um teatro,

com plateia, atores trágicos e coros,

ele [Eurípides] não nos golpeou com seus vilipêndios,

acusando-nos de […] cafetinas,

choronas, traidoras, fofoqueiras, perdidas em maquinações,

essencialmente doentes, a maior maldição da humanidade?

Então, é claro, os homens voltam para casa do teatro

e imediatamente começam a nos lançar olhares suspeitos

e a procurar nos armários por amantes escondidos.

De maneira alguma podemos nos comportar de forma natural,

tão completamente esse cidadão envenenou os pensamentos de nossos homens.18

Embora não seja claro se o autor compartilhava a interpretação de Eurípides fornecida por seus personagens, ele sem dúvida levanta questões que antecipam debates modernos sobre os efeitos danosos de obras nas mídias populares as quais promulgam estereótipos sexistas. Enquanto alguns de seus personagens defendem que os estereótipos são injustos, outros dizem o contrário – o que deixa a real perspectiva de Aristófanes como um enigma.

Notas

  1. Aristophanes, Thesmophoriazousai 826-828; in Aristophanes, The Complete Plays: The New Translations, tradução de Paul Roche (New York: New American Library, 2005), p. 515. 

  2. Aristophanes, Lysistrata 493-496; tradução de Roche, op. cit., p. 441. 

  3. Os nomes das heroínas feministas de Aristófanes foram bem escolhidos: “Lisístrata” significa “dissolvedora de exércitos” (e ela lidera uma greve de sexo para forçar os homens da Grécia a abandonar a guerra), enquanto “Praxágora” quer dizer “ativa na praça pública” (e a personagem encabeça uma tomada feminina da assembleia democrática de Atenas). 

  4. Assemblywomen 209-212; tradução de Roche, p. 623. 

  5. Xenophon, Economicus VII.43; VII.23-27; XI.23-25; XXI.2-12; cf. Recollections III.1.67, 4.6-12. 

  6. Para uma explicação do porquê de essa implicação ter sido deliberada da parte de Xenofonte, veja Roderick T. Long, “The Classical Roots of Radical Individualism,” pp. 272-273; in Social Philosophy and Policy 24.2 (2007), pp. 262-297. 

  7. Plato, Republic, book 5. 

  8. Plato, Statesman 258e-261a. 

  9. Aristotle, Politics 1252a7-18; cf. ps.-Aristotle, Economics 1343a1-5. 

  10. Poderia-se evitar essa objeção ao se defender convocação de ambos os sexos (como Platão) ou (ó, ideal distante!) de nenhum. 

  11. Herbert Spencer, Social Statics: or, The Conditions Essential to Happiness Specified, and the First of Them Developed (London: John Chapman, 1851), p. 169. 

  12. Herbert Spencer, The Principles of Ethics, vol. 2 (London: Williams and Norgate, 1900), pp. 165-166. A suposição de que a defesa militar é impossível sem a conscrição é incongruente em um pensador tão libertário quanto Spencer; e, como nota T. S. Gray, “[o] fato de que homens não eram suscetíveis à convocação militar quando Spencer escrevia (…) faz seu argumento ainda mais confuso” (T. S. Gray, “Herbert Spencer on Women: A Study in Personal and Political Disillusionment,” p. 221; International Journal of Women’s Studies 7.3 (1984), pp. 217-231). 

  13. Lysistrata 587-591; tradução de Roche, p. 446. 

  14. Lysistrata 507-524; tradução de Roche, pp. 442-443. 

  15. Lysistrata 593-597; tradução de Roche, p. 446. 

  16. Thesmophoriazousai 828-838; tradução de Roche, p. 515. 

  17. Veja a parte 15 desta série. 

  18. Thesmophoriazousai 429-436; tradução de Roche, p. 498.