O legado da Grécia Antiga para a liberdade: Liberdade pessoal em Atenas

Ancient Greece's Legacy for Liberty: Personal Freedom in Athens · Tradução de Gabriel Goes
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Em seu ensaio de 1819, “A liberdade dos antigos comparada à dos modernos”, Benjamin Constant argumentou que a concepção greco-romana antiga de liberdade se voltava, em primeiro lugar, à possibilidade de participar nas decisões coletivas do Estado, mas não àquela de viver a própria vida sem interferência estatal. Porém, como afirmei previamente, Constant fez uma exceção para Atenas:

Houve, na antiguidade, uma república na qual a submissão da existência individual perante o corpo social não era tão completa quanto aqui descrevi. Essa república era a mais famosa de todas: o leitor deve adivinhar que falo de Atenas. […]

Atenas […] permitia aos seus cidadãos uma liberdade individual infinitamente superior àquela de Esparta ou Roma.1

Qual era o sistema político ateniense, e quão favorável ou desfavorável à liberdade pessoal era?

Chamamos Atenas de democracia; eles se chamavam assim. Contudo, o sistema ateniense diferia das democracias atuais em uma variedade de aspectos. É costumeiro descrever a democracia ateniense como um sistema majoritário puro, sem limitações à tirania da maioria – uma descrição que, naturalmente, tende a deixar libertários nervosos.

No entanto, em Atenas nunca houve um sistema majoritário puro. Claro que seus maiores desvios desse sistema lhe conferem descrédito: mulheres, escravos e estrangeiros não podiam participar, o que deixava uma minoria com interesses próprios no comando. Porém, um de seus desvios do sistema majoritário era muito mais louvável: as cortes atenienses tinham o poder de revisão judicial. Primeiro, era possível processar um membro da Assembleia por propor um projeto inconstitucional. Se o promotor vencesse, a proposta, caso já tivesse sido transformada em lei, era revogada em automático. Ademais, havia cortes nomotéticas (legislativas) nas quais uma lei poderia ser processada; argumentos eram construídos pela promotoria e pela defesa e, se os jurados decidissem pela promotoria, a lei era, novamente, revogada. Nas palavras do historiador clássico M. H. Hansen:

A Suprema Corte dos Estados Unidos tem o poder de testar e derrubar Atos do Congresso desde 1803. No período de 1803 a 1986, esse poder foi utilizado 135 vezes: nossas fontes mostram que, em Atenas, esse número foi quase alcançado em duas décadas, que dizer de dois séculos.2

Uma pesquisadora contemporânea, Melissa Schwartzberg, desafiou a interpretação dessa prática ateniense como precursora da revisão judicial, com o argumento de que “a defesa moderna da revisão judicial repousa, necessariamente, na expertise dos juízes”, enquanto aqueles que detinham o poder de derrubar leis em Atenas eram cidadãos ordinários, sorteados do mesmo grupo que jurados comuns.3 Contudo, a expertise judicial não é o único fundamento sobre o qual a revisão judicial é defendida hoje; a chance de revisitar uma decisão legislativa possivelmente apressada à luz da experiência e de, talvez, novos argumentos, parece uma razão boa o suficiente.

Outra restrição à tirania da maioria era a exigência de que, exceto no caso de ostracismo (sobre o qual se discutirá mais em um ensaio a ser publicado), “[n]enhuma lei deverá ser direcionada contra um indivíduo sem se aplicar a todos os cidadãos da mesma forma”4.

Além de sua estrutura legal, a democracia ateniense tinha uma ideologia que era, ao menos em princípio, amplamente favorável à liberdade. O orador Lísias (~445-~380 a.C.) descreve os fundadores da democracia de Atenas como defensores de que é “o jeito das bestas selvagens subjugar o outro pela força, mas dever do homem delimitar a justiça pela lei [e] convencer pela razão”5.

A ideologia democrática também não confinava a liberdade à participação política, a “liberdade dos antigos”. Tucídides (~460-~400 a.C.), em seu livro História da Guerra do Peloponeso, relata uma declaração do estadista ateniense Péricles (~495-429 a.C.):

A liberdade de que desfrutamos em nosso governo também se estende à nossa vida pessoal. Nela, longe de exercer uma vigilância invejosa sobre os outros, não nos sentimos provocados a nos irritar com nosso vizinho por fazer o que gosta. […]

Abrimos as portas de nossa cidade para o mundo, e nunca por atos externos excluímos estrangeiros de qualquer oportunidade de aprender ou observar, embora os olhos de um inimigo possam às vezes se beneficiar de nossa liberalidade; confiando menos no sistema e nas políticas públicas do que no espírito nativo de nossos cidadãos; enquanto na educação, em que nossos rivais [espartanos], de seus berços, por disciplina dolorosa, perseguem a masculinidade, em Atenas vivemos exatamente como desejamos e, mesmo assim, estamos sempre tão prontos quanto eles para encarar qualquer perigo legítimo.6

Aristóteles (384-322 a.C.) concorda, ainda que em desaprovação, que, de acordo com a concepção democrática, “liberdade e igualdade consistem em cada um fazer o que deseja”, para que “todos vivam como quiserem”7. Platão, outro crítico da democracia ateniense, lamenta que não há “compulsão para governar nesta cidade, mesmo que se seja qualificado para tanto, ou para ser governado se não se quer ser; ou para estar em guerra quando outros também o estão, ou para manter a paz quando outros o fazem”, de maneira que a democracia constitui não um sistema político único, mas um “supermercado de constituições”, no qual cada pessoa pode “selecionar o que quer que a agrade”8 – dessa forma, ele faz Atenas se assemelhar ao ideal “panarquista” de alguns libertários modernos9. E, ao menos aos olhos do “Velho Oligarca” – o autor anônimo antidemocrático da Constituição dos Atenienses, outrora atribuída em erro a Xenofonte – essa liberdade se estendia a não cidadãos e até mesmo a escravos:

Agora, dentre os escravos e os metecos [estrangeiros residentes] em Atenas há licenciosidade descontrolada; lá não se pode golpeá-los, e um escravo não dará passagem quando necessário. Devo apontar o porquê de essa ser sua prática nativa: fosse costumeiro para um escravo (ou meteco ou homem livre) ser golpeado por um homem livre, golpear-se-ia em erro um cidadão ateniense frequentemente, pensando que ele era um escravo. Pois as pessoas lá não são mais bem vestidas do que escravos ou metecos, assim como não são mais bonitas.10

É bastante seguro assumir que essas descrições da liberdade ateniense são exageradas; tanto os defensores quanto os adversários do sistema tinham motivos para superestimar a extensão da autonomia individual. Os pronunciamentos do Velho Oligarca sobre a suposta liberdade dos escravos são especialmente dúbios e lembram as cansativas reclamações do século XIX de que as mulheres da era vitoriana tinham mais direitos que os homens.11 Da mesma forma, quando atenienses se gabam da liberdade de expressão na cidade – como na famosa observação de Demóstenes (384-322 a.C.) de que às pessoas era permitido elogiar o sistema espartano em Atenas, mas não o contrário12 –, deve-se lembrar que, por outro lado, Sócrates (~470-399 a.C.) foi executado por seus ensinamentos, e outros pensadores que desafiaram crenças religiosas tradicionais (como Anaxágoras, que dizia que o sol, a lua e as estrelas eram objetos físicos e não deuses, ou Diágoras, que parece ter negado a existência dos deuses em sua totalidade) tiveram que deixar a cidade para evitar destino semelhante.

No entanto, uma realidade genuína se esconde sob o exagero; Atenas possuía mais liberdade do que quaisquer cidades gregas, incluindo liberdade intelectual suficiente para atrair aos seus portões pensadores e pesquisadores de todo o mundo mediterrâneo (mesmo Sócrates conseguiu levar uma longa carreira sem ser incomodado por suas visões até tarde na vida; e sua condenação por impiedade foi, de certa forma, atípica, pois veio durante um período um tanto quanto paranoico ao fim de um grande período de crise para Atenas, na esteira de uma derrota militar e de uma ocupação, seguidas por uma curta porém brutal ditadura [na qual alguns dos alunos de Sócrates estiveram envolvidos] e uma amarga guerra civil para tirá-la do poder). Dramaturgos atenienses como Aristófanes faziam galhofa dos líderes políticos da cidade em praça pública13, criticavam a política externa ateniense14 e satirizavam os deuses também15. O comprometimento de Atenas com a possibilidade de ser livre para viver como se deseja pode ter tido seus limites, mas a ideia estava lá e foi posta em prática com uma amplitude impressionante.

Notas

  1. Benjamin Constant, “The Liberty of Ancients Compared with that of Moderns,” (1819). 

  2. Mogens Herman Hansen, The Athenian Democracy in the Age of Demosthenes: Structure, Principles and Ideology (Oxford: Basil Blackwell, 1991), p. 209; cf. Adriaan Lanni, “Judicial Review and the Athenian ‘Constitution’, Harvard Public Law Working Paper No. 10-21 (19 February 2010). 

  3. Melissa Schwartzberg, “Was the Graphe Paranomon a Form of Judicial Review?,” p. 1051; Cardozo Law Review 34 (2013), pp. 1049-1062. 

  4. Citado em Andocides, On the Mysteries 87; in K. J. Maidment, trans., Minor Attic Oratrs, vol. 1 (Cambridge MA: Loeb Classical Library, 1968). 

  5. Lysias, Funeral Oration 2.19; W. R. M. Lamb, trans., Lysias (Cambridge MA: Loeb Classical Library, 1930). 

  6. Thucydides, History of the Peloponnesian War, trans. Richard Crawley (London: Longmans Green, 1874), II.6. No que concerne aos vários discursos relatados em sua História, Tucídides nota que “alguns ouvi eu mesmo, outros consegui de fontes diversas”, e “foi, em todos os casos, difícil guardá-los palavra por palavra na memória”. Em consequência, explica ele, foi uma política pessoa a) “fazer com que os discursos digam o que era, em minha opinião, demandado deles pelas variadas ocasiões”, enquanto ao mesmo tempo b) “aderir ao senso mais próximo possível do que eles realmente disseram” (I.1). Pesquisadores discordam em relação a que peso dar a a) e b) na hora de interpretar os discursos. 

  7. Aristotle, Politics: A Treatise on Government, trans. William Ellis (London: J. M. Dent & Sons, 1912), V.9. 

  8. Plato, Republic 557d-e; trans. C. D. C. Reeve (Indianapolis: Hackett, 2004). 

  9. Paul-Émile de Puydt, “Panarchie,” Revue Trimestrielle (Brussels,July 1860); cf. Aviezer Tucker, “The Best States: Beyond the Territorial Fallacy” (Utopian Studies, Winter 1999). 

  10. Pseudo-Xenophon, Constitution of the Athenians 11; in Xenophon, Scripta Minora, trans. E. C. Marchant and G. W. Bowersock (Cambridge MA: Loeb Classical library, 1925). 

  11. Para reclamações do século XIX sobre dominação feminina, veja, p. ex., Herbert Spencer, “From Freedom to Bondage,” ( in Thomas Mackay, ed., A Plea for Liberty: An Argument Against Socialism and Socialistic Legislation (London: John Murray, 1891), e, de forma ainda mais absurda, Ernest Belfort Bax, “The Woman Question” (Justice, 27 July 1895); “The Everlasting Female Again!” (Justice, 30 November 1895); “Mr. Belfort Bax Replies to his Feminist Critics” (New Age, 8 August 1908); The Legal Subjection of Men (London: New Age Press, 1908). É bom lembrar que essa era uma era na qual a maioria das profissões estava vedada às mulheres e, quando casadas, elas não podiam possuir propriedades, não tinham direito a seus filhos e poderiam ser estupradas por seus maridos com impunidade legal. 

  12. Against Leptines 106; in Demosthenes, Orations, vol. 1, trans. J. H. Vince (Cambridge MA: Loeb Classical Library, 1926). 

  13. Veja, p. ex., suas peças Hippeis (Cavaleiros) e Vespas. 

  14. Veja, p. ex., suas peças Os Acarnânios e Lisístrata. 

  15. Veja, p. ex, sua peça Pássaros.