O legado da Grécia Antiga para a liberdade: Heródoto e o caminho de Otanes

Ancient Greece's Legacy for Liberty: Herodotus and the way of Otanes · Tradução de Gabriel Goes
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Heródoto (~484-425 a.C.) é com frequência chamado de “Pai da História”. Ele não foi o primeiro a escrever uma longa narrativa de eventos passados, mas seus predecessores – na medida em que é possível averiguar – foram primariamente analistas, que se contentavam em registrar sequências de incidentes1. A essa tradição, Heródoto adiciona, primeiro, um interesse em explicar o que aconteceu, no lugar de só relatá-lo; segundo, uma tendência de alocar os eventos descritos em um contexto histórico, cultural e político mais amplo; e terceiro, uma atitude crítica (embora inadequada por padrões modernos) em relação às fontes.

Nascido em Halicarnasso (atual Bodrum), uma colônia grega na Ásia Menor, o historiador viveu por todo o mundo grego, de Samos no leste e Thurii no oeste a Atenas na Grécia propriamente dita, além de visitar a Babilônia e o Egito. Sua obra Histórias (a palavra significa, na origem, “investigações”, “pesquisas”, “inquirições” e adquiriu o significado moderno especificamente através de Heródoto) é sobretudo um relato das Guerras Greco-pérsicas, ou Guerras Médicas (499-449 a.C.), mas vai além para traçar as histórias e culturas das várias sociedades envolvidas nesses conflitos. Dessa forma aprende-se, por exemplo, sobre as origens da democracia ateniense, a ascensão do império persa e os costumes e a geografia do Egito.

Embora seja claro que Heródoto prefira a estrutura política relativamente igualitária das cidades gregas em relação à hierarquia autoritária da Pérsia, ele não é um mero chauvinista pelos gregos. Enquanto alguns persas, em particular Xerxes, são apresentados como cruéis e tirânicos, muitos outros são retratados de forma favorável, e nem todos os gregos passam boa imagem. Além disso, Heródoto obviamente admira algumas instituições persas, como seu sistema de correios2. Ao mesmo tempo, ele ironiza a extrema sensibilidade dos persas a diferenças de hierarquia e sua necessidade por saudações diferentes dependendo do grau da disparidade entre status, o que por fim se traduz em: “se um é de posição nobre muito inferior à do outro, deve abaixar-se e venerá-lo”3 – prática que era anátema para os gregos.

Heródoto pode dever sua relativa imparcialidade à representação de personagens simpáticos de ambos os lados da Guerra de Troia feita por Homero; porém, ela também reflete a mente aberta do historiador em relação a costumes e tradições de fora da Grécia. Vimos previamente o fascínio de Heródoto para com diferenças culturais, e em particular sua comparação de práticas funerárias gregas e cárias4, da qual ele retirou a conclusão de que “o costume [nomos] é rei”5.

Não obstante Heródoto veja a proeza militar de uma cidade como expressão de política doméstica adequada6, ele é mais uma exceção do estereótipo do grego que dá grande valor à guerra. Em vez disso, ele põe na boca de Creso, um governante ambicioso castigado pelas consequências da própria ganância e evidente porta-voz (após ser punido) para Heródoto, o seguinte: “ninguém é tão irracional a ponto de escolher, por vontade própria, a guerra em relação à paz, já que, na paz, os filhos enterram seus pais, mas, na guerra, acontece o contrário”.7

Uma das passagens políticas mais conhecidas em Histórias ocorre quando um grupo de sete nobres persas, logo após um golpe de Estado contra o antigo governante, começa a deliberar sobre que tipo de sistema político deve estabelecer. Nesse ponto ocorre um debate, com discursos que, conta Heródoto, “alguns dos helenos não creem terem realmente sido proferidos”, mas “proferidos foram, de qualquer forma”8. O ceticismo dos interlocutores de Heródoto é compreensível, já que o debate parece combinar mais com o contexto da Grécia do século V a.C. do que da Pérsia do século VI a.C. Como com as várias falas registradas no sucessor de Heródoto, Tucídides9, é difícil dizer em que ponto o relato termina e a invenção começa.

De qualquer modo, como Heródoto conta, um nobre, Otanes, fala em defesa da democracia, com base em que, sob um sistema democrático, “cargos do Estado são exercidos por sorteio” e “magistrados são compelidos a ser responsáveis por suas ações” (esse nobre, de forma implausível, parece ter conhecimento detalhado da democracia ateniense, aqui). Em contraste, um autocrata não é responsável pelo exercício de seu poder, e esse fato cria um forte incentivo para abusos:

[C]omo poderia o governo de um só ser algo ordeiro, vendo que o monarca pode fazer o que deseja sem dar qualquer explicação de seus atos? Mesmo o melhor dos homens, fosse ele colocado nessa posição, seria incitado por ela a mudar de sua disposição usual.

Além das preocupações sobre incentivos, Otanes também parece crer que a democracia é inerentemente mais igualitária: “o governo de muitos tem, em primeiro lugar, um nome atrelado a si que é o mais belo de todos, qual seja, ‘Igualdade’” (em outro texto10, Heródoto fala bem da igualdade com suas próprias palavras).

Outro nobre, Megabises, concorda com Otanes sobre os perigos da monarquia, mas não compartilha de seu entusiasmo para com a democracia; em vez disso, ele defende a oligarquia, com o argumento de que “nada é mais irracional ou insolente do que uma multidão inútil”. Sua desconfiança se deve ao fato de que pessoas comuns, sendo inadequadamente educadas, não possuem a sabedoria para exercer poder político; pois “como pode ela [a multidão] saber sem ter sido ensinada algo nobre por outros ou percebido algo por si própria […]?”

Finalmente, um terceiro nobre, Dario, enquanto concorda com Megabises sobre as falhas da democracia, defende a monarquia como preferível à oligarquia, pois um único decisor é melhor em resolver conflitos:

Em uma oligarquia, contudo, com frequência ocorre que muitos, enquanto praticam a virtude em relação à comunidade, têm fortes inimizades privadas que surgem em seu meio; pois, como cada homem deseja ser ele mesmo o líder e sobressair nos conselhos, criam-se conflitos ainda maiores, e daí surgem facções entre eles, e das facções surge o assassinato […]

No caso, a maioria dos nobres é persuadida por Dario, que é por fim escolhido11 para governar como Xá da Pérsia.

Quando essa passagem é extraída em discussões sobre pensamento político antigo, a história normalmente acaba com o último discurso. Entretanto, para um libertário, o mais interessante é o que vem a seguir:

Então, quando Otanes, que desejava dar igualdade aos persas, teve sua opinião derrotada, falou da seguinte maneira aos ali reunidos: “partidários, está claro que um de nós deve tornar-se rei […] Portanto, eu não hei de competir convosco, pois não desejo governar ou ser governado; e, sob essa condição, retiro minha reivindicação, isso é, que eu ou meus descendentes não estejamos submetidos a nenhum de vocês agora ou em tempos futuros”. Quando ele disse isso, os seis firmaram acordo com ele nesses termos, e ele não mais era um competidor, mas sim se retirou da assembleia; e, atualmente, sua casa permanece livre, só ela entre todas as casas persas, e se submete a ser governada somente na medida em que deseja, sem transgredir as leis dos persas.

A última parte, pode-se presumir, significa que Otanes e seus herdeiros recebem isenção somente da autoridade pessoal do Xá, e não das leis consuetudinárias dos persas. Em suma, ao nobre, não desejoso em “governar ou ser governado”, é permitido deixar um sistema político do qual não gosta – uma possibilidade que antecipa, como vimos12, a ideia moderna de panarquia. Embora o sistema que ele queira deixar seja a monarquia, é apenas um pequeno passo para a noção similar de deixar o sistema favorito de Otanes, a democracia (é difícil saber se a casa histórica de Otanes de fato gozou de alguma forma de isenção legal, e se sim, de que tipo, de que grau e por que causa).

A simpatia de Heródoto parece estar com Otanes no debate; ele celebra o sistema ateniense13, e as preocupações do nobre com governantes irresponsáveis são confirmadas pelos muitos relatos do historiador dos excessos cometidos por estadistas vãos cujas ambições foram longe demais sem freios. O principal exemplo é o sucessor de Dario, Xerxes, que Heródoto retrata como um homem patologicamente incapaz de aceitar qualquer limitação ou oposição: em certo ponto, ele ordena que as águas do Helesponto sejam chicoteadas pois impedem seu progresso14; em outro, promete garantir um favor a um requerente, mas quando o favor mostra-se ser a isenção do serviço militar para o filho favorito do requerente, Xerxes, em fúria, rasga o rapaz ao meio e faz com que seu exército marche por entre as metades15.

Os relatos também dão conta de que o imperador persa era lançado em um acesso de raiva toda vez que seus planos eram questionados ou criticados16 (uma característica bastante típica de ditadores da vida real), de maneira que, antes de oferecer ajuda, seus conselheiros deveriam perguntar: “ó rei, devo eu dizer a verdade ao falar com vossa majestade, ou aquilo que lhe dá prazer?”17 Contra Xerxes, Heródoto coloca na boca de seu assessor Artabano uma defesa do ideal distintamente ateniense da liberdade de expressão:

Ó rei, se opiniões discordantes não podem ser expressas, não é possível selecionar a melhor delas ao fazer uma escolha; se, contudo, elas forem proferidas, isso é possível; da mesma forma, não distinguimos o ouro livre de liga quando está só, mas quando o esfregamos na pedra de toque e o comparamos com outras peças de ouro, então somos capazes de decidir qual é melhor.18

Aqui há uma declaração antecipada do caso epistemológico pela liberdade de expressão, hoje mais associada com A Liberdade, de John Stuart Mill19.

Além disso, Xerxes também é mostrado como alguém que subestima a efetividade militar de sociedades não autocráticas (em específico, as gregas que tenta conquistar):

[C]omo poderiam mil, dez mil ou mesmo cinquenta mil, ao menos se forem todos igualmente livres e não governados por um homem, opor-se a um exército tão grande? […] Se de fato fossem governados por um homem, como nós, poderiam, talvez por medo, tornar-se mais corajosos do que é de sua natureza, ou ser compelidos pelo chicote a lutar contra números maiores; mas, se deixados em liberdade, não fariam nenhuma dessas coisas: e eu, por minha parte, suponho que, mesmo se iguais em números, os helenos nem sequer ousariam lutar contra os persas […]20

Heródoto, em contraste, claramente credita a eventual vitória militar dos gregos à sua estrutura social mais horizontal e igualitária. Ele desenha uma oposição implícita, no entanto, entre as formas pelas quais isso ocorre em Esparta e Atenas, respectivamente. Segundo o relato do historiador, o assessor grego de Xerxes, Demarato, diz o seguinte sobre Esparta ao governante:

[O]s lacedemônios não são inferiores a qualquer homem lutando um contra um, e são os melhores de todos quando lutam em grupo: pois, embora livres, não são livres em todas as coisas, já que sobre eles está a Lei como mestra, a quem temem muito mais do que os persas temem vossa majestade. É certo que, ao menos, fazem tudo que esse mestre comanda; e ele comanda sempre a mesma coisa, qual seja, que não fujam de qualquer número de adversários, mas sigam em seus postos e ganhem a batalha ou a percam.21

O relato de Heródoto da proeza militar ateniense, em suas próprias palavras, é um pouco diferente:

Os atenienses, por conseguinte, cresceram em poder; e é evidente, não de uma só forma, mas de todas, que Igualdade é uma excelente coisa, já que os atenienses, enquanto governados por déspotas, não eram melhores na guerra do que aqueles que vivem em suas cercanias, enquanto depois que dos autocratas se livraram, tornaram-se por ampla margem os melhores. Isso prova que, quando colocados para baixo, eram deliberadamente indolentes, pois trabalhavam para um mestre, ao passo que, quando libertados, cada um estava ávido por alcançar algo para si.22

Em resumo, na medida em que espartanos são levados a atos de coragem por medo de sanções sociais, atenienses o são por ambição pessoal, surgida a partir da liberdade individual. De fato, o contraste delineado pelo historiador aqui prefigura o que Tucídides fará com que Péricles diga sobre a diferença entre a coragem em Atenas e Esparta: enquanto os espartanos “de seus berços, por árdua disciplina, perseguem a masculinidade”, em Atenas “vivemos como desejamos”, e, então, “estamos tão preparados para encontrar qualquer perigo legítimo” quanto os espartanos, mas “com hábitos não de labuta, mas de sossego, e coragem não de técnica, mas de natureza”23. Embora Heródoto pareça preferir tanto a versão ateniense quanto a espartana de igualdade em relação à autocracia persa, no fim ele favorece, como Péricles, o sistema de Atenas, com seu lugar para o interesse próprio, em vez do de Esparta, com seu medo socialmente inculcado.

Não obstante, o historiador também se preocupa com os efeitos corruptores do luxo; a riqueza e a ganância de Creso, por exemplo, são mostradas como causas, em grande parte, de sua queda. Ao longo de Histórias, Heródoto continuamente contrasta a riqueza dos persas com a pobreza dos (enfim vitoriosos) gregos, e conclui a obra com a observação de que “de terras não rudes, homens não rudes hão de surgir”, de maneira que sociedades podem se ver frente a frente com a escolha de “habitar terras pobres e governar” ou, em vez disso, “cultivar uma planície e ser escravos de outros”24. Entretanto, se o interesse próprio libertado por um regime de relativa liberdade faz uma sociedade inicialmente mais capaz de se defender, ele também leva ao tipo de riqueza material que acaba por minar as capacidades defensivas no longo prazo?

Notas

  1. Os escritos dos predecessores gregos de Heródoto estão, na maior parte, perdidos; a julgar por relatos sobreviventes, ao menos um deles, Hecateu de Mileto, pode ter sido mais do que um mero analista. Em comparação, obras mais antigas da tradição chinesa ainda sobrevivem, mas parecem ser amplamente de análise até a aparição de Sima Qian (Ssu-ma Chien), o primeiro historiador sistemático da China, muito posterior a Heródoto. 

  2. O lema não oficial dos Correios dos Estados Unidos – “Nem neve, nem chuva, nem calor ou a escuridão da noite impede esses carteiros de completar com rapidez seus percursos designados” – é retirado da descrição de Heródoto do sistema persa em Histories VIII.98. 

  3. Herodotus, Histories I.134; George C. Macaulay trad., The History of Herodotus (London: Macmillan, 1890). 

  4. Veja a parte 6 desta série. 

  5. Herodotus, Histories III.38; George C. Macaulay trad., The History of Herodotus (London: Macmillan, 1890). 

  6. Histories V.78. 

  7. Histories I.87

  8. Histories III.80-83. 

  9. Veja a nota de rodapé 6 para a parte 7 desta série. 

  10. Histories V.78. 

  11. Bem, não exatamente escolhido – ele fraudou o sistema. Mas essa é outra história. 

  12. Veja a nota de rodapé 13 para parte 17 desta série. 

  13. Histories V.78. 

  14. Histories VII.34

  15. Histories VII.38-40. 

  16. Veja, p. ex. Histories VII.11. 

  17. Histories VII.101. 

  18. Histories VII.10. 

  19. Uma passagem similar ocorre no supracitado Sima Qian; veja Roderick T. Long, “Austro-Libertarian Themes in Early Confucianism,” p. 58; in Journal of Libertarian Studies 17. 3 (Summer 2003), pp. 35-62. 

  20. Histories VII.103. 

  21. Histories VII.104. 

  22. Histories V.78

  23. Thucydides, History of the Peloponnesian War, trad. Richard Crawley (London: Longmans Green, 1874), II.6. 

  24. Histories IX.122