O legado da Grécia Antiga para a liberdade: Como a competição criou a filosofia grega

Ancient Greece's Legacy for Liberty: How Competition Created Greek Philosophy · Tradução de Gabriel Goes
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Toda cultura tem uma filosofia, se o que se quer dizer com “filosofia” é uma visão geral de mundo que define a natureza da realidade, dos seres humanos e dos padrões aceitáveis de conduta social e individual. Contudo, se se entende “filosofia” no sentido estrito de uma disciplina intelectual que busca formular tal visão de mundo através de argumentos racionais, sem apelo à tradição ou à autoridade, então a filosofia parece ter surgido, de forma independente, apenas três vezes na história humana: na Índia, na China e na Grécia, nas três por volta dos séculos VII e VI a.C.1

Conquanto as pré-condições econômicas, sociais, políticas e culturais para o surgimento da filosofia sejam, sem dúvida, muitas, um fator importante parece ser o da competição intelectual. Onde aqueles que propõem uma determinada visão de mundo são capazes de manter um monopólio, não precisam defender suas doutrinas por meio de argumentos; críticos podem ser silenciados, ou nem sequer pensam em se tornar críticos em primeiro lugar. Porém, em casos nos quais não é prático impor uma perspectiva única por meios autoritários, aqueles que desejam ver suas opiniões aceitas têm de oferecer razões; daí pode surgir um incentivo para argumentação e debate. De maneira semelhante, aqueles que buscam a verdade não podem mais simplesmente ir aos anciãos da tribo para conseguir respostas, pois não há um único grupo de anciãos a que recorrer; frente a reivindicações rivais sobre a sabedoria, o questionador deve procurar evidências que favoreçam um conjunto de reivindicações sobre outro. Dessa forma, a filosofia pode ser vista como prole da boa Discórdia de Hesíodo.

A competição intelectual parece ter desempenhado um papel no surgimento da filosofia nas três tradições, mas de maneiras diferentes. Na Índia, uma prática de discussão e debate aparentemente tomou forma na competição por autoridade espiritual entre as classes de brahmin e kshatriya – de fato, entre Igreja e Estado. Na China, a rivalidade entre as “Cem Escolas de Pensamento” cresceu por meio do desejo de burocratas deslocados e funcionários políticos de ocupar o posto de conselheiro político para príncipes locais e comandantes militares que criavam novos reinos independentes a partir dos resquícios evanescentes da Dinastia Zhou.

No caso da Grécia, a competição aparenta ter tido um componente multicultural. Em uma época na qual a viagem pelo mar era mais fácil e segura do que pela terra, o Mediterrâneo oriental, com suas milhares de ilhas (muitas delas marcos para navegantes) e águas calmas (em comparação com o oceano aberto, ao menos), era ideal para viagens de comércio. Tais negociações – tanto de comunidades gregas entre si quanto delas com nações estrangeiras como o Egito, a Itália e o Império Persa – promoveram a troca de ideias, além da de bens. O filósofo da ciência Karl Popper descreve a “ascensão da poesia, da arte, da filosofia e da ciência gregas”, e, portanto, a “origem do racionalismo ocidental”, como “amplamente devida ao choque entre culturas”. Como Popper aponta, a filosofia surgiu na periferia do mundo grego, ao invés de no interior da própria Grécia:

Olhemos por um momento para a origem da filosofia e da ciência gregas. Tudo começou nas colônias gregas na Ásia Menor, no sul da Itália e na Sicília. Esses são os lugares nos quais os colonizadores gregos foram confrontados com as grandes civilizações do Oriente e se chocaram com elas, ou nos quais, no Ocidente, eles se encontraram com sicilianos, cartaginenses e italianos […]2

É mais difícil continuar confiante de que a lua é uma deusa, por exemplo, quando seus parceiros de comércio egípcios estão igualmente confiantes de que a lua é um deus. Por isso, o confronto com culturas diferentes provoca a necessidade de descobrir a verdade, em vez de simplesmente tomar como certas as tradições da cultura. O fluxo de riqueza gerado pelo comércio também tendeu a suplantar a autoridade da aristocracia tradicional, à medida que o poder econômico em muitas cidades se deslocava para a classe média.

A competição dentro da própria Grécia provavelmente também desempenhou um papel importante. O mundo grego, como seus espelhos na Índia e na China, era descentralizado na esfera política. Ademais, a religião grega não tinha uma escritura sagrada e, como era mais focada na prática do que na doutrina, também não possuía uma lista oficial de dogmas inquestionáveis3. Com efeito, havia limites à tolerância para com o ecletismo religioso; Anaxágoras, por exemplo, imiscuiu-se em problemas com a lei por afirmar que o sol era uma rocha incandescente, e não um deus. Contudo, não havia um equivalente pagão grego à insistência cristã medieval na conformidade com as detalhadas minúcias doutrinárias sobre a natureza precisa da Trindade ou da Encarnação; dessa forma, o leque permissível de divergências e diversidade era significativamente maior.

A afirmação de que a filosofia grega surgiu, em parte, por meio do contato multicultural não deveria ser confundida com a declaração de que os gregos encontraram a disciplina da filosofia já existente em outra cultura e simplesmente se apropriaram dela (ou a roubaram) para si mesmos.4 Aqueles que indicam, em particular, o Egito como “verdadeira fonte” da filosofia grega identificaram, de forma plausível, algumas similaridades na doutrina que sugerem provável influência; mas os textos gregos se diferenciam dos egípcios por usualmente conter argumentos para suas doutrinas, ao passo que as doutrinas equivalentes nos textos egípcios são meramente enunciadas, não defendidas. Doutrinas sem argumentos, conquanto possam servir como matéria-prima para a reflexão filosófica, não são, em si mesmas, filosofia.

Os gregos clássicos se mostravam fascinados por diferenças culturais. O historiador Heródoto relembra um exemplo famoso, sobre ética:

Dario, em determinado momento de seu reino, convocou aqueles dos helenos que estavam presentes em sua terra e perguntou-lhes por que preço consentiriam em se alimentar dos cadáveres de seus pais quando esses morressem; e eles responderam que por preço algum o fariam. Depois disso, Dario convocou alguns indianos, chamados Cários, que consomem seus pais, e perguntou-lhes, na presença dos helenos, que entendiam o que era dito por meio de um intérprete, por que preço eles consentiriam em atear fogo aos corpos de seus progenitores quando esses morressem; e eles gritaram e imploraram ao imperador que não pronunciasse tais palavras. […] Já que, se alguém propusesse a todos os homens uma escolha, pedindo-lhes que selecionassem, de todos os costumes existentes, aqueles que considerassem os melhores, cada raça, depois de examiná-los todos, selecionaria os costumes de seu próprio povo; portanto, todos pensam que seus próprios costumes são, de longe, os melhores […]5

E o filósofo Xenófanes descreve outro exemplo, sobre teologia:

Os etíopes afirmam que seus deuses são negros e de nariz arrebitado; Os trácios, que seus deuses têm olhos azuis e cabelos ruivos. […] Mas se cavalos ou bois ou leões tivessem mãos ou pudessem desenhar com suas patas e alcançar feitos como os dos homens, cavalos desenhariam as figuras de deuses similares a cavalos, e bois, similares a bois, e fariam os corpos do tipo que cada um possui.6

No entanto, contrário tanto à predição de Heródoto quanto à própria, ao escolher entre opiniões teológicas, Xenófanes não “seleciona aquelas de seu próprio povo”, nem tampouco imputa aos deuses “corpos do tipo” possuído por gregos ou mesmo humanos em geral. Em vez disso, ele rejeita o politeísmo antropomórfico da mitologia grega em favor de uma deidade única, incorpórea, imutável, esférica, onisciente e moralmente perfeita, com base na afirmativa de que tal concepção é mais adequada ao status de um deus do que as das histórias tradicionais. Em suma, Xenófanes responde ao fenômeno da diversidade religiosa por meio da busca pela concepção mais racionalmente defensável de um deus, mesmo que ela se distancie de maneira brusca de tudo que as autoridades ensinam.

Os filósofos eram “amantes da sabedoria”, no sentido de buscar a sabedoria, ou, mais precisamente, buscar padrões através dos quais é possível distinguir a sabedoria genuína daquela falsa. Em sua recusa de se curvar sem questionamentos à autoridade, a filosofia grega era sem dúvida libertária, não só na origem mas no método – mesmo que nem sempre no conteúdo.

Notas

  1. Dado que a Índia se encontra geograficamente entre a China e a Grécia, e sua tradição filosófica parece ser um pouco mais antiga do que a dos outros dois, a possibilidade da influência indiana sobre as origens das filosofias grega e chinesa não pode ser descartada. Não há, contudo, qualquer evidência definitiva em favor de tal influência. 

  2. Karl R. Popper, The Myth of the Framework: In Defence of Science and Rationality (Routledge, 2014), p. 38. 

  3. As características da religião grega encontram paralelos nas religiões chinesa e indiana também. A Índia possuí, de fato, uma escritura sagrada nos Vedas, mas eles são mais devotados a instruções sobre a prática do que a doutrinas – e por isso os filósofos ateus da escola de Purva-Mimamsa foram capazes de reivindicar um posto na ortodoxia hindu. 

  4. Veja, p.ex., George G. M. James, Stolen Legacy: The Greeks Were Not the Authors of Greek Philosophy, But the People of North Africa, Commonly Called the Egyptians (New York Philosophical Library, 1954), and Martin Bernal, Black Athena: The Afroasiatic Roots of Classical Civilization (Rutgers University Press, 1987); for critique, see Mary Lefkowitz, Not Out Of Africa: How “Afrocentrism” Became an Excuse to Teach Myth As History (Basic Books, 1996), and Mary R. Lefkowitz and Guy MacLean Rogers, eds., Black Athena Revisited (University of North Carolina Press, 1996).

    Em meu julgamento, pesquisadores “afrocentristas” como James e Bernal revelam-se ansiosos demais em ler similaridades vagas como se fossem específicas, similaridades específicas como se fossem evidência de influência, e evidência de influência como evidência de “roubo” (embora Bernal seja muito mais nuançado do que James nesses aspects). Por outro lado, críticos do afrocentrismo, como Lefkowitz, podem ser também ansiosos em minimizar evidências de influência. Penso que temos boa base para pensar que os filósofos gregos pegaram um bom número de ideias do Egito – menos do que os afrocentristas imaginam, mas mais do que os críticos do afrocentrismo tendem a reconhecer. Não vejo evidência, contudo, de que os egípcios tivessem desenvolvido o método filosófico. 

  5. Herodotus, Histories III.38, George Campbell Macaulay translation. (para uma tradução da obra, aqui

  6. Xenophanes, Fragments 15-16: James H. Lesher, trans., Xenophanes of Colophon: Fragments: A Text and Translation With a Commentary (University of Toronto Press, 2001), pp. 89-90.