O legado da Grécia Antiga para a liberdade: Bancando a liberdade em Atenas

Ancient Greece's Legacy for Liberty: Banking for Freedom in Athens · Tradução de Gabriel Goes
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Em meu último ensaio, descrevi o papel da liberdade econômica na Atenas antiga. Agora me volto para uma instância mais específica, que serviu em particular para dar poder aos setores mais fragilizados da sociedade ateniense (mulheres, imigrantes e escravos) – a indústria bancária.

O sistema bancário ateniense, às vezes dispensado como mera rede de penhoras, parece ter sido muito mais sofisticado do que é tradicionalmente reconhecido. Um estudioso recente, Edward Cohen, nota:

Ao garantir o pagamento de fundos em locais distantes, os bancos […] permitiam aos consumidores evitar os perigos e a inconveniência inerente em transportar uma carga vultosa de moedas ou barras de metais preciosos. Dessa forma, quando Estrátocles precisava de fundos disponíveis no remoto Mar Negro, para o qual estava prestes a viajar, para ele era possível deixar o próprio dinheiro como empréstimo em Atenas e levar, no lugar, uma garantia de pagamento de capital e juros sobre 300 estáteres [moeda comum na Grécia antiga] cízicos [relativo à cidade de Cízico].1

Na perspectiva de Cohen, era o caráter relativamente laissez-faire da legislação econômica de Atenas que possibilitava aos bancos serem tão bem-sucedidos – e a se envolverem em experimentações saudáveis e competitivas:

Nenhuma atividade era proibida pelo governo, nenhuma atividade era ordenada pelo governo. […] [A] ausência de restrição governamental ou monopólio econômico […] resultava em um amplo leque de termos e de mecanismos através dos quais os banqueiros buscavam fundos.2

Cohen argumenta que a sofisticação do sistema bancário foi subestimada em parte porque grande parte dele se encontrava no que hoje poderia ser chamado de “setor informal”. Conquanto essa “economia escondida” tenha tradicionalmente “recebido pouca atenção” de pesquisadores que trabalham com a antiguidade clássica, escreve Cohen, “economistas contemporâneos passaram a atribuir a tais mercados ‘clandestinos’ ou ‘paralelos’ várias funções econômicas autênticas”:

Em vez de um desafio imoral à autoridade legítima, a evasão dos absurdos ou ineficiências governamentais, que iam desde sistemas contraproducentes ou ineficazes de taxação até restrições à livre operação do comércio, por parte dos mercados clandestinos, é hoje reconhecida como fundamental em muitas sociedades para o funcionamento mínimo da economia como um todo.3

Um dos traços mais marcantes do sistema bancário ateniense eram as oportunidades que permitia a mulheres e escravos. Já que os cidadãos atenienses preferiam, em larga medida, a autonomia na hora de trabalhar ao emprego assalariado, o que deixava o último para as classes mais pobres e menos qualificadas, era difícil para banqueiros encontrar empregados capacitados; dessa maneira, um banqueiro tenderia a confiar muito de seu negócio à sua mulher, aos seus escravos ou a ambos. Como resultado, mulheres e escravos de banqueiros acabavam sendo os únicos aptos a herdar a empresa. Cohen descreve as consequências:

Na ocasião da morte do proprietário, o controle da operação bancária – com o poder e a propriedade correspondentes – era rotineiramente deixado não para um herdeiro homem, mas para um escravo e para a viúva – que, então, casavam-se. Embora o padrão fosse um tanto quanto surpreendente até para cidadãos atenienses (e foi em ampla medida ignorado pelos estudos modernos), essa conjunção de cônjuge e escravo era uma resposta natural aos fatores legais, sociais e econômicos inerentes à estrutura da vida em Atenas.4

É claro que o casamento com um escravo ou ex-escravo seria ilegal para um cidadão ateniense; isso pode ajudar a explicar por que a maioria dos banqueiros era de metecos, em vez de cidadãos.

Como poderiam ser legalmente viáveis os bancos gerenciados por mulheres, escravos e ex-escravos? Pela estrita letra da lei ateniense, “as prerrogativas econômicas diretas de uma mulher eram […] bastante inferiores aos direitos de propriedade de mulheres em outras comunidades gregas, também dominadas por homens”; contudo, na prática, “encontra-se a lei adaptando-se à realidade econômica ao acomodar as necessidades pessoais e de propriedade das viúvas de banqueiros” através de uma política de “tolerância silenciosa”, que “evitava aplicar as provisões previstas em lei” as quais, de outra forma, teriam impedido o envolvimento das mulheres no comércio.5

Outra pesquisadora contemporânea, Virginia Hunter, explica que

as mulheres participavam em uma série completamente nova de transações que imitavam aquelas dos homens, codificadas em lei. Não só elas possuíam propriedade, incluindo terras, mas presenteavam seus filhos e escreviam testamentos vistos como válidos por aqueles que as cercavam. A autoridade das mulheres para fazer essas coisas não era nem garantida, nem protegida, nem proibida pela lei. Era espontânea e não codificada, exercida na esfera privada, assunto de prática familiar, ampla e publicamente aceita fora do âmbito da família como parte das competências da mulher.6

Escravos beneficiavam-se da mesma política de frouxidão legal; Cohen escreve que as “cortes atenienses […] ignoravam de forma substancial o status pessoal em assuntos mercantis”, o que significava que, na prática, “escravos poderiam tomar parte em processos comerciais” mesmo que fossem tecnicamente inelegíveis.7

Ao diagnosticar o nível de liberdade em uma sociedade antiga, tendemos a focar no texto oficial da lei; porém, a realidade pode se desviar desse texto, tanto para o mal – a constituição soviética, por exemplo, garantia, teoricamente, liberdades robustas de expressão, imprensa, religião, associação e protesto público8, mas o registro da prática soviética ficou “um pouco” aquém dessa promessa –, quanto para o bem (uma “constituição”, no sentido de um documento escrito, quando uma sociedade a possui, nem sempre é um guia confiável para a “constituição” (politeia) de tal sociedade, no sentido original da forma como funciona um sistema político – sua estrutura de instituições e incentivos). A política bancária era uma área na qual os desvios atenienses da letra da lei funcionavam para o bem.

Pensadores anarquistas modernos como Samuel E. Konkin III e James C. Scott escreveram sobre o potencial libertador do setor informal.9 A mesma dinâmica parece ter entrado em ação na Atenas antiga.

Notas

  1. Edward E. Cohen, Athenian Economy and Society: A Banking Perspective (Princeton: Princeton University Press, 1992), pp. 15-16. 

  2. Cohen (1992), pp. 41-44, 112. 

  3. Cohen (1992), pp. 191-192. 

  4. Cohen (1992), p. 61. 

  5. Cohen (1992), pp. 101-102. 

  6. Virginia J. Hunter, Policing Athens: Social Control in the Attic Lawsuits, 420-320 B.C. (Princeton: Princeton University Press, 1994), p. 29. 

  7. Cohen (1992), p. 96. 

  8. Constituição de 1936 da União Soviética, capítulo 10 [em inglês] 

  9. Sobre Konkin, veja o texto de David S. D’Amato, “Black-Market Activism: Samuel Edward Konkin III and Agorism”, Libertarianism.org (28 April 2015); sobre Scott, veja o texto de Kevin A. Carson, “Legibility and Control: Themes in the Work of James C. Scott”, Center for a Stateless Society Paper No. 12 (Inverno/Primavera de 2011).