O legado da Grécia Antiga para a liberdade: A divina comédia de Aristófanes

Ancient Greece's Legacy for Liberty: Aristophanes' Divine Comedy · Tradução de Gabriel Goes
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Aqueles que tratam o próximo com justeza serão recompensados com sucesso mundano, enquanto os que assassinam, roubam e fraudam hão de se deparar com pobreza e discórdia, pois os deuses amam a virtude e odeiam o vício. Ao menos foi o que Hesíodo disse a seus leitores – e, ao mesmo tempo, admitiu que a justiça divina poderia ser um pouco lenta e que ele dificilmente encontraria alívio da injustiça enquanto vivesse.1

Já na era de Aristófanes, por volta de três séculos mais tarde, o longo prazo parecia cada vez mais longo, e o ceticismo em relação à justiça divina crescia. Em um fragmento da peça perdida Sísifo, de autoria desconhecida2, a existência dos deuses e sua preocupação com a justiça humana são descritas como um mito para manter os malfeitores em xeque:

Primeiro, um homem sagaz, sábio de julgamento,

Encontrou para os mortais o medo dos deuses,

Para dessa maneira assustar os perversos, caso

Ajam, falem ou mesmo conspirem em segredo.

Foi assim que ele apresentou aos homens o divino […]3

A preocupação de que um comprometimento em declínio para com a religião tradicional pudesse minar a moralidade pública é recorrente nas peças de Aristófanes; contudo, o próprio goza sem piedade tanto dos deuses da religião grega, quanto dos sacerdotes que a serviam. Em As Rãs, por exemplo, Dioniso é retratado como covarde e efeminado; enquanto isso, em A Paz e As Aves, os protagonistas humanos conseguem vencer pela astúcia algumas deidades um tanto quanto bufonas. Além disso, como vimos no último texto4, o tema central de Pluto ou Um Deus chamado Dinheiro era que o deus da riqueza distribui suas bênçãos de forma aleatória, em vez de meritoriamente – uma reclamação que pode muito bem servir para solapar a confiança na justiça divina.

Uma das acusações que Aristófanes parece mover contra os novos intelectuais, como Eurípides e Sócrates, é que eles encorajam a descrença nos deuses. Em As Tesmoforiantes, uma das duas peças devotadas a criticar Eurípides (a outra é As Rãs), é dito que “esse camarada, em suas tragédias / fez com que acreditassem / que os deuses não existem”5. É claro, nenhuma peça sobrevivente do acusado ensina literalmente que não há deuses (a não ser que o fragmento de Sísifo venha da pena dele, o que é possível); porém, é verdade que os deuses passam uma impressão bastante ruim em alguns momentos de suas obras6 – embora isso seja também verdade para o material mitológico que ele usa como fonte.

Em As Nuvens, o autor cômico coloca as seguintes palavras na boca de Sócrates: “Tu hás de jurar pelos deuses, não? / Não te enganes: os deuses não são moeda de curso forçado aqui”7. Em contraste, outras fontes antigas sobre Sócrates o representam como crente em deidades – contudo, elas de fato descrevem que ele rejeitava a verdade literal dos mitos que apresentam os deuses como irascíveis e movidos por suas paixões8. É difícil ver como Sócrates pode ser tachado de ímpio por ter rejeitado o lado vergonhoso dos mitos gregos, se ao mesmo tempo Eurípides é culpado por impiedade por aceitar esse mesmo lado.

Aristófanes faz com que Sócrates exprima uma explicação científica de fenômenos meteorológicos tradicionalmente atribuídos a Zeus:

– Pela Terra, não estás dizendo

que Zeus não é um deus do Olimpo, estás?

– Que queres dizer com “Zeus”? Pares de asneiras.

Zeus não existe.

– O que queres dizer? Quem, então, faz chover?

Não prossigas antes de me responderes isso.

– Ora, essas [nuvens], é claro,

e lhe fornecerei prova irrefutável.

Já vistes chuva sem nuvens?

De outra forma, Zeus teria de produzir a chuva ele mesmo

quando as nuvens não estão em casa. […]

– E eu que sempre pensei que a chuva

era Zeus mijando em uma peneira. […]

Mas quem é que, diz-me,

faz o trovão e me dá arrepios? […]

– Quando as nuvens estão encharcadas de água […]

e esbarram umas nas outras, elas explodem. […]

– Ah, mas o relâmpago – explica isso! […]

– Quando um vento seco ascende à atmosfera,

fica preso nessas Nuvens

e o vento as sopra como a uma bexiga

então, por pressão, rasga-as ao meio

por causa da densidade e

carboniza-se e torna-se nada

por causa da fricção e da velocidade.9

Em outras fontes, Sócrates mostra-se muito mais desinteressado em questões científicas, preferindo focar-se em ética; por isso é comumente assumido que Aristófanes está usando Sócrates como substituto para os intelectuais modernos no geral, o que pode muito bem ser verdade. Contudo, Platão de fato conta10 que Sócrates estava interessado na ciência em sua juventude, e, já que As Nuvens é ao menos um quarto de século mais antigo do que as outras principais fontes de informação sobre o filósofo, é possível que Aristófanes fosse familiar com um Sócrates “mais científico”.

O dramaturgo também apresenta Sócrates como professor das artes gêmeas do “Argumento Justo” e do “Argumento Injusto” – isso é, a habilidade de argumentar tanto do lado certo quanto do errado em todos os casos –, com a implicação de que essa habilidade moralmente dúbia anda lado a lado com o ceticismo teológico do filósofo. Essa acusação é, em geral, tratada como injusta, na medida em que, enquanto alguns pensadores gregos (como os sofistas Protágoras e Górgias) realmente ofertavam o ensino dessa habilidade, Sócrates é retratado como crítico dela (veja, por exemplo, o diálogo platônico Górgias, em que Sócrates vê com maus olhos qualquer argumento que seja indiferente à verdade). Contudo, o próprio Sócrates às vezes propõe o que parece o lado errado de um caso, como em Hípias Menor, de Platão, no qual ele argumenta que é melhor errar voluntariamente do que de forma involuntária. É provável que esse argumento tenha sido pensado como uma reductio ad absurdum da tese de que é possível errar voluntariamente, mas isso pode não ser óbvio para um ouvinte casual; e, de qualquer forma, essa interpretação só confirmaria que Sócrates, por vezes, argumentava em favor de proposições nas quais não acreditava.

De qualquer forma, a própria peça de Aristófanes inclui argumentos antiteístas que ficam sem resposta; por exemplo, quando Estrepsíades ventila a opinião de que o raio é “o que Zeus lança contra os perjuros”, Sócrates contra-argumenta:

Se ele ataca os perjuros, por que já não atacou

Símon, Cleônimo ou Teoro, perjuros assíduos?

Em vez disso, ataca seu próprio templo, […]

assim como os poderosos carvalhos. O que ele tem em mente?

A árvore do carvalho dificilmente há de cometer perjúrio.11

Se há uma resposta adequada a essa argumentação cética, o autor não a fornece.

Como observado previamente, em Pluto ou Um Deus chamado Dinheiro, a restauração da visão do deus da riqueza traz uma distribuição do dinheiro de acordo com o mérito. Como resultado, a grande maioria das pessoas não sente mais a necessidade de fazer sacrifícios aos deuses, pois já possui as bênçãos por que pediria normalmente. E mais: os sacerdotes, acostumados a consumir os alimentos que os devotos ofereciam aos deuses, passaram a ficar famintos. Como um deles reclama:

Estou morrendo de fome

Desde que Pluto recuperou sua visão.

Simplesmente não tenho o que comer. Eu, sacerdote de Zeus, o salvador! […]

Ninguém faz sacrifícios. Ninguém toma o tempo. […]

Nos dias em que as pessoas não tinham nada, o comerciante,

voltando são e salvo de suas viagens,

ofereceria um sacrifício em agradecimento,

assim como um homem absolvido no tribunal,

e os sacrificadores pediriam que eu fosse o sacerdote.

Mas não é mais assim.

Ninguém oferece nada ou põe o pé

no templo, exceto para encontrar um banheiro […]12

É importante observar que o sacerdote não parece ser virtuoso, já que, assim fosse, teria se beneficiado do novo sistema sem a ajuda de quaisquer suplicantes.

Os próprios deuses provam ser não menos mercenários. Hermes, o mensageiro divino, reclama para Crêmilo, o humano que conseguiu que a visão de Pluto fosse recuperada:

É Zeus, seu patife.

Ele está com um humor terrível e pronto para esmagá-los a todos […]

Porque cometeram o crime mais hediondo.

Desde que Pluto voltou a ver,

ninguém se importou em sacrificar algo para nós, os deuses:

nenhum incenso, folha de louro, bolo de cevada, animal abatido –

nenhuma maldita coisa.13

O tema de deuses ansiosos em sua ganância por receber oferendas e sacrifícios feitos pelos devotos mortais ocorre novamente em As Mulheres na Assembleia, em que a avareza divina é tratada como justificativa para que os humanos se comportem de forma similar. Um personagem, quando questionado “Queres dizer que deveríamos simplesmente pegar?”, responde:

Pelos deuses, sim! Façam como as deidades fariam.

Não é óbvio que, quando rezamos perante suas efígies,

elas estão desejosas?

Estão lá, mãos estendidas, palmas para cima,

não para dar, mas para receber.14

De forma similar, em As Aves, o ateniense Pistêitaro lança os deuses em um frenesi de desespero ao fazer com que os pássaros do céu imponham um embargo ao comércio entre deuses e mortais:

Já os deuses,

hás de matá-los de fome, como os desafortunados

habitantes de Melos.

Porque entre nós e eles está o ar. Certo?

E da mesma forma que necessitamos de vistos dos Beócios

quando queremos visitar Delfos, também os humanos,

quando sacrificarem aos deuses, necessitarão de vistos

de vocês [as aves], para que o saboroso cheiro de torresmo frito

chegue aos céus.15

Há uma óbvia referência no trecho ao duro tratamento dado por Atenas a Melos, o qual foi discutido previamente, em conexão com As Troianas, de Eurípides16 (esse incidente será comentado de novo quando debatermos Tucídides).

A descrição vergonhosa dos deuses (e de seus sacerdotes), como seres movidos pela ganância por sacrifícios, fornecida por Aristófanes, pode parecer incongruente em um autor que, de outra forma, é bastante generoso em acusar os outros de minarem a moralidade tradicional por não respeitar os deuses. Pode-se, contudo, ver como alvo da sátira do dramaturgo não os deuses, mas sim uma certa concepção popular deles e de sua relação com os seres humanos.

Em uma passagem de Eutífron, de Platão, que pode muito bem ter sido inspirada por uma reflexão sobre Aristófanes, e em particular sobre a cena do embargo em As Aves, Sócrates goza das concepções excessivamente mercantis da religião:

– Mas, diz-me, o que é esse “serviço aos deuses”? Dizes que é pedir

e dar a eles? […] E pedidos adequados seriam aqueles pelo que necessitamos

deles, pedindo-lhes por essas coisas? […]

E, novamente, dar de maneira adequada seria dar o que calhou de quererem

de nós, para que forneçamo-las? […]

– É isso, Sócrates.

– Então a piedade, para deuses e homens, Eutífron, seria uma habilidade

para que uns e outros comerciem entre si?17

Esse aspecto comercial é certamente uma característica usual de rezas antigas, que costumavam começar com um lembrete dos serviços que o suplicante já prestara aos deuses, seguido por um pedido por favor divino em retorno. Porém, quando Sócrates questiona se um devoto tem a capacidade de “beneficiar os deuses e torná-los melhores”, de forma que o que faz “resulte em alguma melhoria nos deuses”18, seu interlocutor logo nega que “os deuses se beneficiam do que recebem de nós”19 e, então, o modelo de trocas comerciais das relações humano-divinas é rejeitado.

Portanto, Aristófanes, explicitamente em desacordo com Sócrates no tema da religião, pode estar mais próximo de se tornar um alvo das próprias críticas do que percebe: ambos os pensadores satirizam atitudes populares em relação à oração como baseada em um modelo inadequadamente mercantil de relacionamento entre os deuses e a humanidade.

No fim das contas, o dramaturgo oferece à sua plateia parca orientação de como reconciliar a noção tradicional dos deuses como garantidores da justiça com o Zeus que explode árvores inofensivas e os próprios templos com seus raios, enquanto permite aos perjuros que sigam livres. A preocupação de Hesíodo permanece: se os deuses não premiam a justiça e punem a injustiça, que razão temos para tratar nossos vizinhos de forma justa? Ou a justiça é recompensada, afinal, mas de maneira diferente daquela que Hesíodo esperava? Essas são questões que Sócrates e seus seguidores endereçarão.

Notas

  1. Veja a parte 5 desta série. 

  2. Algumas fontes atribuem a peça a Eurípides, outras a Crítias (tio de Platão e líder da Tirania dos Trinta). O contexto e o falante da passagem são desconhecidos; e seus sentimentos, é claro, não devem necessariamente ser atribuídos ao autor, quem quer que seja. 

  3. Sisyphus fragment 12-16; tradução de R. G. Bury e J. Garrett. 

  4. Veja a parte 19 desta série. 

  5. Aristophanes, Thesmophoriazousai 478-481; in Aristophanes, The Complete Plays: The New Translations, trad. Paul Roche (New York: New American Library, 2005), p. 500. 

  6. Veja, por exemplo, a descrição de Apolo em Íon, de Eurípides, como retratada na parte 15 desta série. 

  7. Aristophanes, Clouds 247-248; tradução de Roche, p. 144. 

  8. Veja, p. ex., Plato, Euthyphro 5e-6b. 

  9. Clouds 366-407; tradução de Roche, pp. 150-153. 

  10. Veja Plato, Phædo 97c-98b. 

  11. Clouds 397-402; tradução de Roche, p. 152. 

  12. Ploutos 1173-1184; tradução de Roche, p. 714. 

  13. Ploutos 1107-1116; tradução de Roche, p. 711. 

  14. Assemblywomen 778-782; p. 645. 

  15. Birds 184-192; tradução de Roche, p. 346. 

  16. Veja a parte 14 desta série. 

  17. Plato, Euthyphro 14d-e; tradução de Cathal Woods e Ryan Pack. 

  18. Ibid., 13c. 

  19. Ibid., 15a.