O lado hobbesiano de Kant

Kant’s Hobbesian Side · Tradução de Gabriel Goes
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Discuti em outro texto algumas das maneiras pelas quais Kant se desvia do liberalismo de Locke em uma direção rousseauniana. Agora gostaria de tratar alguns dos desvios em uma direção bastante diferente: a hobbesiana.

Uma das diferenças cruciais entre Locke e Hobbes é que este vê a cooperação, ou ao menos algo que se aproxime de cooperação em larga escala ou longo prazo, como irracional e, por consequência, instável na ausência de governo. Isso se dá pois ninguém tem razão para cooperar a não ser que primeiro haja motivo para esperar que a outra parte coopere também, e nisso não se pode confiar a não ser que haja um sistema estatal para punir aqueles que não cooperam. Daí que para Hobbes o estado de natureza é inevitavelmente um estado de guerra.

Locke, em contraste, pensa que as pessoas têm a capacidade de reconhecer a lei moral e por ela serem motivadas mesmo quando o governo está ausente. Dessa forma, embora ele tenha suas objeções ao estado de natureza, nega que seja por necessidade uma condição de conflito violento.

Dada a insistência de Kant de que seres humanos de fato têm a capacidade de serem motivados somente pelo dever1, poder-se-ia esperar que tomasse o partido de Locke. E às vezes parece fazê-lo, como quando diz que “[o] que se opõe ao estado de natureza não é uma condição que é social”, pois “no estado de natureza, também, pode haver sociedades compatíveis com direitos […]”.2

Contudo, enquanto a cooperação no estado de natureza pode ser possível, para Kant, não é racional. Dada a onipresença de motivos para comportamento predatório (mesmo que seja possível resistir a eles), não há razão para cooperar até que primeiro haja provas de que a outra parte será cooperativa, o que, sem o Estado, raramente se pode ter:

Ninguém está compelido a evitar usurpar as posses alheias se o outro não lhe der garantia igual de que observará semelhante restrição em relação a ele. Ninguém, portanto, precisa esperar até que tenha aprendido pela amarga experiência da disposição contrária do outro; pois o que o deveria obrigá-lo a esperar até que tenha sofrido uma perda antes que se torne prudente, quando pode muito bem perceber dentro dele a inclinação geral dos homens de se sobreporem aos outros como se seus mestres fossem […] E não é necessário esperar por hostilidade real; se está autorizado a utilizar coerção contra alguém que já, por sua natureza, ameaça-o com coerção.3

Em outras palavras, Kant está dizendo que no estado de natureza é correto iniciar agressão, lançar um ataque preventivo contra o outro, pois o outro é um ser humano e deve-se presumir que seja culpado de intenções agressivas até que se prove o contrário.

Há que se perceber que essa posição kantiana é, em essência, copiada de Hobbes:

Se um pacto for feito, o qual nenhuma das partes cumpra presentemente, mas confie uma na outra; na condição da mera Natureza (que é condição de guerra de todos contra todos), sob qualquer suspeita razoável, ele é nulo. Porém, se houver um Poder comum colocado entre eles, com direito e força suficientes para compelir que o pacto seja cumprido, não será nulo. Pois aquele que cumprir primeiro não possui garantia de que o outro o fará depois; porque o lastro das palavras é por demais fraco para frear a ambição, a avareza, a raiva e outras paixões humanas, sem o medo de algum poder coercivo; o qual, na condição da mera Natureza, onde todos são iguais e juízes da justiça de seus próprios medos, não pode em nenhuma hipótese ser suposto. Portanto, aquele que agir primeiro só estará se traindo a seu inimigo; contrário ao Direito (que ele nunca pode abandonar) de defender sua vida e seus meios de subsistência. […]4

As Leis da Natureza obrigam in foro interno; ou seja, compelem como um desejo para que sejam seguidas. Porém, in foro externo; isso é, na hora de agir, nem sempre. Pois aquele que deveria ser modesto e tratável e cumprir tudo que promete, em tal lugar e tempo em que ninguém mais o fará, apenas tornará si mesmo em presa para outros e encomendará sua ruína certa, contrário aos fundamentos de todas as Leis da Natureza, que tendem à preservação de si mesma.5

Em termos da teoria dos jogos, Kant, como Hobbes, está aconselhando que se fuja seguidamente até que a outra parte coopere primeiro. Isso é bastante estranho para um teórico como Kant, que insiste que se deve agir somente de acordo com máximas que podem ser universalizadas de forma coerente; afinal, se todos esperarem para cooperar até que alguém tome o primeiro passo rumo à cooperação, então ela nunca começará – situação que invalidaria o imperativo kantiano de deixar o estado de natureza e estabelecer um governo, já que se presume que para isso é necessário cooperar. O conselho de Robert Axelrod de cooperar primeiro6, embora baseado em considerações instrumentais, parece mais “kantiano” em espírito do que a própria posição de Kant; e é certamente mais fácil de universalizar.

Assim como Kant subestima a extensão na qual a cooperação pode (e de fato deve) existir previamente ao Estado, também sobrestima a medida na qual a cooperação sob o Estado deve ser produto de coerção política. Afinal, como Étienne de la Boétie apontou no século XVI, e David Hume e William Godwin no XVIII, o fato de que os governados normalmente superam os governantes em número mostra que algum motivo além da força bruta deve explicar a magnitude da obediência civil.7

Mesmo quando o filósofo prussiano reconhece a possibilidade de cooperação no estado de natureza, nega que possa haver leis sem governo civil: sem um sistema estabelecido, “pode haver sociedades compatíveis com direitos […], mas não com a lei”.8 E, sem a lei, direitos no estado de natureza são meramente “provisórios”.9

Aqui, Kant, como notado em momento anterior, cometeu o erro de confundir lei com legislação.10 A existência de sistemas legais não estatais, espontaneamente evoluídos é hoje lugar comum na teoria social libertária.11 É claro que o filósofo poderia se negar a considerar esses sistemas como formas genuínas de “lei” – mas com base em quê? Que não são o produto de um contrato social? Mas os sistemas estatais também não o são. É claro que Kant instrui seus leitores a pressupor que as leis estatais se originaram de um contrato social mesmo que não o tenham feito; mas por que não se pode, de forma similar, pressupor que sistemas legais não estatais também o fizeram?

Ainda pior, a tentativa de Kant de defender o império da lei acaba por miná-lo, pois, em sua visão, o governante deve estar acima da lei: “A união civil […] não pode ser chamada em si mesma de sociedade, pois, entre o comandante […] e o subordinado […] não há parceria”. Governante e governado não são “companheiros [sob um sistema]”, já que um está “subordinado ao outro, não coordenado com ele”, e somente “aqueles que estão coordenados uns com os outros” estão “sujeitos a leis comuns”.12 Se o governante de um Estado civil não pode ser submetido às mesmas leis que os cidadãos ordinários, em que sentido tal Estado pode incorporar o império da lei?

Em seus escritos sobre direito internacional, Kant urge que Estados rivais adentrem em sistemas de federação uns com os outros: “Cada nação, pelo bem de sua segurança, pode e deve demandar das outras que assinem com ela uma constituição, similar à civil, na qual os direitos de cada uma serão assegurados”.13 Porém, de forma diferente da constituição civil, que estabelece um Estado sobre indivíduos, a internacional não cria um super-Estado sobre Estados: “uma federação de tal tipo não seria o mesmo que um Estado internacional”, já que “cada Estado envolve uma relação entre um superior (o legislador) e um inferior”, enquanto uma federação internacional é uma relação entre um “grupo de Estados separados que não deve ser fundido como unidade”14 e é, de fato, uma “coalizão voluntária […] que pode ser dissolvida a qualquer momento”.15

Em suma, quando discute relações internacionais, Kant contempla a possibilidade de um sistema legal que une partes as quais permanecem livres e iguais e não estão subordinadas a um Estado abrangente. Por que tal relação não poderia unir indivíduos, em vez de Estados? E por que não poderia a miríade de sistemas legais não estatais ser aquela a constituir essa federação?16

De fato, se é verdade, como Kant diz, que “cada Estado envolve uma relação entre um superior […] e um inferior”, pode-se questionar como uma filosofia moral tão devotada ao respeito à pessoa, como a kantiana, poderia tolerar a existência de Estados. Afinal, como um “fim em si mesmo”, ele nos diz, cada ser humano “possui uma dignidade”, um “valor interior absoluto” que torna cada um “elevado acima de qualquer preço” e, portanto, intitulado à “autoestima moral”, que incita a independência em cada um. “Não seja lacaio de homem algum”, aconselha Kant. “Não deixe que outros pisoteiem seus direitos com impunidade”. Existe “uma propensão geral à servidão nos homens”, mas “aquele que se faz de minhoca não pode reclamar quando pisam nele”.17

Tudo isso soa bem. Na verdade, soa um tanto como Ayn Rand! Contudo, como posso respeitar o outro como lócus de dignidade inestimável se, ao mesmo tempo, considero-o como meu subordinado político, um objeto legítimo de minha coerção? Como o outro pode respeitar a si mesmo se me considera um superior político, com direito a impor restrições a ele sem que possa fazer o mesmo comigo? E como pode um sistema de direitos incorporar um “uso da coerção completamente recíproco […] consistente com a liberdade de todos”18 se alguns membros da sociedade têm direitos coercivos que são negados a outros – como implicado na definição weberiana do Estado como “monopólio do uso legitimado da força física”?19

Dessa forma, enquanto algumas linhas do pensamento político kantiano levam ao autoritarismo, outras apontam rumo ao anarquismo de livre mercado.

Notas

  1. Kant, Groundwork, p. 69. 

  2. Kant, Doctrine of Right I, sec. 3.41, p. 121/306. 

  3. Doctrine of Right I, sec. 3.42, p. 122/307; ênfase adicionada. 

  4. Thomas Hobbes, Leviathan I.xiv 

  5. Leviathan I.xv 

  6. Robert M. Axelrod, The Evolution of Cooperation, rev. ed. (New York: Basic Books, 2006). 

  7. Étienne de la Boétie, The Discourse of Voluntary Servitude, David Hume, Of the First Principles of Government, William Godwin, Enquiry Concerning Political Justice and its Influence on Morals and Happiness, 1st ed., II.4 (3rd ed., II.3). Para uma elaboração, veja Sheldon Richman, Come and See the Anarchy Inherent in the System!, Center for a Stateless Society (22 de outubro de 2016) 

  8. Kant, Doctrine of Right I, sec. 3.41, p. 121/306. 

  9. Doctrine of Right I, sec II.1.15, p. 85/264. 

  10. Friedrich A. Hayek, Law, Legislation and Liberty: A New Statement of the Liberal Principles of Justice and Political Economy (London: Routledge, 2012). 

  11. Veja, e.g., Tom W. Bell, Polycentric Law, Humane Studies Review 7.1 (Winter 1991/92); Bruce L. Benson, The Enterprise of Law: Justice Without the State, 2nd ed. (Oakland CA: Independent Institute, 2011); Edward P. Stringham, ed., Anarchy and the Law: The Political Economy of Choice (New Brunswick NJ: Transaction Publishers, 2007); Stringham, Private Governance: Creating Order in Economic and Social Life (Oxford: Oxford University Press, 2015); Peter T. Leeson, Anarchy Unbound: Why Self-Governance Works Better Than You Think (Cambridge: Cambridge University Press, 2014). 

  12. Doctrine of Right I, sec. 3.41, pp. 121-122/306-307. 

  13. Immanuel Kant, Perpetual Peace, in H. S. Reiss, ed., and H. B. Nisbet, trans., Kant: Political Writings, 2nd ed. (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), p. 102. 

  14. Perpetual Peace, op. cit., p. 102. 

  15. Doctrine of Right II.2.61, p. 156/351. 

  16. Para questões similares acerca da teoria das relações internacionais de John Rawls, veja Gary Chartier, Radicalizing Rawls: Global Justice and the Foundations of International Law (New York: Palgrave Macmillan, 2014). 

  17. Kant, Doctrine of Virtue I.1.11-12, in Metaphysics of Morals, pp. 230-232/434-436. 

  18. Doctrine of Right, Introduction E, p. 57/232; ênfase adicionada. 

  19. Max Weber, em Tony Waters e Dagmar Waters, eds. and trans., Weber’s Rationalism and Modern Society (New York: Palgrave Books, 2015), p. 136.