Como as falhas de Kant são virtudes mal aplicadas

How Kant’s Flaws Are Misapplied Virtues · Tradução de Gabriel Goes
· 19 minutos de leitura

Como nota o professor White, muita da suspeita acerca da filosofia de Kant nos círculos libertários deve-se à severa condenação feita por Ayn Rand. Para deixar claro, os principais problemas de Rand com Kant estão relacionados a metafísica, epistemologia e ética, não política; contudo, Rand pensava, sim, que as visões de Kant nessas áreas mais fundamentais da filosofia tinham implicações políticas autoritárias, mesmo se ele não levasse essas implicações ao limite. Um dos estudantes de Rand chegou a devotar, com sua aprovação, um livro inteiro para culpar a influência kantiana pelo surgimento do nazismo na Alemanha.1

Em resumo, as ligações que Rand via eram as seguintes. Em metafísica e epistemologia, Kant – de acordo com a interpretação randiana – nega que a mente humana possa conhecer a realidade; tudo que se pode conhecer é um mundo de aparências construído pelo aparato cognitivo. Em ética, Kant demanda que a felicidade seja sacrificada em nome do dever sempre que haja conflito entre os dois (o que, segundo ele, ocorre com frequência). A primeira visão é um ataque à eficácia cognitiva humana; a segunda, à felicidade. (Ataques deliberados, diz Rand; quando Kant erra, é por malícia, não inocência.) E aqueles a quem se foi ensinado que não se pode confiar na própria cognição e não se tem direito de perseguir a própria felicidade estão desarmados contra as reivindicações de um Estado totalitário.

Eu disse no meu ensaio inicial  que pensava que Rand estava em parte certa e em parte errada sobre isso. Deixe-me elaborar.

Peter Strawson argumenta, de forma persuasiva, que há duas linhas em Kant, uma “austera” e uma “transcendental”. O núcleo do projeto “austero” de Kant é explorar os “limites do que se pode conceber ou fazer inteligível para nós mesmos como uma possível estrutura geral da experiência”; esse projeto Strawson considera legítimo e defensável. Porém, em seus momentos “transcendentais”, Kant erroneamente passa a pensar naqueles limites como um produto das “maneiras pelas quais a experiência é causalmente dependente” da “nossa constituição cognitiva”.2

Em outras palavras, Kant caminha por solo firme quando tenta investigar a que retrato da realidade a mente humana pode dar sentido; seu erro reside em tomar os resultados dessa busca como produto da imposição de certas estruturas por parte do aparato cognitivo em uma realidade que, não fosse por essa imposição, poderia ser estruturada de outra forma. Como Strawson corretamente nota, isso é incoerente; pois, se não se pode dar sentido ao mundo por não se ter essas estruturas, não se pode, de forma inteligível, entreter a possibilidade de o mundo real não as possuir e, portanto, não se pode considerá-las mero produto do aparato cognitivo. Esse seria o erro que Wittgenstein diagnostica como tentar pensar ambos os lados do limite do pensamento.3

O Kant transcendental é aquele que Rand atacou.4 E é o que de fato parece solapar a realidade e a eficácia cognitiva do indivíduo de formas que são problemáticas, politicamente falando. No entanto, na leitura de Strawson, que considero persuasiva, o Kant transcendental não é o mais importante; na verdade, ele representa o entendimento errado por parte de Kant de seu próprio projeto que, entendido corretamente, gera a linha “austera”. (É fato que Rand não gostaria do Kant austero também; considerá-lo-ia por demais um racionalista a priori. Porém, não o trataria como um desastre absoluto; afinal, ela foi capaz de dispensar palavras gentis em relação a Spinoza.)

Dessa forma, a linha transcendental em Kant é um erro, não um ataque deliberado contra a mente humana. Além disso, não é um erro estúpido ou evitado com facilidade; é bastante simples passar da identificação dos limites do pensamento para o reconhecimento desses limites como imposições sobre algo que poderia, de outra forma, ser diferente.

Em relação à ética, enquanto é verdade, como o Dr. White aponta, que na visão de Kant as pessoas têm deveres para consigo mesmas, ainda é o caso de que o filósofo acredita na possibilidade (e na frequente, embora não invariável, realidade) de conflitos entre dever e interesse pessoal e defende que, em tais casos, deve-se escolher aquele e não dar peso contrário algum a este. É por isso que Rand vê Kant como um altruísta extremo.

Aqui, como no caso da epistemologia e da metafísica, penso que Kant passa de um vislumbre correto a um erro.

O correto é que a motivação para fazer a coisa certa não deveria ser condicional ao sentimento momentâneo ou à conveniência estratégica. Se o motivo pelo qual respeito os direitos alheios é porque com isso vem uma sensação boa e confortável, assim que estiver deprimido e não obtiver mais essa sensação, não se pode mais contar que aja de forma justa. Se a única razão pela qual coopero com outros é para incentivá-los a cooperar também, então assim que houver uma forma de receber a cooperação alheia sem ser cooperativo – por meio de fraude ou enganação, por exemplo –, não se pode mais confiar em mim. Os compromissos de uma pessoa genuinamente moral não podem ser condicionais dessa forma.

Sobre isso penso que Kant está correto. Ademais, essa é uma das partes da doutrina kantiana que é especialmente favorável ao libertarianismo da corrente de direitos naturais. Libertários dessa estirpe criticam com frequência abordagens consequencialistas à liberdade por não serem confiáveis em seus compromissos. Como escreve Murray Rothbard:

Outro problema com o utilitarista é que ele raramente adotará um princípio como medida consistente e absoluta para aplicar às variadas situações concretas do mundo real. Ele só usará um princípio, no melhor dos casos, como um guia vago ou uma aspiração, uma tendência que pode decidir suplantar a qualquer momento. […] Dizer que não se pode “confiar” que um utilitarista mantenha princípios libertários em cada aplicação específica pode soar severo, mas acaba por delinear a situação de forma justa.5

Entretanto, ao colocar deveres em choque com o interesse próprio e demandar o sacrifício deste em razão daquele em caso de conflito, pode-se argumentar que Kant de fato diminui a importância da felicidade humana, como Rand o acusa. Porém, há um motivo (além de malícia) para a posição dele. Assim como, na metafísica, Kant pensa que há restrições a priori sobre que descrição do mundo físico faz sentido, também na ética ele sustenta que há tais restrições sobre que descrição da moralidade faz sentido; a característica incondicional do dever moral é uma dessas restrições.

Até aqui tudo bem. Porém, Kant não parece pensar que há restrições a priori análogas sobre o que a felicidade pode ser. Visto que ele defende uma visão sofisticada, altamente restrita da moralidade e uma que é quase o oposto quando se trata da felicidade, não é surpreendente que pense que nada pode garantir que ambas andarão lado a lado:

Se a doutrina da moral fosse meramente aquela da felicidade, seria absurdo buscar princípios a priori para ela. […] Apenas a experiência pode ensinar o que nos traz alegria. […] Mas é diferente com os ensinamentos da moralidade. Eles comandam todos, sem levar em conta suas inclinações. […] Não se deriva instrução nas leis deles [dos ensinamentos da moralidade] ao se observar a si mesmo e sua natureza animal, ou ao perceber as coisas do mundo. […] Em vez disso, a razão dita como os homens devem agir mesmo que não haja exemplo a ser encontrado, e não é necessário qualquer relato das vantagens que se pode ganhar, as quais só a experiência poderia ensinar.6

Aqui é onde desejo contrastar a ética kantiana com a abordagem dos filósofos da Grécia Antiga (em particular, Sócrates, Platão, Aristóteles e os estoicos). Para começar, os gregos traçam uma distinção entre meios instrumentais e constitutivos. Como escrevi em outro lugar:

Suponha que eu queira tocar a Sonata ao Luar; para isso, economizo para comprar um piano, para comprar apostilas, para ter aulas e daí em diante, de maneira que serei capaz de tocá-la. Esses são todos meios para o fim de tocar a Sonata ao Luar; se me perguntarem por que estou economizando, por que comprei um piano etc., direi que são todos meios para meu fim último, que é tocar a Sonata ao Luar.

Porém, suponha agora que alguém me encontre tocando a Sonata ao Luar, assim que eu teclo uma determinada nota. E essa pessoa me pergunta: “Por que você está tocando essa nota? É só porque você acha essa nota valiosa em si mesma?” E eu responderia: “Não, estou tocando essa nota porque quero tocar a Sonata ao Luar, e não posso tocá-la sem teclar essa nota naquele momento.” Ora, em certo sentido, então, tocar aquela nota é um meio para tocar a sonata; mas não da maneira explicitada acima. Não é um meio externo ao fim; é um meio que é parte do fim. […] Então há casos em que um meio pode ser parte constitutiva do fim, em vez de ser externo a ele.7

Os filósofos gregos declaram a felicidade de cada indivíduo como o bem supremo e o fim apropriado para aquele indivíduo; a moralidade, proclamam como meio para esse fim. No entanto, tomam moralidade como um meio constitutivo e não instrumental (externo, estratégico) para a felicidade – pois essa, na visão deles, é um estado objetivo do ser, com requisitos objetivos, não um sentimento subjetivo. (Aqui, de novo, tenho em mente Sócrates, Platão, Aristóteles e os estoicos. Os epicuristas são um caso mais complicado.8) Além disso, os constituintes objetivos da felicidade são determinados por considerações conceituais ao invés de empíricas.

Por exemplo, quando Aristóteles tenta demonstrar que a “honra” – pelo que ele quer dizer ser honrado, isso é, ser respeitado e admirado, ou ter uma boa reputação – não pode ser o componente central da felicidade, não tenta mostrar que ela deixa os homens subjetivamente insatisfeitos; em vez disso, argumenta que ela viola certas restrições a priori sobre a natureza da felicidade, tais como ser um fim em si mesma, ou não estar excessivamente fora de controle.9 Aristóteles, portanto, rejeitaria com firmeza o dito kantiano de que “só a experiência pode ensinar” o que traz felicidade. Os gregos fizeram tanto pela felicidade quanto pela moralidade, com efeito, o que Kant fez apenas pela moralidade.

A vantagem do enfoque grego sobre o kantiano, como eu os percebo, é que permite que a moralidade tenha todas as características incondicionais e a priori que Kant busca investir-lhe, mas sem cortar os laços entre ela e a felicidade. Ademais, a maneira pela qual a ética grega trata a determinação do conteúdo da moralidade e da felicidade como questão de ajustes naturais oferece aos libertários uma forma de reconciliar argumentos baseados em direitos e pragmáticos pela liberdade.10

Kant parece não entender a visão grega da ética. Por exemplo, ele afirma que “[o]s antigos viam com perfeição que a felicidade, por si só, não poderia ser o bem supremo” – com a exceção de Epicuro, que “retirou o valor da virtude, pois fez da moralidade meio para a felicidade”11. Aqui, Kant claramente usa “felicidade” com o significado de sentimento subjetivo – o que ele pode fazer quando descreve as próprias teorias, mas não quando fala de Platão, Aristóteles ou os estoicos, que de fato declararam, de forma bastante explícita, que a felicidade, entendida objetivamente, é o bem supremo.

Portanto, Rand está certa em defender Aristóteles contra Kant e em criticar este por desvalorizar a felicidade humana. Contudo, a posição kantiana não era um plano malévolo nem um erro estúpido; em vez disso, era o produto de uma tentativa louvável de proteger a incondicionalidade do compromisso moral, combinada com um fracasso em ver como a felicidade poderia ser incluída no pacote. Tampouco pode Rand reivindicar superioridade sobre Kant nesse ponto, já que ela mesma é notoriamente obscura sobre se a relação entre interesse próprio e moralidade é instrumental ou constitutiva, causal ou conceitual.12 A despeito de sua declarada admiração pela abordagem grega à ética, Rand é como Kant: ambos não encontraram o caminho completo em direção a ela.

Notas

  1. Leonard Peikoff, The Ominous Parallels: The End of Freedom in America (New York: Penguin, 1983). Penso que o livro de Peikoff traz alguns pontos legítimos, mesmo que eles estejam, em grande medida, soterrados sob uma montanha de generalidades e ligações tênues. 

  2. P. F. Strawson, The Bounds of Sense: An Essay on Kant’s Critique of Pure Reason (New York: Routledge, 2006), p. 15. 

  3. Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, 2nd ed., trans. Brian McGuiness and David Pears (New York: Routledge, 2001), p. 3. Nietzsche argumenta de forma similar em “História de um erro”: Friedrich Nietzsche, Twilight of the Idols, in Walter Kaufmann, ed. and trans., The Portable Nietzsche (New York: Penguin, 1982), p. 486. Veja também minha crítica do “imposicionismo” em Roderick T. Long, Anti-Psychologism in Economics: Wittgenstein and Mises, Review of Austrian Economics 17:4 (2004), pp. 345–369 

  4. Embora a visão da própria Rand da natureza da cor seja desconfortável e desnecessariamente próxima à linha transcendental de Kant: veja Roderick T. Long, Rand, Kant, and the Objectivity of Colour, Auburn Philosophy Club Forum on Philosophy and Colour (22 February 2012) 

  5. Murray N. Rothbard, “Por uma nova Liberdade: O Manifesto Libertário”, 2nd ed. (Auburn AL: Mises Institute, 2006), p. 31. 

  6. Kant, Metaphysics of Morals Intro II, p. 43/215. 

  7. Roderick T. Long, “Economia e seus pressupostos éticos” Mises Daily (20 May 2006) 

  8. Os epicuristas deveras parecem tratar a felicidade como um estado subjetivo de prazer, além de tomar a moralidade como um meio instrumental, em vez de constitutivo, para esse estado – embora também afirmem que enquanto a moralidade é inicialmente escolhida por razões estratégicas, ela acaba por ser valorizada, de forma bastante apropriada, por si mesma. A interpretação dos textos relevantes é controversa. 

  9. Aristotle, Nicomachean Ethics I.5 

  10. Para detalhes, veja Roderick T. Long, Eudaimonism and Non-Aggression, Bleeding Heart Libertarians (30 April 2013) 

  11. Immanuel Kant, Lectures on Ethics, eds. Peter Heath and J. B. Schneewind (Cambridge: Cambridge University Press, 1997), 27:247-250, pp. 44-46. 

  12. Para uma prova de que Rand vacila entre as descrições instrumental e constitutiva da relação entre moralidade e interesse próprio, veja Roderick T. Long, Reason and Value: Aristotle versus Rand (Poughkeepsie: Objectivist Center, 2000); para uma prova de que ela similarmente vacila entre as descrições causal e conceitual da relação entre moralidade e interesse próprio, veja Eric Mack, “Problematic Arguments in Randian Ethics,” Journal of Ayn Rand Studies 5.1 (Fall 2003), pp.1-66; More Problematic Arguments in Randian Ethics, Journal of Ayn Rand Studies 7.2 (Spring 2006), pp. 287-307. Rand negava a existência de verdades conceituais a priori, mas, na realidade, a estrutura de sua filosofia deixa brechas para elas; veja Roderick T. Long, Praxeology: Who Needs It, Journal of Ayn Rand Studies 6.2 (Spring 2005), pp. 299-316 e Reference and Necessity: A Rand-Kripke Synthesis?, Journal of Ayn Rand Studies 7.1 (Fall 2005), pp. 209-228.