Cantões Virtuais: um novo caminho para a liberdade?

Virtual Cantons: A New Path to Freedom? · Tradução de Giácomo de Pellegrini
· 19 minutos de leitura

O problema da estrutura

Como seria a Constituição de uma nação livre? Na tentativa de responder essa questão nós imediatamente pensamos em termos da Declaração de Direitos, restrições ao poder governamental, e assim por diante. E qualquer Constituição que valesse a pena existir certamente incluiria essas coisas. Mas se uma Constituição é para ser mais do que uma lista de desejos, ela deve também especificar a estrutura política necessária para garantir que essas liberdades não sejam erodidas ou ignoradas. Considere a antiga Constituição Soviética, que garantia todos os tipos de liberdades boas para os ouvidos de seus cidadãos – mas que na prática se provaram apenas uma promessa vazia, uma vez que sua interpretação e aplicação estavam nas mãos de um Estado centralizado monolítico irrestrito.

Elaborar uma Constituição é um exercício na economia da escolha pública; políticos reagem a incentivos, e então a estrutura de incentivo político deve ser projetada de maneira que aqueles com autoridade não possam se beneficiar pelo engrandecimento do poder estatal.

Esta era a intenção dos autores da Constituição Americana quando eles estabeleceram o sistema Federal. Esperava-se que cada ramo do governo fosse invejoso dos outros, e portanto motivados a servir como um controle da expansão deles. Ao mesmo tempo, esperava-se que a larga base de representação garantisse que nenhum interesse especial teria sucesso em manipular o governo.

Como nós aprendemos muito bem desde então, o experimento se provou um fracasso. Madison e seus colegas não puderam prever o processo de troca de favores pelo qual os ramos do governo e interesses especiais (“facções”), que foram planejados para manter um ao outro em um controle contínuo, fizessem concessões às ambições de outros em troca de concessões às suas próprias ambições. Entretanto alguns anteviram o perigo: um poeta anti-Federalista, lamentando a recente homologação da Constituição, escreveu:

Em cinco anos curtos, de liberdade exaustivamente aumentada,

Nós abandonamos nossa simples República por um trono;

Congresso e Presidente trarão prova plena

Um mero disfarce para o Parlamento e para o Rei.

Assim a confederação simplificada(?) se tornou o Leviatã imperial inchado.

Descentralize!

Thomas Jefferson escreveu muitas passagens comoventes sobre os direitos naturais do homem. Mas quando lhe pediram para resumir sua filosofia política, ele respondeu que poderia ser a seguinte frase: “Dividir os condados em distritos.” Em outras palavras: descentralizar, descentralizar, descentralizar!

Há muitas vantagens para a descentralização política como uma limitação estrutural do poder do governo. Imagine um país do tamanho dos Estados Unidos, mas consistindo apenas em cinco Estados. Agora imagine a mesma região contendo 500 Estados. Todas as outras coisas sendo iguais, a segunda situação é provável que seja muito mais hospitaleira para a liberdade do que a primeira. Quanto menor for a unidade política, maior a influência que um cidadão pode ter na política, diminuindo assim a vantagem do lobby que concentra interesses especiais sobre o interesse público difuso. Além disso, como o número de jurisdições políticas alternativas disponíveis aumenta, a opção de saída do cidadão se torna mais poderosa. A liberdade de deixar um Estado é um pequeno conforto se há apenas um punhado de outros nas proximidades para ir; Mas com muitos Estados, as chances de encontrar um destino satisfatório são muito melhores.

Além disso, a concorrência entre Estados-membros pode servir como um controle ao poder do Estado, caso qualquer Estado se torne muito opressivo seus cidadãos poderão votar com os pés. Também, a descentralização suaviza o impacto dos erros do governo. Se um único governo centralizado decide implementar um plano mal concebido, todo mundo terá que sofrer. Mas com muitos Estados implementando políticas diferentes, uma má política poderia ser evitada, enquanto uma boa política poderia ser imitada. (Aqui também, competição pode servir como um processo de descoberta.) A estrutura Federal dos Estados Unidos, imperfeita que seja, pode bem explicar por que este país não mergulhou tão rapidamente ao socialismo como suas contrapartes europeias — Estados numa Federação têm entrada livre, enquanto na maioria dos países europeus isso não existe. (Cinquenta Estados é certamente melhor do que um — embora ainda longe da noção de Jefferson de que seis milhas quadradas era o tamanho ideal para uma unidade política básica dentro de uma República.) E a Suíça é ainda mais descentralizada em Cantões! Um sistema que sem dúvida tem desempenhado um papel semelhante na preservação da liberdade suíça. (O livro de Frances Kendall e de Leon Louw, After Apartheid, tem ajudado a chamar a atenção da comunidade libertária da utilidade de um sistema de Cantões para países dilacerados por conflitos étnicos; mas seu apelo não é limitado a tais casos).

Trailers e paisagens vazias

A Constituição de uma nação livre, então, provavelmente deve ser caracterizada por uma estrutura de poder radicalmente descentralizada, baseada em algum tipo de sistema de Cantões. Mas é possível melhorar o modelo suíço? Acredito que sim.

A eficácia da concorrência entre jurisdições políticas é inversamente proporcional aos custos de mudança de jurisdição. Massachusetts enfrenta competição séria de New Hampshire, mas pouca do Alasca, uma vez que os custos de votação com os pés são muito maiores no segundo caso. (O mesmo é verdadeiro em nível internacional; não há nenhum mistério sobre por que os refugiados cubanos e haitianos estão tentando chegar em Miami em vez de Genebra). E mesmo quando a jurisdição alternativa está nas proximidades, os custos de uma mudança não são exatamente baixos. Desenraizamento de si mesmo e talvez de uma família a fim de mudar para outro Estado pode ser caro, tanto financeiramente como emocionalmente.

O alto custo de uma mudança resulta do fato de que jurisdições políticas correspondem às regiões geográficas, e relocalização geográfica nem sempre é viável. Mesmo assim um sistema descentralizado serve como um controle mais eficaz sobre o crescimento do poder do Estado, na medida em que custos de uma mudança são baixos. Portanto, parece desejável dissociar a jurisdição política da localização geográfica.

David Friedman oferece um exemplo: “Considere que os custos de se mover de um país para outro, no nosso mundo, fossem zero. Todo mundo vivendo em um trailer e falando a mesma língua. Um dia, o Presidente da França anuncia que, por causa de problemas com os países vizinhos, novos impostos militares serão cobrados e o recrutamento começará em breve. Na manhã seguinte o Presidente da França se encontraria governando uma paisagem pacífica, mas vazia, a população teria se reduzido para ele próprio, três generais e vinte e sete correspondentes de guerra.” ( As Engrenagens da Liberdade, 2ª ed., p. 123.)

Se as pessoas pudessem alternar entre jurisdições políticas sem mudar a localização, teríamos o equivalente funcional da situação da visão de Friedman. A concorrência entre jurisdições seria maior e a quantidade de interferência do Estado que o povo toleraria sem alternar seria menor do que em um sistema político onde a jurisdição e localização geográfica estivessem ligadas.

O caso da Islândia

Há uma série de precedentes históricos para esta ideia. Para escolher um exemplo famoso, o Livre Estado Islandês, ou Comunidade Islandesa (930-1262) operou o sistema de assembleia (Thing). Uma Thing quer dizer uma corte ou assembleia. (A palavra inglesa thing originalmente tinha este significado também; quando Hamlet disse “The play’s the thing wherein I’ll catch the conscience of the King”, o trocadilho é bem sucedido, porque na época de Shakespeare a palavra thing tinha começado a ter seu significado moderno, mas também ainda mantinha o sabor inicial de um processo judicial para estabelecer a culpa ou inocência). A Assembleia Legislativa Nacional, com seu concomitante Judiciário Nacional, era chamada de All-Thing ou Althing (Assembleia Geral); abaixo estavam quatro Quarter-Things (cortes regionais), correspondendo as quatro regiões geográficas da Islândia. Mas aqui o empate entre geografia e jurisdição terminava.

Abaixo cada corte regional tinha-se três ou quatro Varthings (cortes locais), e atribuído a cada uma delas tinha-se três outras cortes. Moradores de uma região eram livres para escolher sua associação em qualquer uma das nove ou doze cortes anexadas (através das cortes locais) de acordo com sua corte regional. Associar-se à uma corte determinava quem seria seu Godhi (Chefe); todo islandês estava ligado a um Chefe, fosse diretamente, por ser um Thingmen (parlamentar), ou indiretamente, por pertencer a uma casa liderada por um parlamentar. Um Chefe protegia seu povo contra ameaças locais, nomeando juízes para sua corte e representando seus parlamentares no legislativo nacional. Em troca, os parlamentares pagavam taxas e faziam vários favores ao seu Chefe. Um parlamentar podia oficialmente trocar de associação de um lado para outro, simplesmente fazendo um anúncio apropriado na frente de testemunhas. O custo da transferência e fidelidade a outro Chefe distante era menor do que teria sido se as cortes fossem entidades puramente territoriais. A concorrência travava a capacidade de qualquer Chefe oprimir o seu parlamentar muito severamente ou exigir favores ou tributos excessivos. Este sistema descentralizado parece ter sido bastante eficaz. A Comunidade Islandesa eventualmente sucumbiu à centralização, mas levou trezentos anos; os Estados Unidos levaram muito menos.

(Para obter mais informações sobre o sistema islandês, ver Medieval Iceland de Jesse Byock, Bloodtaking and Peacemaking de William Miller, e Private Creation and Enforcement of Law: A Historical Case de David Friedman. (Journal of Legal Studies 8, 1979). Para uma pesquisa histórica de sistemas semelhantes, ver Enterprise of Law de Bruce Benson, e ensaios bibliográficos de Tom Bell e Albert Loan em Humane Studies Review 7, no. 1 (1991/92).)

Cantões Virtuais

O caso islandês tem sido um modelo popular entre os defensores libertários do anarquismo de mercado. Mas é importante para oferecer lições valiosas aos que pensam em estruturas de governos também. No âmbito de um Estado, o divórcio entre jurisdição e geografia não é uma opção em nível nacional; mas continua a ser uma opção muito viva em nível local. Assim como uma nação pode ser dividida em vários pequenos cantões geograficamente distintos para fins de governo local e representação nacional, ela também pode ser dividida em unidades políticas análogas que não tenham nenhum significado territorial. Estes poderiam ser chamados de “Cantões Virtuais”.

Duas funções dos Cantões Virtuais

Como as cortes islandesas (Things), os Cantões Virtuais teriam duas funções: representação em nível nacional, e o governo em nível local (com o “local” agora servindo como uma estrutura ao invés de um conceito geográfico).

No primeiro caso, cada Cantão Virtual enviaria um representante como legislador nacional. Os cidadãos seriam livres para mudar sua lealdade para outro Cantão sempre que eles desejarem, sem precisar mudar sua residência; por exemplo, seria possível viver em Nova Iorque e ainda escolher um senador do Arizona como representante. Também seria aconselhável ter um dispositivo constitucional permitindo a qualquer grupo de cidadãos, acima de um determinado número, a formação de um novo Cantão. (A falta deste dispositivo crucial provou ser uma falha fatal no sistema islandês: como o Godhordh, ou assentos na legislatura, eram comercializáveis, eventualmente se tornou possível para um pequeno número de famílias (que tinham adquirido sua riqueza por serem destinatários dos impostos de dízimo, que, ao contrário das taxas para o Chefe (Godhi), tinham separados os rendimentos da prestação de contas — resultado da conversão forçada da Islândia ao Cristianismo) comprar essas Godhordh e monopolizar o poder legislativo. A Constituição Islandesa não previa a criação de um novo assento legislativo (Godhordh) para neutralizar esta ameaça.)

Em nível “local”, cada Cantão Virtual aprovaria suas próprias leis e forneceria sua própria aplicação. Os cidadãos estariam sujeitos às leis do legislador nacional e de seu próprio Cantão, mas não às leis de outros Cantões. A principal função do governo nacional seria regular as relações entre os Cantões, estabelecendo diretrizes para adjudicação de litígios entre membros de diferentes Cantões, resolução de conflitos entre leis de diferentes Cantões e assim por diante. Mas nesse âmbito nacional determinado, haveria livre concorrência entre os Cantões Virtuais.

Tal competição teria muitos benefícios. A ameaça de perder “os clientes” empurraria os impostos e gastos perdulários, muito abaixo de seus níveis atuais de monopólio. A presença de alternativas também reduziria a incidência da opressão governamental por meio da vinculação de receitas com prestação de contas. (Imagine, por exemplo, quão rapidamente a polícia de Los Angeles teria perdido clientes após baterem em Rodney King se uma agência rival de aplicação da lei na mesma área estivesse competindo pelo apoio público.)

Um sistema de Cantões Virtuais também é mais justo do que um sistema puramente majoritário. Sob a regra da maioria, se 51% da população é a favor da lei X e 49% é a favor da lei Y, logo, a lei X é imposta a todos, incluindo a vasta minoria dissidente. Em suma, a regra da maioria cria externalidades negativas para as minorias. Um sistema de Cantões Virtuais contribuiria para internalizar essas externalidades: a minoria que se opõem à lei X não precisa ser submetida a ela, mas em vez disso pode se juntar a um Cantão Virtual que oferece a lei Y. Aqueles na maioria não podem recrutar a minoria para apoiar seus projetos (ou vice-versa), mas devem suportar todos os próprios custos.

Cantões Virtuais também fornecem uma seleção melhor contra a tirania local do que outros sistemas descentralizados. Em um sistema territorial, aqueles em uma determinada região geográfica podem votar com os pés, mas isso pode ser proibitivamente caro, e então acabariam sofrendo o que o governo local decidiria impor; a opção de trocar Cantões sem alterar a residência oferece o equivalente funcional da votação com os pés, só que com uma taxa muito mais barata. Em geral, os Cantões Virtuais forneceriam controles (checks and balances) muito mais eficientes do que o modelo atual dos três poderes do sistema federal, devido as potencialidades competitivas (para o qual o sistema federal não tem nenhum análogo) das trocas entre Cantões ou criação de novos.

O sistema de Cantão Virtual também resolve problemas de informação: Cantões tenderiam a dividir tudo ao longo das fronteiras geográficas, ou não? Eles variariam muito em tamanho? Quantos haveriam? Concorrência seria permitir que o mercado determinasse as respostas ideais para atender às necessidades dos cidadãos.

Governo nacional

O governo nacional tem um papel vital a desempenhar na prestação de coordenação entre as políticas dos vários Cantões. Ele deve ser restringido severamente em seus poderes, ou o propósito de descentralização será derrotado. Se o governo nacional, ao invés dos Cantões, torna-se o principal locus de tomada de decisão, então, a concorrência entre jurisdições se tornará desnecessária, e os Cantões irão degenerar em blocos de interesse especial que disputam o poder centralizado. Portanto, competências nacionais devem ser mais severamente restritas (não apenas por uma lista escrita de desejos, mas estruturalmente) do que os poderes do Cantão, a fim de forçar as disputas políticas até o nível de Cantão (e, portanto, no mercado competitivo).

Há várias maneiras de se fazer isso: limitação severa dos termos, requisitos de maioria absoluta, um executivo plural, etc. Uma sugestão promissora, oferecida por Robert Heinlein em seu romance The Moon é A Harsh Mistress, seria uma legislatura bicameral: uma casa que exige uma votação de dois terços para aprovar leis, e outra um voto de um terço para revogar as leis. Pode ser especialmente útil para compor os representantes do Cantão (garantindo assim a máxima participação de vários grupos de interesse no processo legislativo) e o último dos representantes eleitos popularmente (acomodando, assim, o princípio de Isabel Paterson, em God of the Machine, de que qualquer regime político estável deve fornecer um canal oficial para as massas exercerem um poder de veto). Um fraco poder central e prósperos Cantões Virtuais poderiam combinar o melhor da anarquia e do governo limitado.