Animais racionais, produtividade e virtudes constitutivas

Rational Animals, Productivity, and Constitutive Virtues · Tradução de Gabriel Goes
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Encontro muito para concordar e discordar no último texto de Greg Salmieri (como ele diz que encontrou no meu). Como a edição presente de Cato Unbound [N.do T.: um jornal de debates do Instituto Cato] está chegando ao fim, o tempo não permite uma resposta tão plena quanto eu gostaria – em especial dado que o que tenho a dizer não tem muito a ver com Kant. (Espero que Salmieri e eu possamos retornar a esses tópicos em uma ocasião futura.) Em particular, enunciar tanto quanto eu gostaria sobre como vejo o papel dos conceitos no conhecimento exigiria uma investigação profunda demais – embora possa apontar a direção relevante em uma nota de rodapé.1 Portanto, tratarei apenas de alguns pontos sobre o lado ético e político das coisas.

I. A respeito dos aspectos iliberais da filosofia de Aristóteles, Salmieri diz que “não é óbvio para mim que Aristóteles tinha um método ou um sistema que teria ou poderia ter prevenido essas falhas se fosse aplicado com maior precisão”. Em resposta, citarei a mim mesmo em outro contexto:

Em uma abordagem aristotélica da ética da virtude, a ação correta é a que expressa as atitudes e disposições apropriadas a uma vida humana plena, concebida como aquela que dá primazia ao exercício de capacidades distintamente humanas. Uma vida que objetiva prazer sensorial em primeiro lugar, ou mera sobrevivência, é rejeitada como sub-humana, já que foca nas capacidades que homens compartilham com animais inferiores, em vez de ser organizada em torno de traços peculiares da humanidade. Porém, vidas super-humanas são desconsideradas também. Aristóteles de fato urge para que se almeje uma vida tão divina quanto possível, mas deixa claro que a natureza humana coloca restrições nesse objetivo e que realmente se tornar um deus não seria benéfico para um homem. Dessa forma, a melhor vida é a que navega entre os extremos do sub e do super-humano. […]

As virtudes aristotélicas, também, podem ser vistas como média entre o vício sub-humano da supervalorização e o vício super-humano da subvalorização, a vulnerável capacidade dos homens de incorporar. Errar no lado das bestas é estar preocupado em excesso com a natureza animal, os desejos físicos e a segurança; esse é o erro das pessoas comuns, que Aristóteles considera propensas demais a transformar o prazer e a vantagem material em objetivos primários e a negligenciar a possibilidade de valores mais elevados que podem requerer o sacrifício do conforto ou mesmo da existência continuada. Errar no lado dos deuses, em contraste, é tratar seres humanos como intelectos incorpóreos para os quais a natureza animal é irrelevante; esse é o erro de filósofos como Sócrates, que consideravam conhecimento e virtude como suficientes para a felicidade e dispensavam bens exteriores como desnecessários, almejando uma autossuficiência transcendente que não é opção para seres corpóreos e corporais como os homens. […]

Aristóteles identifica a capacidade distintamente humana para a razão e a fala como o motivo pelo qual os homens são animais políticos por natureza, pois permite que eles persigam seus objetivos por meio de debate uns com os outros. Ademais, é notório que Aristóteles considera o logos, razão ou fala, como o traço essencial ao redor do qual uma vida humana plena deve ser organizada. Isso, ao que parece, é por quê Aristóteles trata como componente essencial de uma vida verdadeiramente humana a arte de lidar com os outros de forma política, ou seja, por meio da razão e do discurso – como parceiros de conversação. Porém, tal ideal cria uma forte presunção contra o uso da força e em favor de se confiar tanto quanto possível na persuasão. De fato, Aristóteles afirma que é injusto governar pela força em vez de pela persuasão e insiste que estadistas devem ser tão dependentes do consentimento dos súditos quanto médicos e pilotos o são em relação a seus pacientes e passageiros, respectivamente. Penso, contudo, que o vislumbre de Aristóteles aponta na direção de uma crítica mais radical da força do que a que é provável que tenha reconhecido. Lidar com outros pela força é agir de maneira sub-humana, como um animal de rapina; vive-se uma vida mais humana (e, portanto, em termos aristotélicos, uma vida melhor) na medida em que as relações com outras pessoas incorporam razão em persuasão ao invés de coerção. Dessa forma, a necessidade de evitar o tipo bestial de vício dá ao agente virtuoso motivo para aceitar uma obrigação de respeitar outras pessoas como fins em si mesmas, em vez de tratá-las como meros meios para os fins do agente. Se esse fim humano superior coloca uma restrição à busca de fins animais e inferiores, que seja.2

Em suma, então, penso que alguns princípios aristotélicos um tanto quanto fundacionais de fato fornecem a base para uma abordagem à política muito mais libertária do que a que o próprio Aristóteles empregou.3

II. Salmieri aponta para a visão de Aristóteles de que “o valor da atividade produtiva é extrínseco a ela” como a raiz de muitas das características iliberais de sua política. Creio que ele está, em grande parte, correto – embora o erro oposto, a sobrevalorização puritana do trabalho, possa levar a resultados iliberais também (uma reprovação tecnofóbica de mecanismos que diminuam a necessidade de trabalho manual, por exemplo). Sem dúvidas, o trabalho produtivo possui, às vezes, valor meramente instrumental e, às vezes, não.

De toda forma, só gostaria de apontar que Aristóteles, em alguns momentos, está disposto a entreter uma visão mais nuançada da atividade produtiva. Ele escreve, por exemplo:

Cada pessoa valoriza seu trabalho mais do que ela seria valorizada pelo trabalho se este possuísse alma. Isso acontece, acima de tudo, no caso dos poetas; pois estimam seus poemas em excesso, idolatrando-os como a um rebento. […] Agora, a causa disso é que a existência é para todos os homens digna de ser escolhida e amada, e existe-se em virtude da atividade (pois se existe de modo a viver e agir) e o trabalho é, de certa maneira, o produtor em atividade. Ele se importa com o trabalho, então, porque se importa com a existência. E isso é natural, já que o que ele é em potência, o trabalho manifesta na atividade.4

A sugestão de Aristóteles de que se ama os produtos do trabalho porque são, “de certa forma, o produtor [ou seja, os homens] em atividade” com certeza chega perto da ideia de que a atividade pode ser valorizada em si porque é geradora de produtos além de si mesma.

III. Essa mesma ideia – de que um meio pode adquirir valor constitutivo em virtude de seu valor instrumental – parece estar na raiz da sugestão de Salmieri de que, para Rand, “valores morais e virtudes são constituintes essenciais do fim último que é a vida de uma pessoa e devem essa condição à contribuição causal que fornecem à sustentação dessa vida”. Salmieri oferece essa formulação como forma de evitar a escolha entre tratar virtudes como instrumentais ou como constitutivas. Porém, enquanto me apetece a ideia de basear o valor constitutivo das virtudes em seu valor instrumental – movimento comum no estoicismo e no epicurismo, como eu os vejo –, não penso que obtém sucesso como forma de evitar a escolha que mencionei.

Se virtudes são elementos constitutivos do fim último por causa de sua contribuição causal a esse fim, então seu papel instrumental deve ser logicamente anterior ao constitutivo. Em outras palavras, o fim para o qual as virtudes fornecem uma contribuição causal não pode já ser caracterizado como se tivesse essas virtudes como constituintes. Seria circular dizer que isso é valioso porque contribui para aquilo, se aquilo já estiver conceituado para incluir isso. Portanto, a vida para a qual virtudes são meios constitutivos deve ser uma versão mais viva e profundamente caracterizada de vida do que aquela para a qual virtudes são identificadas de início como meios instrumentais – deixando Rand com o problema de decidir qual dessas duas versões de vida identificar como fim último.

Penso, é claro, que a versão mais viva é a que se deve seguir; contudo, se se tomar esse caminho, deve-se abandonar a concepção anterior, mais estreita, como meramente provisória – um “momento” passageiro na construção conceitual do fim último. A visão de Rand, que se inclina para agarrar a versão mais viva enquanto se recusa a abandonar a mais estreita, parece-me um caso de querer alcançar duas coisas irreconciliáveis ao mesmo tempo.

Notas

  1. De fato, esta nota de rodapé: Roderick T. Long, Anti-Psychologism in Economics: Wittgenstein and Mises, Review of Austrian Economics 17:4 (2004), pp. 345-369 e Long, Praxeology: Who Needs It, Journal of Ayn Rand Studies 6.2 (Spring 2005), pp. 299-316. 

  2. Roderick T. Long, The Irrelevance of Responsibility, pp. 122-124, em Social Philosophy and Policy 16.2 (verão 1999), pp. 118-145. Veja o artigo original para citações dos textos de Aristóteles. 

  3. Para mais acerca das implicações libertárias dos princípios aristotélicos, veja Long, Aristotle’s Conception of Freedom, Review of Metaphysics 49 (June 1996), pp. 775-802 e Long, Aristotle’s Egalitarian Utopia: the polis kateuchen, em Mogens Herman Hansen, ed. The Imaginary Polis: Symposium, January 7-10, 2004. Acts of the Copenhagen Polis Centre 7 (Copenhagen: Det Kongelige Danske Videnskabernes Selskab, 2005), pp. 164-196. 

  4. Aristotle, Nicomachean Ethics 1167b31-1168a15; tradução minha.