A Natureza da Lei - Parte III e IV

The Nature of Law · Tradução de Uriel Alexis Farizeli Fiori
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Parte III: Lei vs. Legislação

Sócrates sobre a Lei

Em um dos diálogos filosóficos de Platão, chamado Minos, Sócrates pede a um camarada anônimo uma definição de lei. O camarada aquiesce, oferecendo a seguinte definição: “A Lei é o que é legislado”. Mas Sócrates objeta: assim como a visão não é o que vemos, mas sim aquilo através do que vemos, assim, também, a lei não é o que é legislado mas aquilo através do que legislamos. O camarada aceita essa crítica e retrata sua definição. Isso pode nos surpreender: certamente a lei é o produto da legislação, não vice-versa. Mas ao dizer que a lei é aquilo através do que legislamos, Sócrates está na verdade apelando a uma ideia muito antiga e profundamente arraigada, como veremos.

A segunda definição do camarada é essa: “A Lei é o julgamento do Estado”. Mas através de repetidos questionamentos, Sócrates rapidamente prova que essa definição se choca com outras coisas em que o camarada acredita; dessa maneira o camarada está comprometido com uma tríade inconsistente de crenças:

A Lei é o julgamento do Estado. A legalidade é justa. O julgamento do Estado às vezes é injusto. Se o camarada aceitar quaisquer duas, ele deve rejeitar uma terceira.

Claramente, o camarada de Sócrates está atraído tanto por uma concepção positivista da lei (de acordo com a qual a lei é o que quer que o governo diga, seja justo ou injusto) quanto por uma concepção moralizada da lei (de acordo com qual a lei é inerentemente justa); e Sócrates explora essa tensão.

Então Sócrates sugere uma revisão: “A Lei é o julgamento correto do Estado”. Dessa maneira, apenas aqueles julgamentos do Estado que estão corretos contam como lei genuínas. Isso pode parecer estranho para nós; quando os decretos do Estado estão incorretos, tendemos a dizer que eles são leis ruins ou leis injustas, não que eles não são leis absolutamente. Ser uma lei é um fato puramente descritivo sem nenhum peso avaliativo: qualquer coisa que a legislatura invente, seja bom ou mau, é uma lei ipso facto.

Por que alguém pensaria diferente? Bem, considere a distinção entre poder e autoridade. Qual a diferença entre uma ordem emitida por uma legislação, e uma ordem emitida por um assaltante com uma arma? Ambos tem o poder de impor suas demandas; mas na legislação, ao contrário do assaltante, é presumido que haja autoridade. Ainda assim a autoridade da legislação é condicional; se o Congresso viesse a aprovar um projeto de lei proibindo o Metodismo, ele estaria excedendo sua autoridade constitucional, e então seu decreto não teria força de lei. Mas se o Congresso deriva sua autoridade da Constituição, de onde a Constituição obtém a sua autoridade? Nesse ponto só podemos concluir que a autoridade da Constituição, se houver, deve ser moral em caráter, derivando da justiça natural. Apenas algo com peso normativo intrínseco poderia servir como o “autorizador não-autorizado” que transforma todos os decretos menores em leis.

Mas Sócrates não precisa contar puramente com um argumento desse tipo. Ele também tem uma importante tradição histórica a seu lado. A concepção de lei de Sócrates é sem dúvida a historicamente dominante, e a nossa positivista, uma mera anomalia; o conceito de lei como um padrão objetivo a ser declarado ou descoberto (em vez de criado) por legisladores era a noção dominante tanto na prática legal quanto na filosofia jurídica pela maior parte da história – chamado de rta ou dharma na Índia, ma’at no Egito, e torah na Judeia. É por isso que Sócrates pode falar sem controvérsias da lei como não o que é legislado, mas aquilo através do que legislamos. Por dois milênios foi o princípio base da jurisprudência de que lex injusta non est lex: uma lei injusta não é uma lei. Apenas no Iluminismo que a noção de Lei Natural se degenerou de sua noção original, uma restrição sobre o que a lei era, para uma mera restrição sobre o que a lei devia ser.

A concepção positivista da lei de atualmente é, dessa forma, na verdade uma espécie de aberração histórica; embora pareça que tenha tido alguma circulação na Grécia Antiga também, como é mostrado pela resistência do camarada, assim como pelo fato de que a palavra Grega nomos significa tanto “lei” quanto “convenção”. (Uma tensão similar entre concepções positivistas e moralizadas da lei é encontrada nas respostas confusas do estadista grego Péricles aos questionamentos Socráticos de Alcebíades em Recollections of Socrates de Xenofonte. Talvez o fato de que Atenas era uma democracia, e de que o ateniense médio estava constantemente engajado em aprovar e revogar leis, serviram para enfraquecer a tradicional concepção moralizada da lei.)

Sócrates argumenta que apenas decretos baseados no conhecimento da justiça e da injustiça objetivas podem contar como leis verdadeiras; ele adiciona que todos os Estados legislam o justo, mas eles cometem erros sobre o que, de fato, é justo. O ponto de Sócrates aqui é reminiscente de um argumento de David Lyons de que a interpretação legal pressupõe uma teoria moral:

Imagine que você e eu discordamos sobre os requisitos substantivos da justiça social. Nós, então, diferimos quanto a como o conceito de justiça se aplica; nós diferimos, isto é, sobre os princípios da justiça. Isto é possível se o conceito de justiça admitir diferentes interpretações, ou concepções concorrentes. […] Agora considere um exemplo constitucional, […] um tribunal aplicando a cláusula da justa compensação não decidiria necessariamente um caso como os autores originais teriam feito. […] Em vez disso, um tribunal entenderia que a Constituição quer dizer precisamente o que diz e, assim, exige compensação justa. Um tribunal precisaria defender uma concepção particular de justa compensação […] contra as alternativas mais plausíveis. […] Conceitos contestados não parecem limitar-se à moralidade e à lei. Suas propriedades são, de qualquer maneira, similares àquelas dos conceitos que se referem a substâncias e fenômenos naturais, tais como água e calor.

Num entendimento plausível do desenvolvimento da ciência, por exemplo, as teorias calóricas e cinéticas do calor são (ou uma vez foram) concepções concorrentes do conceito calor. […] Se, como a maioria das pessoas concordaria, ‘calor’ se refere a um determinado fenômeno físico, pode haver, em princípio, uma melhor teoria do calor. Isto implica que poder haver uma melhor concepção de um conceito contestado. Isto sugere, por sua vez, que os conceitos contestados na Constituição podem ter melhores interpretações. […] Agora, se a ideia de que as Constituições incluem conceitos contestados está correta, então aplicar a Constituição em termos de sua melhor interpretação é, na realidade, aplicar doutrinas cuja aplicação é exigida pela Constituição original. Mas, assim como a interpretação do conceito de calor exige mais do que mera reflexão, qualquer interpretação desse tipo inevitável se baseia em recursos que não são nem implícitos no texto nem puramente linguísticos. Ela […] requer que os tribunais, aplicando ‘cláusulas vagas’ da Constituição, interpretem ‘conceitos contestados’, o que requer raciocinar sobre princípios morais ou políticos. (David Lyons, Constitutional Interpretation and Original Meaning. Social Philosophy & Policy IV, pp. 85-99.)

Se a lei diz que os empregados do governo devem ser pagos em ouro, então eles não podem ser pagos em piritas de ferro, uma vez que piritas de ferro não são de fato ouro, mesmo que aqueles que escreveram a lei fossem ignorantes à diferença. Se a lei diz que pescadores não podem caçar mamíferos, então, de fato, a lei diz que eles não podem caçar golfinhos, mesmo que os legisladores pensassem que golfinhos fossem peixes. Da mesma forma, se a lei diz que a servidão involuntária é proibida, então o governo não pode recrutar soldados, uma vez que o recrutamento militar é de fato servidão involuntária, mesmo que aqueles que escreveram a lei não reconhecessem isso.

O ponto do Professor Lyons é que precisamente o mesmo argumento se aplica a termos morais: se a Constituição demanda justa compensação para as vítimas de desapropriação, então tais vítimas devem receber o que quer que seja realmente justo, não o que os redatores pensavam que era justo, uma vez que a Constituição diz dar “justa compensação” em vez de dizer dar “o que consideramos ser justa compensação”. (O abolicionista do século XIX Lysander Spooner usou argumentos similares em seu Unconstitutionality of Slavery, alegando que a escravidão era proibida por várias cláusulas na Constituição, mesmo se os autores daquelas cláusulas não tivessem tal intenção, porque frases tais como “forma de governo republicana” e “contra violência doméstica”, quando interpretadas de acordo com a teoria moral e política correta, excluem a escravidão).

A conclusão de Minos de Platão, então, pode ser descrita como se segue: Todos os Estados legislam tanto o conceito de justiça, quanto concepções particulares dela. Na medida em que eles legislam o conceito, todos eles legislam a mesma coisa, e essas legislações são leis genuínas. Na medida em que eles legislam diferentes concepções, seus decretos (ou a maioria deles) não são leis genuínas, e seus legisladores estão simplesmente provando-se ser ignorantes do que a lei verdadeiramente exige.

Dois Sentidos de Lei

Na Parte I, eu defini lei como “a instituição ou conjunto de instituições numa sociedade que adjudica alegações conflitantes e garante conformidade numa maneira formal, sistemática e ordeira”.

Deveria agora estar claro que eu estava definindo lá a lei positiva, não a Lei no sentido estrito e tradicional discutido aqui. Um dos meus objetivos principais nas Partes I e II foi argumentar em favor de um tipo específico de sistema legal positivo – o anarquismo de mercado – como tanto moral quanto utilitariamente superior a outros sistemas. Minha conclusão lá pode ser agora reformulada do seguinte modo: o anarquismo de mercado é a variedade de lei positiva mais de acordo com a Lei em seu sentido apropriado.

Mas qual é a relação precisa entre a lei positiva e a Lei propriamente dita? À essa questão eu me volto agora.

Lei Natural e Lei Humana

Meu relato da concepção tradicional da Lei propriamente dita pode sugerir que o conteúdo dessa Lei é completamente independente do desejo humano. Alguns filósofos legais nessa tradição de fato pensaram isso. Lysander Spooner, por exemplo, insiste que a legislação humana não pode nem adicionar nem remover da verdadeira Lei uma única provisão.

A visão mais comum historicamente, no entanto, têm sido aquela do grande filósofo medieval Tomás de Aquino. Aquino sustentava que o conteúdo da verdadeira Lei incluía não apenas a Lei Natural – ou seja, os princípios de justiça necessários ao genuíno bem-estar humano, e inerentes à natureza humana como criada por Deus – mas também a Lei Humana. Por Lei Humana, Aquino não quer dizer o que eu tenho chamado de lei positiva. Sua ideia é a seguinte:

Algumas das disposições da Lei Natural, embora absolutas e vinculantes, frequentemente carecem de especificidade. Por exemplo, pode ser uma provisão da Lei Natural que os carros indo em direções opostas numa autoestrada devam viajar em lado opostos da estrada – mas a Lei Natural pode se calar sobre a questão de se os carros deveriam dirigir à esquerda ou à direita. Qualquer decisão sobre essa última questão é uma matéria de indiferença, do ponto de vista da Lei Natural, e pode ser deixada para a convenção humana. Tudo que a Lei Natural exige é que exista alguma decisão sobre a questão, e que qualquer convenção que seja adotada deveria então ser obedecida. Assim, se uma nação em particular adota a regra de dirigir à direita, essa última disposição então adquire força de Lei, e então é moralmente vinculante. A regra “dirija à direita” não é parte da imutável Lei Natural, mas sim é uma provisão da mutável Lei Humana. Juristas Medievais falavam de tais regras como que reduzindo (ou seja, como que tornando mais específicas) as provisões da Lei Natural; mas eles afirmavam que a Lei Humana jamais poderia contradizer a Lei Natural. A Lei no sentido estrito, então, cobre tanto a Lei Natural quanto a Lei Humana, a última sendo subordinada à primeira; mas a Lei Humana é mais restrita que a lei positiva, uma vez que apenas aquelas provisões da lei positiva que são consistentes com a justiça devem ser contadas como Lei Humana. O legislador pode ter alguma liberdade criativa, mas apenas dentro dos limites da Lei Natural, e é tarefa dele descobrir esses limites, não estipulá-los por decreto.

Lei Natural e Lei Consuetudinária

Eu tenho falado do padrão ao qual a legislação deve responder como Lei Natural – um conjunto de princípios morais imutáveis que transcendem o desejo humano. Tal era, de fato, a visão de Platão, Aristóteles, Cícero, Aquino, e na verdade a maioria dos filósofos legais por toda a história (para algumas citações representativas, veja a evidência documental nas páginas 17-18.). Mas historiadores legais apontam para o que parece ser uma concepção diferente da verdadeira Lei: a prática, na maioria das sociedades pré-modernas, de considerar o costume tradicional como o padrão supremo da Lei (Novamente, vide pp. 17-18.). A tarefa do legislador, em tais sociedades, é vista como uma tentativa de descobrir, declarar, e aplicar as práticas já existentes da tribo ou nação – o que os juristas britânicos chamam de “costume do país” (common law) – e não apelar para algum padrão abstrato de justiça transcendente como a Lei Natural.

Este conflito é largamente ilusório, no entanto. Pois devemos lembrar que (Spooner em contrário, não obstante) a verdadeira Lei compreende não apenas a Lei Natural, mas também a Lei Humana – e a Lei Humana deve ser promulgada não apenas por uma legislatura oficial mas similarmente, e com igual (se não maior) autoridade, pelo costume evoluindo de maneira espontânea. De fato, tal lei consuetudinária é provavelmente um método mais confiável para “reduzir” a Lei Natural, porque um costume evoluído espontaneamente e mantido voluntariamente é mais propenso a promover vantagem mútua do que um decreto idealizado e imposto por um pequeno grupo no poder.

Em bases semelhantes foi argumentado, por F. A. Hayek e Bruno Leoni, entre outros, que um sistema de direito comum, em que a legislação surge através de precedente judicial, é superior a um sistema em que juízes e tribunais simplesmente aplicam a legislação criada por uma legislatura separada. (O sistema Americano é uma mistura desses dois.) Uma vantagem do sistema de direito comum de leis feitas por juízes é que um juiz não pode simplesmente começar a legislar sobre qualquer coisa que passe em sua imaginação, mas deve responder a alegações em particular trazidas por pessoas em particular, e então o sistema de precedentes que evolui foi moldado pelas necessidades dos indivíduos.

Tal sistema de direito comum funciona melhor, no entanto, se houver tribunais concorrentes ou jurisdições concorrentes, de modo que os tribunais que fizerem decisões ruins vão perder para aqueles com melhor julgamento. Sob um judiciário centralizado com escolha restrita em jurisdições, muitas das vantagens do direito comum são perdidas – embora mesmo aqui exista um tipo de elemento competitivo, na medida em que diferentes precedentes podem ser pensados como se competindo um contra o outro.

Um sistema de direito comum não funcionará bem se os tribunais ignorarem os precedentes completamente; nesse ponto um juiz simplesmente se torna um “minilegislador”, rejeitando a sabedoria incorporada na experiência judicial anterior. Por outro lado, um sistema de direito comum também deixará de funcionar bem se aderir muito estritamente ao precedente; pois se os empreendedores judiciais se recusarem a inovar ou introduzir precedentes concorrentes, a mão invisível não tem nada com o que trabalhar. A Lei Humana, ao contrário da Lei Natural, deveria ser flexível, se adaptando às circunstâncias em mudança. Tom Bethell oferece o sistema legal Islâmico como um exemplo de sistema de direito comum que se degenerou quando perdeu sua flexibilidade, congelando dessa maneira a outrora dinâmica e progressista civilização Islâmica em uma rigidez medieval:

[…] o declínio do Islã começou aproximadamente no século XV […]. Gradualmente, a lei Islâmica foi ‘congelada’, de modo que os intérpretes da lei não mais podiam aplicar seu raciocínio independente a ela. Eles foram obrigados a viver com a interpretação que foi atingida quando o ‘congelamento’ ocorreu. Esse evento é conhecido para os estudiosos da shari’a (lei religiosa) como ‘o fechamento do portão da itjihad’itjihad significando ‘a luta pela compreensão’, ou mais simplesmente o uso da razão. Ela foi substituída pela taqlid, a aceitação submissa da interpretação anterior. A interpretação continuada cessou porque se dizia que ela mostrava desrespeito para com os juristas mais antigos.

Taqlid trouxe consigo sérios problemas. […] Alguns estudiosos Islâmicos […] acreditam que o fechamento do portão foi uma causa principal do declínio do Islã. […] Com o pensamento independente não mais desejado, a lei no mundo muçulmano se tornou dominada por pessoas de uma disposição subserviente que eram atraídas ao serviço do poder. […] Taha al Alwani denuncia o estado decaído do mundo muçulmano. […] ‘Muçulmanos e não-muçulmanos estão igualmente assombrados pelo fato de uma das civilizações mais avançadas da História pudesse decair a tal estado de esmagadora miséria, ignorância, atraso e declínio geral […]. Ele acredita que a arraigada deferência à autoridade e o desencorajamento da razão que começaram com o ‘fechamento dos portões’ é uma parte importante da explicação. (Tom Bethell, The Mother of All Rights, Reason 25 (Abril de 1994), p. 45.)

Em seu manifesto clássico “Sobre a Liberdade”, John Stuart Mill apontou os benefícios da concorrência intelectual em se alcançar a verdade. É precisamente através desse método que atingimos o progresso científico desconcertante dos últimos quatro séculos. Um sistema judicial que similarmente incorpore o princípio da concorrência – nem renegando a vasta informação embutida no processo de mercado, nem se prostrando frente a ele de uma maneira tal a impedir a inovação empreendedora – está mais propenso do que qualquer outro a ser bem sucedido em descobrir e aplicar efetivamente os princípios da Lei Natural.

Lei vs. Legislação: Evidência Documental

A Lei no sentido de regras de conduta aplicadas é sem dúvida coesa com a sociedade; apenas a observância de regras comuns torna a existência pacífica dos indivíduos na sociedade possível. […] Tais regras podem, de um certo modo, não ser conhecidas e ainda ter que ser descobertas, porque ‘saber como’ agir, ou ser capaz de reconhecer que atos de outro se conformaram ou não a práticas aceitas, ainda está bem longe de ser capaz de declarar tais regras em palavras. Mas embora possa ser em geral reconhecido que a descoberta e declaração do que eram as regras aceitas (ou a articulação de regras que seriam aprovadas quando postas em prática) era uma tarefa que exigia especial sabedoria, ninguém ainda concebeu a lei como algo que os homens poderiam fazer à vontade. Não é nenhum acidente que ainda usemos a mesma palavra ‘lei’ para as regras invariáveis que governam a natureza e para as regras que governam a conduta dos homens.

Elas foram ambas concebidas a princípio como algo existente independentemente do desejo humano. […] elas eram consideradas como verdades eternas que o homem poderia tentar descobrir mas que ele não poderia alterar. Para o homem moderno, por outro lado, a crença de que toda a lei governando a ação humana é o produto de legislação parece tão óbvia que a contenção de que a lei é mais antiga do que o processo legislativo tem quase o caráter de um paradoxo. Ainda assim, não pode haver dúvidas de que a lei existiu por eras antes que ocorresse ao homem que ele poderia fazê-la ou alterá-la. […] Um ‘legislador’ poderia se esforçar para remover da lei as supostas corrupções, ou para restaurá-la a sua pureza original, mas não era pensado que ele podia fazer nova lei. Os historiadores da lei estão de acordo que a esse respeito todos os famosos ‘legisladores’, de Ur-Nammu e Hamurabi a Sólon, Licurgo e os autores das Doze Tábuas Romanas, não pretendiam criar nova lei, mas meramente declarar o que a lei era e tinha sempre sido.

F. A. Hayek, Direito, Legislação e Liberdade

Uma vez que é através da lei que o que é legislado é legislado, em virtude da lei ser o quê isso é legislado? É em virtude dela ser alguma consciência, ou alguma demonstração, como o que é aprendido é aprendido através da ciência que o demonstra? […] Não são o direito, e a lei, o mais aprazível? […] E o errado, e a ilegalidade, o mais vergonhoso? […] E os primeiros preservam estados e todas as outras coisas, enquanto os últimos destroem e derrubam? […] Então tem-se que pensar da lei como algo aprazível, e buscá-la como tal? […] Então não seria apropriado que o julgamento oficial perverso fosse lei. […] E ainda assim, mesmo para mim, a lei parece ser algum tipo de julgamento; mas uma vez que não é o julgamento perverso, não está claro que a lei, se é de fato julgamento, é o digno? […] E o que é o julgamento digno? Não é o julgamento verdadeiro? […] Não é o verdadeiro, a descoberta do que é assim? […] A lei, então, deseja ser a descoberta do que é assim, […] mas os homens, que (assim nos parece) nem sempre usam as mesmas leis, nem sempre são capazes de descobrir o que a lei deseja: o que é assim, […] O que é certo é certo e o que é errado é errado. E isso não é acreditado por todos […] mesmo entre os Persas, e sempre? […] O que é aprazível, sem dúvida, é legislado em todo lugar como aprazível, e o que é vergonhoso como vergonhoso; mas não o vergonhoso como aprazível ou o aprazível como vergonhoso. […] E, em geral, o que é assim, ao invés do que não é assim, é legislado como sendo assim, tanto por nós quanto por todos os demais. […] Então aquele que erra sobre o que é assim, erra sobre o legal. […] Então, nos escritos sobre certo e errado, e em geral sobre ordenar um Estado e sobre como um Estado deveria ser organizado, o que é correto é a lei real, enquanto o que não é correto, o que parece ser lei para aqueles que carecem de conhecimento, não o é, pois é ilegal.

Platão. Minos, séc. V a.C.

Mas o que é a violência e a ilegalidade, Péricles? Não é quando a parte mais forte compele a mais fraca a fazer o que ela quer usando força em vez de persuasão? […] Então qualquer coisa que um déspota decreta e compele os cidadãos a fazer em vez de persuadi-los é um exemplo de ilegalidade? […] E se a minoria decreta algo não ao persuadir a maioria, mas ao dominá-la, deveríamos chamar isso de violência ou não? Parece-me que se uma parte, em vez de persuadir uma outra, a compele a fazer algo, seja por decreto ou não, isso é sempre violência ao invés de lei. Então, se as pessoas como um todo usam não a persuasão mas seu poder superior de decretar medidas contra as classes proprietárias, será isso violência ao invés de lei?

Xenofonte, Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, séc. V a.C.

Eu acho que tem sido a opinião dos homens mais sábios de que a lei não é um produto do pensamento humano, nem é qualquer decreto dos povos, mas algo eterno […]. Desse ponto de vista pode ser prontamente entendido que aqueles que formularam estatutos perversos e injustos para as nações, assim violando sua confiança e pacto, puseram em prática qualquer coisa, mas não leis. Assim pode estar claro que a própria definição do termo lei está incluída a ideia e o princípio de escolher o certo e o verdadeiro. […] Que diremos dos muitos estatutos mortais e pestilentos que as nações colocam em vigor? Estes não são mais dignos de serem chamados leis do que as regras que um bando de ladrões possam aprovar em sua assembleia. Pois, se homens ignorantes e incapazes prescreveram venenos mortais em vez de remédios eficazes, estas não podem sequer serem chamadas de prescrições de um médico.

Cicero, Das Leis, séc. I a.C.

A Jurisprudência é a familiaridade com as coisas humanas e divinas, o conhecimento do que está certo e do que está errado. […] Esses são os preceitos da lei: viver corretamente, não ofender o outro, e dar a cada um o que é seu.

Institutiones Justiniani, séc. VI d.C

O jurista romano era um tipo de cientista: os objetos de sua pesquisa eram as soluções para casos que os cidadãos submetiam a ele para estudo, assim como industriais poderiam hoje submeter a um físico ou a um engenheiro um problema técnico relativo a suas fábricas ou sua produção. Consequentemente, a lei romana privada era algo a ser descrito ou ser descoberto, não algo a ser decretado – um mundo de coisas que existiam, formando parte do patrimônio comum de todos os cidadãos romanos. Ninguém decretava aquela lei; ninguém poderia mudá-la por qualquer exercício de sua vontade pessoal.

Bruno Leoni, Liberdade e a Lei

As cortes anglo-saxãs, chamadas de moots, eram assembleias públicas de homens comuns e vizinhos. Os moots não gastavam seus esforços criando ou codificando a lei; eles deixavam isso para o costume e para os códigos de leis essencialmente declaratórios dos reis. […] Como em outros sistemas legais consuetudinários, os moots tipicamente exigiam que os criminosos pagassem restituição ou composição a suas vítimas […] Os códigos de leis da Europa no início da Idade Média consistia largamente de listas de crimes e as correspondentes tabelas de pagamentos. Ao emitir esses, os reis não estavam legislando no sentido moderno: eles estavam, ao invés, codificando e declarando o costume e a prática já existentes.

Tom Bell. Polycentric Law, Humane Studies Review 7, No. 1, 1991/92

Quando surge um caso para o qual nenhuma lei válida pode ser aduzida, então os homens legítimos ou os árbitros farão nova lei na crença de que o que estão fazendo é a boa e velha lei, não de fato expressamente proferida, mas tacitamente existente. Eles, portanto, não criam a lei: eles a ‘descobrem’.

Fritz Kern. Kingship and Law in the Middle Ages

Como Agostinho diz, aquilo que não é correto parece não ser lei alguma; por conseguinte a força de uma lei depende da medida na qual ela é correta. […] Consequentemente, toda lei humana tem a natureza da lei apenas na medida em que ela é derivada da lei da natureza. Mas se, em qualquer ponto, ela se desvia da lei da natureza, ela não mais é uma lei, mas uma perversão da lei, […] quando uma autoridade impõe sobre seus subordinados ‘leis’ onerosas conducentes e não o bem comum, mas sim a sua própria cupidez e vanglória […] e similares são atos de violência em vez de leis […], por conseguinte tais ‘leis’ não se vinculam na consciência […]. Um governo tirano não está certo […]. Consequentemente, não há sedição em incomodar um governo desse tipo […]. De fato, é o tirano, antes, que é culpado de sedição […]. Se uma coisa é por si só contrária ao direito natural, o desejo humano não pode torná-la correta […].

Thomas Aquinas, Summa Theologiæ, séc. XIII.

Um legislador humano não tem um arbítrio perfeito, como tem Deus; e portanto […] tal legislador pode às vezes prescrever coisas injustas, um fato que é manifestamente verdadeiro; mas ele não tem o poder de vincular através de leis injustas, e consequentemente, mesmo embora ele possa de fato prescrever aquilo que é injusto, tal preceito não é lei, porquanto ele carece de força ou validade para impor uma obrigação vinculante.

Francisco Suarez. On Laws, and on God as Legislator, séc. XVII

Nihil quod est contra rationem est licutum: nada que é contra a razão é lícito. É uma máxima certa no direito, pois a razão é a vida da lei.

Richard Overton. A Defiance Against All Arbitrary Usurpations or Encroachments, séc. XVII

Estas são as lei eternas e imutáveis do bem e do mal, às quais o próprio criador em todas suas dispensações se conforma; e que ele capacitou a razão humana para descobrir, tanto quanto elas são necessárias para a conduta das ações humanas. Tais, entre outros, são estes princípios: que devemos viver honestamente, não devemos ferir ninguém, e devemos dar cada um o seu devido; aos quais três princípios Justiniano reduziu toda a doutrina da lei. […] [Deus] misericordiosamente reduziu a regra da obediência e esse único preceito paternal, ‘que o homem deve perseguir sua própria felicidade’. Este é o fundamento do que chamamos de ética, ou lei natural. […] Esta lei da natureza, sendo coesa com a humanidade e ditada pelo próprio Deus, é, claro, superior em obrigação a qualquer outra. É vinculante em todo o globo, em todos os países, e em todos os tempos: nenhuma das leis humanas tem qualquer validade, se contrária a esta; e aquelas delas que são válidas derivam toda sua força, e toda sua autoridade, mediata ou imediatamente, desta original. […]

Aqueles diretos, então, que Deus e a natureza estabeleceram, e são portanto chamados de direitos naturais, como são a vida e a liberdade, não precisam do auxílio de leis humanas para serem mais eficazmente aplicadas a todo homem do que são; nem recebem eles qualquer força adicional quando declarados, pelas leis municipais, como sendo invioláveis. Pelo contrário, nenhuma legislatura humana tem o poder de abreviá-los ou destruí-los […]. Pois aquela legislatura em todos esses casos age apenas, como foi observado antes, em subordinação ao grande legislador, transcrevendo e publicando seus preceitos. […] [Um juiz é] jurado a determinar, não de acordo com seu próprio julgamento particular, mas de acordo com as leis e costumes conhecidos da terra; não delegado a pronunciar uma nova lei, mas a manter e expor a antiga. Ainda assim […] se for descoberto que a decisão anterior é manifestamente absurda ou injusta, é declarado, não que tal sentença foi uma lei ruim, mas que ela não era lei; ou seja, que ela não é o costume estabelecido do reino […].

William Blackstone. Commentaries on the Laws of England, séc. XVIII

Mas que a origem do governo seja colocado onde for, o fim dele é manifestamente o bem do todo. Salus populi suprema lex esto [que o bem-estar do povo seja a lei suprema], é a lei da natureza […]. Dizer que o parlamento é absoluto e arbitrário, é uma contradição. O parlamento não pode fazer 2 e 2 são 5: a Onipotência não pode fazê-lo. O poder supremo num Estado é jus dicere [dizer o correto] apenas: – jus dare [dar o correto] estritamente falando, pertence somente a Deus. Parlamentos devem, em todos os casos, declarar o que é para o bem do todo; mas não é a declaração do parlamento que o faz assim: Deve haver em cada instância uma autoridade maior, viz. DEUS. Fosse um ato do parlamento contra qualquer de suas leis naturais, que são imutavelmente verdadeiras, a declaração deles seria contrária a verdade, igualdade e justiça eternas, e consequentemente nula: e assim seria julgada pelo próprio parlamento, quando convencidos de seu erro. Sobre esse grande princípio, os parlamentos anulam tais atos, tão logo eles descubram que estavam errados ao ter os declarado ser pelo bem público, quando de fato não o eram.

James Otis. The Rights of the British Colonies Asserted and Proved, séc. XVIII

[…] A justiça é um princípio imutável e natural; e não qualquer coisa que possa ser feita, desfeita ou alterada pelo poder humano. […] Ela não deriva sua autoridade dos comandos, do desejo, do prazer ou da discrição de qualquer combinação possível de homens, que se chamem um governo, ou por qualquer outro nome.

Ela é também, em todos os momentos, e em todos os lugares, a lei suprema. E sendo em todo lugar e sempre a lei suprema, é necessariamente em todo lugar e sempre a única lei. Os legisladores, como se chamam, não podem adicionar nada a ela, nem tirar nada dela. Portanto suas leis, como eles as chamam, – ou seja, todas as leis de sua própria criação, – não têm nenhum tom de autoridade ou obrigação. É uma falsidade chamá-las de leis; pois não há nada nelas que ou crie os deveres e direitos dos homens, ou os ilumine quanto a seus deveres e direitos. Consequentemente não há nada vinculante ou obrigatório sobre eles. […] É intrinsecamente tão falso, absurdo, e ridículo dizer que os legisladores, assim chamados, podem inventar e fazer quaisquer leis, deles mesmos […] quanto o seria dizer que eles podem inventar e criar tanta matemática, química, fisiologia, ou outras ciências, quanto entenderem […].

Lysander Spooner. Letter to Grover Cleveland, séc. XIX

Eu nego que os legisladores façam a lei. Eles criam atos legais, estatutos, que podem ou não coincidir com a verdadeira Lei, e de fato raramente o fazem. […] A grande maioria de tais atos legislativos se destinam a prevenir, ou dificultar ou apartar a ação humana inofensiva e útil, então a aplicação deles tem esse efeito lamentável.

Rose Wilder Lane. The Lady and the Tycoon, séc. XX

Parte IV: A Base da Lei Natural

Há Espaço para a Lei Natural?

Nos fascículos anteriores dessa série (Partes I e II; Parte III), eu me referi à Lei Natural como o padrão transcendente ao qual as leis feitas pelo homem devem corresponder a fim de serem legítimas. Mas existe algo como uma Lei Natural? Temos justificativa em apelar para tal conceito? Ou ele está irremediavelmente ultrapassado, um remanescente anticientífico de um modo de pensamento medieval?

Tradicionalmente, a Lei Natural é chamada de “natural” por duas razões. Primeiro, a Lei Natural se distingue da lei convencional; em outras palavras, a Lei Natural não depende ou deriva de instituições e costumes humanos. (Se o fizesse, ela não poderia servir como um padrão pelo qual julgar a lei humana.) Segundo, a Lei Natural se distingue da lei sobrenatural; em outras palavras, a Lei Natural está acessível à razão humana ao invés de exigir uma revelação divina. (Historicamente, os teóricos da Lei Natural têm discordado uns com os outros sobre se a Lei Natural deriva sua autoridade dos comandos de Deus; mas mesmo aqueles que mantiveram - erroneamente, a meu ver - que a Lei Natural de fato depende dos comandos divinos, não obstante insistiram que a Lei Natural representa aquela porção dos comandos de Deus que podemos descobrir por nós mesmo sendo racionais e razoáveis, através de nosso próprio intelecto sem ajuda, sem apelar à escritura ou outras formas de revelação.)1

Mas as próprias características da Lei Natural que a tornam atrativa - sua independência dos costumes humanos e sua acessibilidade à razão - são também as características que a tornam controversa.

Como pode haver uma lei que não repousa sobre quaisquer instituições ou práticas legais? Sobre o que ela é fundamentada então? Em outras palavras, qual é a base metafísica da Lei Natural?

Similarmente, como um padrão moral pode ser averiguado pela razão humana? Como poderíamos adquirir conhecimento objetivo do que é certo e do que é errado? Em outras palavras, qual é a base epistemológica da Lei Natural?

Sem algumas respostas a essas questões - ou, pelo menos, sem alguma esperança de que elas possam, em princípio, ser respondidas - qualquer teoria política que apela à Lei Natural vai estar em terreno instável.

Ao final da Parte III, no Outono de 1994, eu prometi que o próximo número consideraria “A Base da Lei Natural”. Bem, já se foram dois anos, mas agora eu retorno, enfim, ao tópico prometido. Uma defesa em grande escala da teoria da Lei Natural, no entanto, é uma tarefa para além do escopo desse artigo; então eu me limitarei a responder algumas das objeções mais comuns que eu tenho encontrado dentro da comunidade libertária à noção da Lei Natural (e o conceito associado de direitos naturais).

Quem tem o ônus da prova?

Mas primeiro deixe-me fazer uma observação sobre o ônus da prova. A maior parte dos críticos da Lei Natural assume que o ônus da prova jaz com o proponente da Lei Natural - presumivelmente porque eles veem a Lei Natural como algo bizarro e inverossímil, algo que não se poderia sensatamente acreditar ao menos que houvesse um argumento chocante a favor dela. Mas na verdade, acreditar na Lei Natural é simplesmente acreditar que há padrões morais que transcendem as práticas e costumes de qualquer dada comunidade - que existem fundamentos racionais para condenar o regime Nazista como imoral, que é possível estar justificado em condená-lo, mesmo se assumirmos que o que os Nazistas fizeram estava perfeitamente de acordo com os valores da cultura Nazista. Quando condenamos o Nazismo, nós normalmente não nos tomamos por estar expressando uma preferência puramente pessoal e subjetiva, como a preferência por chocolate sobre baunilha; pelo contrário, nossas práticas comuns de elogiar e condenar parecem assumir implicitamente que há padrões morais objetivos, i.e., que há uma Lei Natural à qual as leis feitas pelos homens são responsáveis.

Agora, claro, o fato de que práticas comuns assumem implicitamente algo não é nenhuma garantia de que o que elas assumem é verdadeiro. Mas tal fato não parece mudar o ônus da prova.

Considere: o fato de que me parece que eu estou sentado na frente do meu computador digitando estas palavras não garante que eu realmente o esteja fazendo; eu posso estar sonhando, ou alucinando, ou eu posso estar preso num programa de realidade virtual incrivelmente realista. Agora, um filósofo como Descartes diria que eu tenho o ônus de provar que eu não estou sonhando, alucinando, etc. - que eu tenho que ser capaz de excluir essas alternativas antes que eu possa ter justificativa para pensar que eu realmente estou aqui, acordado e digitando.

Mas se Descartes estivesse certo - se não pudéssemos ter justificativa para acreditar em qualquer coisa ao menos que primeiro excluíssemos toda possibilidade de erro - então nunca poderíamos ter justificativa para acreditar em nada, uma vez que qualquer evidência que apontássemos a fim de provar confiáveis nossas crenças iniciais teria, por sua vez, que ser justificada por um apelo a evidências adicionais e assim por diante ad infinitum. E se isso fosse assim, então não poderíamos ter justificativa para manter a crença que nos pôs a descer essa regressão infinita em primeiro lugar - ou seja, a crença de que a fim de ter justificativa para se acreditar em qualquer coisa, nós devemos primeiro excluir toda possibilidade de erro. Então o ceticismo cartesiano, em última análise, mina a si mesmo: se tudo deveria ser duvidado, então a alegação de que tudo deveria ser duvidado é uma das coisas que deveria ser duvidada - e uma vez que vamos duvidar disso, perdemos nosso motivo inicial para duvidar tudo o mais.2

O que isso significa é que temos, afinal, justificativa para aceitar as maneiras como as coisas inicialmente nos parecem como uma imagem verdadeira do mundo, apesar da possibilidade de que essas crenças estejam erradas. Agora, isso não significa que temos justificativa para nos agarrar a nossas crenças com fé cega, desafiando toda evidência do contrário. Mas significa que aqueles que se opõem a essas crenças comuns são os que têm o ônus da prova; nós temos justificativa para aceitar nossas crenças iniciais até que encontremos evidências convincentes de que elas são falsas. Isto deve ser assim, porque a posição contrária, como vimos, é racionalmente incoerente. Então se nossa prática comum de julgamento moral nos compromete a acreditar na Lei Natural, então a Lei Natural é parte de nossa imagem do mundo, e temos justificativa para aceitá-la até que alguém nos dê uma boa razão para rejeitá-la. O ônus da prova, dessa maneira, jaz com os oponentes da Lei Natural.

Isso não é dizer que eu acho que não há um caso positivo a ser feito a favor da Lei Natural. Pelo contrário, muito da minha pesquisa filosófica é devotada a fazer tal caso, contando com as compreensões da tradição Aristotélica, combinadas com as descobertas filosóficas dos últimos trinta anos. Meu ponto é simplesmente que a justificativa para se aceitar a Lei Natural como parte da sua imagem do universo não exige que o caso positivo em favor da Lei Natural seja estabelecido primeiro.

Agora vamos nos voltar para algumas daquelas objeções comuns à teoria da Lei Natural.

Objeção Um: a Lei Natural não serve a qualquer propósito útil

A Lei Natural: proteção ineficaz?

Uma objeção com que às vezes se cruza nos círculos libertários é que a Lei Natural, e em particular os direitos naturais (os direitos que temos sob a Lei Natural) são inúteis. Uma Lei Natural contra o homicídio ou roubo não nos protege de homicidas e ladrões; um direito natural à vida não vai transformar a lâmina da faca de um assaltante, nem repelir a bala de um assassino; um direito natural à propriedade não é tão útil quanto muros altos ou fechaduras resistentes.

Uma versão dessa crítica é apresentada por L. A. Rollins em seu panfleto The Myth of Natural Rights (Port Townsend: Loompanics, 1983). Rollins pergunta:

Quantas vidas de judeus [sob os Nazistas] foram salvas por seu direito natural à vida? A resposta, claro, é: Zero. […] Se todos os judeus da Europa ocupada pelos Nazistas tinha um direito natural à vida e, ainda assim, o regime Nazista foi capaz de matar seis milhões deles, então claramente os direitos naturais não têm valor algum como dispositivos de proteção. Um colete à prova de balas pode proteger uma pessoa contra tomar um tiro, mas um direito natural nunca parou uma única bala. ( Rollins. The Myth of Natural Rights, pp. 40-41.)

Outro mitologista dos direitos naturais é Eric Mack, que diz ‘Os direitos lockeanos sozinhos fornecem a barreira filosófica moral contra a invasão do Estado sobre a Sociedade’. Mas uma ‘barreira filosófica moral’ é meramente uma barreira metafórica, e ela não irá prevenir a invasão do Estado sobre a ‘Sociedade’ mais do que um escudo filosófico impedirá uma flecha física de perfurar seu corpo.

Mas se os direitos naturais são meramente direitos falsos ou metafóricos, o que então são os direitos reais? Direitos reais são aqueles direitos realmente conferidos e feitos cumprir pelas leis de um Estado ou pelos costumes de um grupo social. (Rollins. The Myth of Natural Rights, p. 2.)

O que devemos fazer com essa crítica? Bem, vamos esboçar algumas distinções.

A função da Lei Natural: orientação, não proteção

No discurso comum, nós frequentemente alternamos sem notar entre diferentes sentidos de “direitos”. Por exemplo, podemos dizer, num só fôlego, que os cidadãos na China não têm direito à livre expressão - e então dizer, em outro fôlego, que o direito dos cidadãos chineses à livre expressão está sendo violado. Logicamente, isto não parece fazer nenhum sentido; você não pode violar um direito que suas vítimas sequer têm. (Ninguém diria, por exemplo, que meu direito de governar a América do Norte está sendo violado, porque ninguém acha que eu tenha tal direito em primeiro lugar.) Mas nosso discurso comum faz mais sentido uma vez que percebemos que o termo “direitos” está sendo usado em mais do que um sentido, de modo que o tipo de direito que está sendo violado na China é uma espécie diferente do tipo de direito que os chineses não têm.

Primeiro, podemos distinguir entre “direitos” no sentido normativo e “direitos” no sentido descritivo. Fatos normativos são fatos sobre o que as pessoas devem fazer; fatos descritivos são fatos sobre o que as pessoas realmente fazem.

Por sua vez, podemos distinguir duas subvariedades de direitos descritivos: direitos legais e direitos de facto.

Isso nos dá uma distinção tripla:

Direitos normativos: as reivindicações de que devem ser respeitadas e protegidas. Direitos legais: as reivindicações que uma dada instituição legal oficialmente anuncia que respeitará e protegerá. Direitos de facto: as reivindicações que realmente recebem respeito e proteção em uma dada sociedade.

Voltando ao meu exemplo da China, quando alguém alterna entre dizer que os chineses não têm direito à livre expressão e dizer que seu direito à livre expressão está sendo violado, ele provavelmente quer dizer uma das seguintes coisas:

(a) Os chineses têm um direito normativo à livre expressão, mas nenhum direito legal. (b) Os chineses têm um direito legal à livre expressão, mas nenhum direito de facto. (c) Os chineses têm um direito normativo à livre expressão, mas nenhum direito de facto.

(Eu não sei o suficiente sobre a lei chinesa para saber se (a) ou (b) está mais próximo da verdade, embora (c) seria verdade em ambos os casos.)

Agora podemos ver onde a crítica de Rollins deu errado. Rollins está pensando sobre os direitos naturais como se eles fossem um tipo especial de direito legal - um direito legislado por Deus ou pela Natureza em vez do Estado. Dada essa suposição, o que ele diz faz sentido: direitos legais são de pouco valor ao menos que também sejam direitos de facto. (Quando Rollins se refere a “direitos reais” como “aqueles direitos realmente conferidos e feitos cumprir pelas leis de um Estado ou pelos costumes de um grupo social”, ele claramente tem em mente direitos de facto.) Assim como não me faz bem algum ter um direito legal no papel que o Estado fala muito na teoria, mas ignora sistematicamente na prática, também não me faz bem algum ter um direito natural inscrito na Lei da Natureza, se ninguém estiver disposto ou for capaz de fazer valer esse direito.

Mas esta é a maneira errada de se pensar sobre direitos naturais. Um direito natural não é um direito legal, é um direito normativo. Alegar que os direitos naturais não protegem nada é fugir à questão; direitos naturais deveriam receber proteção, não fornecê-la. Igualmente, a função da Lei Natural não é proteger quaisquer reivindicações, mas sim nos dizer quais reivindicações merecem proteção. Como conceitos normativos, os direitos naturais fornecem orientação para a conduta das pessoas. Culpar os direitos naturais por não nos proteger é como culpar um livro de receitas por não fazer o jantar. Livros de receitas não fazem o jantar para nós; seu propósito é nos ensinar como fazer o nosso próprio jantar. Igualmente, a Lei Natural não guia nossas vidas por nós; seu propósito é nos guiar na vivência de nossas próprias vidas.3

A Lei Natural pode às vezes proteger

Então se os direitos naturais não nos protegem, isso não é nenhuma acusação contra a teoria da Lei Natural. Na verdade, no entanto - apesar de essa não ser sua função essencial - os direitos naturais podem e às vezes proporcionam às pessoas uma proteção de facto. Ao discutir o Holocausto, Rollins toma como óbvio que os direitos naturais dos judeus não salvaram nenhum deles. Mas isso é verdade? Por toda a Europa ocupada pelos Nazistas, milhares de vidas de judeus foram salvas por pessoas corajosas e comprometidas que foram motivadas por seu reconhecimento dos direitos dos judeus à vida e à liberdade - direitos cuja autoridade transcendia os ditos do Estado Nazista. Ao cumprir sua função normativa primária de guiar as escolhas dos resgatadores, os direitos naturais dos judeus, assim, fizeram indiretamente o que Rollins diz que os direitos naturais não podem fazer - eles salvaram as vidas dos judeus.

Agora, Rollins sem dúvida responderia que esses judeus foram salvos não por direitos naturais, mas pela crença dos resgatadores nos direitos naturais. Bem, suponha que eu estou caminhando distraidamente e estou quase pisando inadvertidamente num poço de escorpiões mortais, quando Rollins repentinamente grita “cuidado!”. Eu ouço seu grito de aviso, e paro bem na hora. Agora, se eu disser que esse grito de aviso salvou minha vida, Rollins objetaria que isso está errado e que foi apenas a minha percepção de um grito de aviso que salvou minha vida? Em tal caso, isso seria um subterfúgio inútil, porque embora minha salvação tenha sido causada pela minha percepção do grito de aviso, essa percepção do grito de aviso foi, por sua vez, causada pelo grito de aviso em si; então qualquer um dos dois pode ser creditado como causalmente responsável por eu ter escapado dos escorpiões.

Mas Rollins presumivelmente insistiria que o caso dos resgatadores do Holocausto é diferente, porque embora a salvação dos judeus tenha sido causada pela crença dos resgatadores nos direitos naturais, a crença dos resgatadores nos direitos naturais não foi causada pelos próprios direitos naturais. Aqui eu devo discordar, no entanto; eu não vejo por que a crença dos resgatadores não poderia ser resultado de eles terem reconhecido e identificado corretamente o fato dos direitos naturais dos judeus, assim como eu ter evitado o poço de escorpiões foi o resultado de eu ter reconhecido e identificado corretamente o fato do grito de aviso de Rollins.

A única resposta que Rollins pode dar é que os resgatadores não podem ter reconhecido e identificado o fato dos direitos naturais porque não existe tal fato; mas nesse caso o argumento de Rollins pela inutilidade dos direitos naturais suscita a questão contra seus adversários ao pressupor que os direitos naturais não existem. (Afinal, é bastante fácil provar que algo é inútil se você primeiro pressupõe que ele não existe!)

Quais são os direitos que o poder faz?

Uma variação recente do argumento direitos-naturais-não-protegem é o artigo de Rich Hammer “Might Makes Right: An Observation and a Tool” [Formulations, Vol. III, No. 1 (Autumn 1995)]. Rich argumenta que os direitos que temos são os que fomos capazes de assegurar pela força:

Conforme nós humanos vivemos, nós constantemente propomos novos direitos e testamos os antigos direitos. O que determina quais direitos sobrevivem a essa luta contínua? A força. Esses direitos que sobrevivem são aqueles suportados pela maior força - pelo que eu quero dizer tanto a habilidade quanto o desejo de policiar. […] No longo prazo, a quantidade de força que as pessoas podem produzir para defender qualquer direito depende de quanto esse direito ajuda essas pessoas a sobreviver em seu ambiente. Isso limita a medida em que os humanos podem inventar direitos para servir seus caprichos. (Rich Hammer. Might Makes Right, p. 14)

Quando eu leio uma passagem como essa, minha primeira questão é se os direitos sobre os quais se fala são direitos normativos, direitos legais, ou direitos de facto. Se Rich estiver falando de direitos de facto apenas, então eu não acho que eu tenha qualquer discordância com o que Rich diz, pelo menos se “força” for definida amplamente o suficiente (e.g., a habilidade de motivar pessoas através de argumento persuasivo para que respeitem certos direitos conta como um policiamento efetivo desses direitos?).

A maior parte dos argumentos que Rich passa a dar parece mesmo se destinar a se aplicar especificamente a direitos de facto (e também, até certo ponto, a direitos legais). Por exemplo, Rich oferece o seguinte desafio a seus leitores:

Aqui eu peço a vocês que refutem essa tese com um contra-exemplo. Se essa tese estiver errada, então vocês podem me mostrar um exemplo de um direito que sobreviveu apesar de uma reivindicação contrária ser suportada por maior vontade e habilidade de se usar força. (Rich Hammer. Might Makes Right, p. 15)

Esse pedido por um contra-exemplo parece pressupor que são direitos descritivos que estão em questão. Pois, claro, nenhum libertário jusnaturalista terá qualquer problema em apresentar exemplos de direitos normativos que ainda mantemos a despeito da habilidade de suportá-los por força - porque direitos normativos são direitos que mantemos mesmo quando somos privados de seja lá o que for que os direitos sejam. Na verdade, essa é a diferença crucial entre direitos normativos e direitos de facto. Se você rouba minha jaqueta, eu perco meu direito de facto à minha jaqueta, porque minha reivindicação àquela jaqueta não foi respeitada; mas eu mantenho meu direito normativo à jaqueta, enquanto continuar sendo verdade que minha reivindicação à jaqueta deveria ser respeitada. Então, quando Rich assume que será duro apresentar exemplos de direitos que podemos manter a despeito de reivindicações contrárias serem suportadas por uma maior força, parece que ele deve estar pensando sobre direitos de facto, não direitos normativos.

Mas isso não pode ser a história toda. Pois Rich acha que sua posição vai ser controversa e indesejável:

Eu temo que a tese, que pode ser parafraseada como ‘poder faz o direito’, vai perturbar alguns colegas libertários que acreditam que os direitos vêm de outras fontes.

Deixe-me esclarecer que eu não estou dizendo que eu quero que o poder faça o direito. Em muitas instâncias essa tese é contrária aos valores pelos quais eu vivo. Mas eu observo que a tese faz sentido, gostemos ou não. (Rich Hammer. Might Makes Right, p. 14)

Quem são esses libertários que vão ser perturbados pela tese de Rich? Libertários que acreditam que direitos de facto vêm de fontes outras que não um poderio superior? Eu não estou certo que existam quaisquer tais libertários. E eu suspeito fortemente que Rich, ao invés, tem em mente libertários que acreditam em direitos normativos que eles consideram como derivados de outras fontes que não um poderio superior - fontes como a Lei Natural, por exemplo. Mas por que tais libertários seriam perturbados pela tese de Rich, se é uma tese apenas sobre a fonte de direitos de facto? Claramente, Rich acha que sua tese tem implicações - implicações desfavoráveis - para as teorias dos libertários jusnaturalistas. E isso significa que a tese de Rich é mais do que apenas uma tese sobre direitos de facto; ela tem algo a dizer sobre direitos normativos também.

Mas o quê? Parece haver duas possibilidade salientes. Ou (a) Rich está dizendo que um poderio superior é a única fonte não apenas de direitos de facto mas também de direitos normativos; ou então (b) Rich está dizendo que não há quaisquer direitos normativos, que os direitos de facto são os únicos direitos que existem.

Eu estou inclinado a duvidar que (a) é o que Rich quer dizer. Se (a) fosse a tese de Rich, então ele estaria comprometida a endossar e aprovar qualquer direitos de facto que acabem sendo favorecidos pelo poderio superior. Agora, para ter certeza, Rich realmente argumenta que os resultados do poderio superior vão geralmente tender a serem benéficos, pelo menos no longo prazo; mas ele também diz que existem casos em que a tese do poder-faz-o-direito é “contrária aos valores pelos quais eu vivo”; ao dizer isso, Rich parece estar negando que em todo caso ele considerará automaticamente como valioso qualquer conjunto de arranjos que prevaleça.4

Essa interpretação é reforçada pela seguinte passagem:

[…] esteja atento para a distinção entre direitos que são meramente reclamados e direitos que são suportados por força.

Através de truques de linguagem, desejos frequentemente avançam em status para direitos. Mas um ponto de eu escrever esse artigo é nos ajudar a ver a diferença entre desejos e direitos. […] No país em que eu vivo, a maioria dos membros da população parece acreditar que eles têm um direito de compartilhar dos frutos do trabalho de outras pessoas, contanto que esse compartilhamento seja aprovado pela legislatura. E […] eles de fato têm esse direito, uma vez que ele é suportado com vontade e habilidade para prevalecer no uso da força. Claro que eu favoreço a reivindicação alternativa, manter todos os frutos do meu próprio trabalho, mas essa reivindicação é diminuída ao status de um desejo; ela carece de força. (Rich Hammer. Might Makes Right, p. 14)

Se o compreendo apropriadamente, Rich parece estar dizendo que qualquer reivindicação que não seja suportada por força o suficiente - isto é, qualquer reivindicação que falhe em ser um direito de facto - não é nada mais do que um desejo, uma preferência subjetiva. E isso, por sua vez, parece significar que não há fundamentos objetivos para preferir uma reivindicação sobre a outra, não há nada como reivindicações que devem ser respeitadas e reivindicações que devem ser negadas. Em outras palavras, não há direitos normativos, e não há Lei Natural.

Agora, claro que esse tipo de ceticismo moral pode ser verdadeiro. Mas eu não consigo ver que o artigo de Rich nos dá razão para pensar que isso seja verdadeiro. Eu acho bastante convincentes os argumentos de Rich a favor da alegação de que direitos de facto são feitos pelo poder; mas esses argumentos não parecem eliminar a possibilidade de direitos normativos que não dependem do poder para sua validade.

Objeção Dois: Não poderia haver algo como uma Lei Natural

Lei Natural: uma ferramenta de manipulação?

Outra objeção com a qual é um pouco mais difícil de lidar é a reclamação de que há algo assustador e misterioso sobre a Lei Natural e os direitos naturais. Em seu panfleto Natural Law: or Don’t Put a Rubber on Your Willy (Port Townsend: Loompanics, 1987), o escritor libertário de ficção científica Robert Anton Wilson caracteriza a teoria dos direitos naturais como a visão de que “algum tipo de entidade metafísica chamada ‘direito’ reside em um ser humano como um ‘fantasma’ reside numa casa mal-assombrada.” (p. 4) A implicação é que os direitos naturais são estranhos demais para serem críveis.

Como Rollins, Wilson parece querer tratar os direitos naturais como se eles devessem ser fatos descritivos. Mas os direitos naturais são fatos normativos. Dizer que Wilson tem um direito natural a ser tratado de uma maneira X não é dizer que há algum tipo de espírito invisível à espreita em algum lugar dentro do corpo de Wilson. Na verdade, o que quer dizer é isso:

É moralmente obrigatório que outras pessoas tratem Wilson da maneira X. É moralmente permissível que Wilson ou seu agente forcem outras pessoas a tratarem Wilson da maneira X.

Em outras palavras, os direitos naturais consistem de fatos sobre o que as pessoas devem fazer, como as pessoas devem tratar umas as outras. Agora, as pessoas às vezes falam como se (a) e (b) fossem verdadeiros porque Wilson tem um direito a ser tratado da maneira X, como se o direito fosse algo separado, acima e além dos fatos (a) e (b). Mas isso não me parece mais do que uma figura de linguagem. Estritamente falando, não há nada mais sobre Wilson ter um direito a ser tratado de maneira X do que a existência das obrigações e permissões morais listadas em (a) e (b). Assim, os direitos naturais só podem ser repudiados como ofensivamente assustadores e misteriosos se toda a noção de uma moralidade objetiva - da existência de fato sobre o que as pessoas devem ou não fazer - for também repudiada como ofensivamente assustadora e misteriosa.

Está é, de fato, a posição que Rollins toma:

Se você quer que alguém faça algo que ele não tenha nenhuma razão pessoal para fazer, mas você está impossibilitado ou indisposto (talvez com medo) de usar coerção real para levá-lo a fazer isso, então você pode tentar levá-lo a fazer isso por meio de uma coerção metafórica ou falsa. Você pode dizer a ele que é seu dever fazê-lo. Você pode dizer a ele que ele ‘deve’ fazê-lo. Por quê? Simplesmente porque ele deve. E se ele for crédulo o suficiente para acreditar que ele deve fazer o que você diz, simplesmente porque ele deve, então você controla essa ovelha de duas pernas por meio da coerção metafórica ou falsa do dever. […] A moralidade […] é um mito inventado para promover os interesses, desejos e propósitos dos inventores. A moralidade é um dispositivo para controlar os ingênuos com palavras. ‘Você “não deve” cometer assassinato!’ Por que não? ‘Porque o assassinato é “errado”! O assassinato é “imoral”! Disparate! O assassinato pode ser impraticável, ou excessivamente arriscado, ou simplesmente não valer a pena. Há todo tipo de razões pelas quais eu posso me abster de cometer assassinato mesmo quando eu gostaria de fazê-lo. Mas o assassinato não é ‘errado’. O assassinato não é ‘imoral’. E o mesmo vale para estupro, roubo, assalto, agressão, sodomia, bestialidade, incesto, traição, tortura de crianças, suicídio, canibalismo, etc. […] Nada é sagrado. Nada tem ‘direito à reverência’. Nada é “inviolável”. (Rollins. The Myth of Natural Rights, p. 8-9, 19.)

Rollins está mais disposto do que a maior parte dos críticos da Lei Natural a enfrentar as consequências lógicas de sua posição. Mas se a moralidade é meramente uma ferramenta para manipular outras pessoas para que façam o que se quer, se pergunta por que as pessoas lutam privadamente com dilemas morais, por que elas se encontram compelidas pela consciência a fazer algo que é importuna não só a elas mesmas mas àqueles a seu redor.

Mais importante, no entanto, a questão é por que deveríamos aceitar a alegação de Rollins de que nada está certo ou errado e nada tem direito à reverência. Essas são alegações extraordinárias, alegações que contrariam nossas crenças e práticas comuns, e portanto o ônus da prova jaz com a pessoa que faz tais alegações.

A base metafísica da Lei Natural

Os teóricos da Lei Natural podem não ter o ônus da prova; mas ainda é uma questão justa perguntar que tipos de fatos os fatos normativos poderiam ser, que base na realidade eles poderiam ter. Esse é uma questão a qual diferentes teóricos da Lei Natural fornecem diferentes respostas. No meu trabalho filosófico, eu estou tentando desenvolver uma resposta própria; minha posição ainda não está totalmente elaborada, mas o que se segue é um esboço em miniatura do tipo de abordagem que eu acho mais plausível:

(1) Os céticos sobre a possibilidade de uma moralidade objetiva frequentemente dizem que nós chamamos as coisas de boas ou valiosas simplesmente porque as desejamos. Mas isso trata os desejos como se fossem simplesmente impulsos cegos sem qualquer conteúdo cognitivo. Parece mais psicologicamente realista dizer que desejar algo envolve considerar essa coisa como boa, valiosa, digna de escolha. Em outras palavras, o desejo é uma resposta a um valor aparente; a atividade de desejar implicitamente nos compromete a aceitar a existência de valores objetivos, i.e., valores independentes de nossos desejos.

(2) “Bom” e “valor” são conceitos inerentemente relacionais; ser bom ou valioso é ser bom para ou valioso para alguém. Afinal, conceitos normativos são conceitos-guia da ação, e desta forma são sem significado exceto no contexto de um agente cujas ações devem ser orientadas.

(3) Desta forma, cada um de nós implicitamente busca bens que são tanto objetivos (i.e., não simplesmente uma função de nossas preferências subjetivas) e relativos a agentes (i.e., não bens estritamente impessoais, mas os que são bens para si).

(4) Um organismo vivo - seja uma azálea ou um contador - não pode ser completamente explicado sem apelar para os “fins naturais” ou metas daquele organismo. Como Darwin mesmo percebeu, essa abordagem teleológica é apenas apoiada, não desacreditada, pela teoria da evolução através da seleção natural. Tais fins naturais fornecem o conteúdo para os bens objetivos e relativos a agentes que nossos desejos nos comprometem a buscar.

(5) Os fins naturais podem ser ordenados por sua classificação de acordo com a centralidade e a importância, que, por sua vez, são funções do poder explicativo teleológico. Se A e B são ambos fins naturais meus, mas A explica mais sobre mim do que B, ou se os fatos que A explica sobre mim são mais centrais e essenciais a mim do que os fatos que B explica, então A é mais um fim meu do que B. Desta forma, por exemplo, a capacidade de raciocínio explica um número maior das características dos seres humanos do que a capacidade de afinar pianos.

(6) Assim como o fim para o qual uma coisa é usada pode não ser o seu fim mais explicativo (e.g., se eu uso uma pinha como peso de papel, sua meta de se transformar em um pinheiro ainda é mais explicativa, uma vez que ela explica mais sobre a estrutura causal interna que torna a pinha o tipo de coisa que ela mais fundamentalmente é, ao passo que a meta de segurar papéis apenas explica o fato acidental e periférico da pinha estar onde está, quando está), da mesma forma mesmo o fim pelo qual uma coisa é criada pode não ser o seu fim mais explicativo.

Por exemplo, uma faca é projetada para cortar coisas. Mas suponha que eu faça uma faca a fim de assustar potenciais agressores. Eu não tenho intenção alguma de cortar ninguém com ela; se meu plano funcionar, eu nunca terei que utilizá-la. Ainda assim, a meta de cortar é mais explicativa do que a meta de assustar agressores; como no caso da pinha, a meta de cortar explica mais sobre a estrutura causal interna que torna a faca o tipo de coisa que ela mais fundamentalmente é, ao passo que a meta de assustar agressores apena explica o fato acidental e periférico da faca ter vindo à existência onde o fez, quando o fez. Similarmente, se um casal procria a fim de ter um escravo conveniente, o fato de que a criança foi criada a fim de ser o escravo de seus pais não significa que o fim externo sobrepõe os fins internos da própria criança.

Esse ponto também se aplica a explicações teleológicas em termos de “genes egoístas”. Suponha que o impulso pela autopreservação foi implantado em nós porque seres que buscam se preservar tem maior probabilidade de reproduzir seus genes (ao contrário de morrer antes que atinjam a idade de acasalamento). Em outras palavras, nossos genes “escolhem” o impulso pela autopreservação como um meio para a meta da reprodução. Isso pode fazer da reprodução a meta primária dos nossos genes, mas não faz disso a nossa meta primária; dado que nossos genes, a fim de atingir suas metas, se chocaram com a estratégia de nos dar um impulso em direção a uma meta um tanto diferente, então se nós acabarmos escolhendo nossa meta sobre a deles em casos em que as duas metas conflitam, é problema dos nossos genes, não nosso.5 Nós não somos meras marionetes de nossos genes; nós temos a capacidade (nossos genes nos deram!) de rejeitar as metas de nossos genes em favor de outras mais altas (ou, em alguns casos, outras mais baixas).

(7) O fim natural primário de um ser humano não é reproduzir mais seres humanos, mas viver sua vida como um ser humano. Mas algumas vidas - a saber, as vidas que mais completamente expressam as características mais fundamentais e essenciais de ser humano - são mais humanas que outras.6 Uma vez que a razão é a característica mais explicativa de um ser humano, uma vida é mais humana (e assim, mais um fim de alguém) na medida em que ela expressa razão, e então a vida de razão é o fim natural primordial de um ser humano. (Em particular, a racionalidade da vida é mais importante do que a duração dessa vida; a longevidade é apenas um valor entre outros, e pode ser sobreposta.) A Lei Natural, assim, representa as regras para se determinar quais são nossas metas apropriadas, e para agir de acordo; e a força vinculante da Lei Natural vem do fato de que nós já implicitamente desejamos os fins aos quais ela dá conteúdo.

(8) Uma vida que exemplifica a razão apenas nos meios que se escolhe para se atingir os fins não é tão humana quanto uma que exemplifica a razão não apenas nos meios aos seus fins, mas naqueles próprios fins. Dessa maneira, quando quer que escolhemos deixar nossas vidas pessoais serem guiadas por emoção cega em vez de reflexão atenta, estamos escolhendo uma vida menos humana acima de uma mais humana. E similarmente, quando quer que escolhemos lidar com outras pessoas através da violência e da intimidação em vez de através da razão e da persuasão, estamos mais uma vez escolhendo uma vida menos humana acima de uma mais humana. Em ambos os casos, estamos derrotando nosso próprio desejo por nosso bem objetivo. Consequentemente nosso fim natural nos compromete a preferir a vida de razão e cooperação.

(9) Se subordinarmos outras pessoas a nossos próprios propósitos, tratando-as como caça ou objetos de manipulação em vez de como parceiros iguais a serem tratados através da persuasão, estamos escolhendo uma vida que é inferior, por nossos próprios padrões. Dessa maneira, somos obrigados a escolher relações pacíficas quando quer que relações pacíficas estejam disponíveis; somos obrigados a não impor nosso desejo sobre outras pessoas.

Por outro lado, se insistirmos em renunciar à violência mesmo quando relações pacíficas não são uma opção - ou seja, se nos recusarmos a nos defender de agressão - então estamos rejeitando estender nossas vidas mesmo quando poderíamos fazê-lo sem diminuir a humanidade de nossas vidas. Dessa maneira, embora os seres humanos estejam obrigados a respeitar a autonomia uns dos outros, eles não estão de qualquer forma obrigados a se absterem de defender forçosamente sua própria autonomia.7 (De fato, eles podem até mesmo estar obrigados a se defenderem, uma vez que temos outros fins (tais como a autopreservação) que se tornam imperativos para nós quando não conflitam com metas maiores). Mas isso significa que todo ser humano tem uma obrigação de se abster de invadir a liberdade de qualquer outro ser humano, e que é permissível para o último defender essa liberdade por meio de força contra incursões do primeiro. Em outras palavras, todo ser humano tem um direito à liberdade - um direito natural, um que deriva da Lei Natural que especifica nossos fins naturais.

Eu não espero que os nove passos que eu acabei de registrar convençam ninguém; o que eu acabei de oferecer não é um argumento, mas um contorno para um argumento, e cada passo teria que ser preenchido com muito mais detalhe e suportado por argumentos adicionais a fim de ser convincente. De fato, esse projeto é um que estou perseguindo em minha própria pesquisa filosófica. O ponto de estabelecer esses nove passos aqui é simplesmente mostrar que tipo de base metafísica eu acho que pode ser dada para a Lei Natural (e, em particular, mostrar que nenhuma base sobrenatural é exigida).

Além disso, eu deveria enfatizar que não é primariamente sobre a base dos nove passos que eu acabei de esboçar que eu acredito nos direitos naturais libertários. Eu me sinto bem mais certo da existência dos direitos naturais libertários do que eu me sinto da minha habilidade de fundamentar esse argumento de nove passos. O propósito de tal argumento, se puder se feito funcionar, é explicar por que termos os direitos que temos, não justificar nossa crença neles (embora, por outro lado, o processo de trabalhar e desenvolver tal argumento naturalmente induza modificações nos detalhes das alegações de direitos naturais que eu acho que temos justificativa para fazer).

Em séculos anteriores, os teóricos da Lei Natural traçaram uma distinção útil entre o principium essendi da Lei Natural e seu principium cognossendi. O principium essendi de X é a base para X ser como é; o principium cognossendi é a base para se saber que X é como é.

Por exemplo, a madeira de sândalo tem um odor distinto pelo qual pode ser identificada; de modo que o odor é um principium cognossendi da madeira de sândalo. Mas esse odor não é o que faz o sândalo ser o que é; não é o principium essendi do sândalo. O principium essendi do sândalo é, presumivelmente, sua micro-estrutura bioquímica; mas a presença de um distinto odor de sândalo é um indicador confiável da presença dessa micro-estrutura bioquímica. Um principium essendi pode também servir como um principium cognossendi; ou seja, podemos identificar o sândalo pela sua micro-estrutura bioquímica tanto quanto pelo seu odor. Mas nem todo principium cognossendi é também um principium essendi.

O propósito do programa de pesquisa descrito no meu esboço de nove passos é descobrir o principium essendi da Lei Natural e dos direitos naturais. Mas eu não acho que o sucesso de tal programa é exigido a fim de sermos capazes de dizer que direitos naturais temos ou o que a Lei Natural exige de nós. Como logo veremos, existem muitas avenidas epistêmicas para a verdade moral; o principium essendi da Lei Natural, qualquer que venha a ser, é apenas um dos muitos principia cognossendi.

Objeção Três: Mesmo Se Houvesse uma Lei Natural, Ela Seria Incognoscível

A base epistemológica da Lei Natural

Uma das objeções mais comuns à Lei Natural é que ela não está aberta ao teste científico. Wilson, por exemplo, insiste que ele está de mente aberta e disposto a aceitar a Lei Natural se ao menos se puder fornecer uma base científica a ela:

[…] tudo que estou pedindo é que alguém deveria apresentar um fragmento ou uma sugestão de um esboço de uma sombra de um fantasma de algo como uma evidência científica ou experimental, no lugar dos verbalismos metafísicos, e sem significado, que os cultuadores da Lei Natural habitualmente usam. Até que eles apresentem tal evidência sensorial-sensitiva espaço-temporal, eu ainda digo: não comprovado. (Robert Anton Wilson. Natural Law: or Don’t Put a Rubber on Your Willy, p. 37.)

Mas Wilson não está terrivelmente otimista sobre os prospectos de se encontrar tal base científica; por sua própria natureza como um código moral, a Lei Natural “não está sujeita à experimentação; a experimentação, e a refutação através da experimentação, simplesmente não são relevantes para ela” (p. 14). Observando que o aiatolá Khomeini acha que a Lei Natural autoriza o divórcio em alguns casos, enquanto o Papa acha que não, Wilson comenta:

Eu ainda não tenho a menor ideia de um teste científico para determinar qual desses velhos veementes e dogmáticos poderia realmente saber o que a Lei Natural é, como ter certeza que eles não estão só chamando seus próprios preconceitos de Lei Natural. […] não há qualquer maneira experiencial-experimental de julgar entre quaisquer deles […] ( Robert Anton Wilson. Natural Law: or Don’t Put a Rubber on Your Willy, pp. 35-37.)

Em outras palavras, a objeção de Wilson é que afirmações normativas não são testáveis, e então não há fundamentos racionais para decidir se elas são verdadeiras ou falsas.

Mas isso é um erro. Afirmações normativas - julgamentos morais - estão tão abertas a serem testadas quanto qualquer outro tipo de julgamento. Pois afirmações normativas ocasionam afirmações empíricas, e se as afirmações empíricas em questão forem falsificadas pela observação sensorial, então as afirmações normativas que as ocasionaram estão igualmente falsificadas.8

Considere as duas seguintes afirmações normativas: “Adolf Eichmann é uma pessoa virtuosa” e “Uma pessoa virtuosa nunca participaria de um genocídio”. Essas duas afirmações, tomadas em conjunto, implicam em uma afirmação empírica, a saber, “Adolf Eichmann não participou de um genocídio”. Essa é uma afirmação que está aberta ao teste empírico; a falsificação mais clara seria o próprio testemunho ocular de Eichmann participando de um genocídio, mas tirando isso, ainda podemos ter provas convincentes de que Eichmann de fato participou de um genocídio. E uma vez que a conclusão empírica tenha sido falsificada desta maneira, podemos inferir que pelo menos uma de nossas premissas normativas deve estar errada. (De “Se P & Q, então R” e “Não R”, a inferência “Não ambos P & Q” se segue logicamente.) Então o resultado da investigação empírica pode, de fato, exigir que revisemos nossas crenças morais; em suma, afirmações normativas são realmente testáveis.

Agora, pode-se objetar que tudo que esse teste mostra é que pelo menos uma de nossas premissas normativas deve estar errada, mas não nos diz qual das premissas normativas rejeitar.

Isto é verdade. Mas a mesma crítica se aplica igualmente bem a qualquer aplicação do método científico. Suponha que eu quero testar a proposição de que a água ferve a 100°C. Então eu aqueço um pouco de água, e quanto ela começa a ferver eu coloco um termômetro resistente e vejo que leitura eu tiro. Agora suponha que o termômetro lê 96°C. O que eu deveria concluir? Bem, eu poderia considerar que a suposição de que a água ferve a 100°C como tendo sido refutada. Mas essa não é minha única opção. Também está aberto a mim me agarrar a essa suposição e ao invés rejeitar alguma suposição auxiliar - e.g., minha suposição de que essa coisa é realmente água, ou minha suposição de que o termômetro foi corretamente rotulado, ou mesmo minha suposição de que eu estou acordado e não sonhando.

Nunca se pode testar uma crença em isolamento; só se pode testar grupos de crenças. Nas ciências naturais como na ética, os testes empíricos podem expor uma inconsistência no conjunto total de crenças, mas eles não podem dizer qual (quais) crença(s) rejeitar. Como resolvemos essa inconsistência dependerá de quais crenças nós achamos mais plausíveis, quão comprometidos estamos com elas, quantas de nossas outras crenças dependem delas, e assim por diante. A esse respeito, a ética não está nem um pouco pior do que as ciências naturais.

A implicação que eu gostaria de tirar disso é “tanto melhor para a ética!”. Mas alguns, ao contrário, vão querer concluir: “tanto pior para as ciências naturais!”. Se nenhuma crença pode jamais ser testada em isolamento - se todas as nossas conclusões, na ciência assim como na ética, dependem de julgamentos pessoais e inevitavelmente impressionistas de plausibilidade relativa - então não é impossível que qualquer crença seja justificada? Ao invés de aprimorar nossa avaliação do raciocínio moral para colocá-lo em pé de igualdade com a objetividade do raciocínio científico, por que não deveríamos rebaixar nossa avaliação do raciocínio científico para colocá-lo em pé de igualdade com a subjetividade do raciocínio moral?

Bem, uma razão para não fazê-lo é que isso equivaleria ao tipo de ceticismo global que já vimos ser autodestrutivo. Se o cético deseja afirmar que o padrão do método científico não produz crenças justificadas, então o cético colocou os padrões de justificativa tão alto que é muito difícil ver como a própria tese cética poderia satisfazer esses padrões. E se ela não puder, então o cético não nos deu razão alguma para aceitar sua alegação de que os padrões deveriam ser colocados tão alto. Nós não temos que construir nosso sistema de crenças sobre uma fundação rochosa de verdade auto-evidente antes de termos justificativa para aceitar essas crenças como pontos de partida provisórios.

Nossas crenças atuais merecem o benefício da dúvida até que encontremos alguma razão positiva para suspeitar delas; temos que começar onde estamos, e não em algum outro lugar. A estrutura de um conjunto de crenças não é hierárquica, como um arranha-céu com cada andar repousando sobre o andar abaixo dele, e assim por diante até o chão; ela é mais como uma teia de aranha, uma rede de julgamentos inter-relacionados que se apoiam mutualmente variando em força e centralidade. Na epistemologia (a teoria do conhecimento), esse modelo de teia de aranha de justificativa é conhecido como coerentismo, enquanto o seu rival do arranha-céu é chamado de fundacionalismo.

Até agora eu tenho falado sobre testar crenças normativas verificando se elas conflitam com observações empíricas. Mas se o coerentismo está correto, também podemos testar as crenças normativas verificando se elas conflitam umas com as outras. E podemos até mesmo testar crenças descritivas verificando se elas conflitam com as crenças normativas. No modelo de arranha-céu, crenças de mais alto nível podem ser revisadas à luz de mudanças em crenças de nível mais baixo, mas nunca vice-versa; a seta de justificativa aponta apenas em uma direção. Mas de acordo com o coerentismo, qualquer crença está, a princípio, aberta a revisão se ela se chocar com um número suficiente de outras crenças, de qualquer tipo. Quais crenças deveríamos manter e quais deveríamos jogar fora dependerá de quão centrais as crenças em questão são para a nossa visão geral do mundo.

A maioria das pessoas, por exemplo, tem muito mais investido no julgamento de que o genocídio é imoral do que o fazem em qualquer visão particular sobre o status dos julgamentos normativos; então se alguém como Rollins propõe uma teoria sobre o status dos julgamentos normativos que implica que o genocídio, afinal, não é imoral, a resposta racional é se agarrar à sua condenação do genocídio e rejeitar a teoria de Rollins - ao menos que Rollins possa mostrar que sua teoria repousa sobre julgamentos que são mais centrais à nossa estrutura de crenças do que a nossa crença de que o genocídio é imoral. Não há diferença fundamental entre o raciocínio moral e o método experimental das ciências naturais; ambos envolvem o que Platão e Aristóteles chamam de dialética, o que John Rawls chama de método do equilíbrio reflexivo: traçar as implicações de nossas crenças e tentar eliminar as inconsistências entre elas. (E realizar experimentos é simplesmente uma maneira de adicionar novas crenças ao nosso conjunto total de crenças - e usar essas novas crenças para testar as antigas.)

Nesse ponto a seguinte objeção pode ser levantada: no caso de discordância entre duas teorias descritivas diferentes, há a possibilidade de resolver a disputa realizando-se experimentos. Talvez, como o coerentista alega, os experimentos sejam apenas uma maneira de adquirir novas crenças, mas ao menos eles fazem com que os disputantes adquiram as mesmas novas crenças, trazendo assim os dois conjuntos de crenças a um alinhamento maior. Mas não parece haver nenhuma maneira análoga de resolver as disputas sobre diferentes interpretações da Lei Natural. Por exemplo, Stephen O’Keefe escreve em seu prefácio ao livro de Rollins:

Qualquer conversa política superficial com libertários vai, mais cedo ou mais tarde, tocar no assunto de direitos. […] Se a discussão fica séria, no entanto, os libertários veem sua sólida base de direitos rapidamente se desintegrar em areia movediça. Uma questão mortal usualmente põe fim ao disparate dos direitos: por que a alegação comunista de que as pessoas tem o direito de viver do trabalho de outros é menos válida do que os direitos libertários? O libertário deve então encontrar uma autoridade superior à sua, e não há lugar racional para onde se voltarem. Eles podem apelar a Deus, ou à natureza, ou à natureza humana como a ordenação de sua marca de direitos, mas os comunistas podem fazer o mesmo.

Mas eu acho que essa diferença entre o método científico e o raciocínio moral está exagerada. Mesmo pessoas que diferem violentamente sobre várias questões morais geralmente têm muito mais crenças (tanto descritivas quanto normativas) em comum, e é frequentemente possível minerar a vasta área de acordo comum por premissas com as quais resolver as disputas. Experimentos mentais desempenham um papel no raciocínio moral similar ao papel que experimentos reais (e experimentos mentais também, aliás) desempenham nas ciências naturais.

Por exemplo, alguém que acredita que deveríamos sempre fazer o que quer que maximize a utilidade social pode ter dúvidas quando solicitado que imagine um caso em que um médico secretamente mata um paciente saudável a fim de redistribuir os órgãos do paciente para cinco pacientes doentes que morrerão ao menos que recebam transplantes de órgão tão logo quanto possível. Se concordarmos que a ação do médico maximiza a utilidade social, mas não obstante nos encontrarmos inclinados a avaliar a ação do médico como errada, então o experimento mental resultou em novas crenças que conflitam com a nossa crença anterior de que o que quer maximize a utilidade social é certo. Dessa maneira, os experimentos mentais também podem servir a função de trazer sistemas de crenças divergentes a um alinhamento.

Uma função importante de novos dados - quer adquiridos através de experiência sensorial, quer através de reflexão filosófica - é introduzir inconsistência em um conjunto de crenças anteriormente consistente, assim incitando uma revisão de crença.

Claro, alguém pode escolher rejeitar os novos dados em vez de revisar as antigas crenças; e às vezes (e.g., no caso de alucinações e afins) isso pode até mesmo ser a opção racional. Mais uma vez, o que aceitamos e o que rejeitamos dependerá do número de crenças em questão e o peso ou plausibilidade que atribuímos a essas crenças. Então a tentativa de resolver inconsistências entre suas crenças pode não necessariamente levar a uma maior consiliência com aqueles de outrem.

No caso moral, por exemplo, Rollins, um autoproclamado “amoralista”, opta por se agarrar ao que a maioria veria como uma crença altamente inverossímil - a crença de que não há nada errado com “assassinato, estupro, roubo, ou tortura de crianças” - e rejeitar crenças mais plausíveis quando quer que elas entrem em conflito com aquela. Mas isso não é nenhuma prova de que o raciocínio moral é inútil para chegar a um acordo, porque o mesmo fenômeno pode aparecer nas ciências naturais - como no caso de criacionistas que se agarram tão teimosamente à crença de que o universo tem apenas alguns milhares de anos de idade que eles rejeitam evidências contrárias (quer astronômica, geológica, ou paleontológica) como pistas falsas plantadas por Deus para testar nossa fé.

Na ética, assim como nas ciências naturais, a dialética é uma ferramenta poderosa para se chegar a um acordo, mas em nenhum caso ela oferece qualquer garantia de convencer pessoas como amoralistas e criacionistas, que, quando confrontados com inconsistências em seus conjuntos de crenças, insistem em resolvê-las mantendo as crenças menos plausíveis e rejeitando as mais plausíveis. (Claro, tanto os amoralistas quanto os criacionistas protestarão que a caracterização que eu acabei de dar de suas posições depende da minha perspectiva pessoal quanto ao que é ou não é plausível. Bem, claro. A minha perspectiva pessoal é o único lugar que eu tenho para estar.)

Wilson (em Natural Law) é cético sobre o grau de similaridade entre a discordância ética e a discordância científica:

A suspeita de que o que se chama de ‘Lei Natural’ pode consistir de parcialidade pessoal com um rótulo metafísico inflado preso a ela fica mais insidiosa conforme se contempla a fantástica quantidade de discordância sobre virtualmente tudo entre os vários defensores da ‘Lei Natural’.

O Prof. Rothbard nos diz que isso não significa nada, porque há discordâncias entre físicos também: mas eu acho essa analogia totalmente pouco convincente. […] Na área da Lei Natural e da ‘moralidade’, metafísica em geral, não há qualquer pingo de […] concordância sobre como se perguntar questão significativas (questões que pode ser experimentalmente ou experiencialmente respondidas)9 ou mesmo sobre que forma uma questão significativa (que se possa responder) teria que tomar. Não há acordo pragmático sobre como conseguir os resultados que se quer. Não há acordo sobre que modelos contêm informação e que modelos contém apenas verbalismo vazio. Não há, acima de tudo, qualquer acordo sobre o que pode ser conhecido especificamente e o que pode ser apenas suposto ou deixados sem resposta. […]

Alguns Estados e nações acreditam na pena capital; outros não. Pacifistas são contra a morte de qualquer um, mas nem todos os pacifistas são vegetarianos. Alguns quasi-vegetarianos não comem mamíferos superiores mas comem peixe. Vegetarianos puros matam vegetais para comer. E assim por diante. […]

Comparar esse espaguete ontológico com as discordâncias altamente técnicas da física me parece como comparar dez bêbados arrebentando-se uns aos outros num bar com a diferença de tempo e humor entre dez condutores de uma sinfonia de Beethoven. (Robert Anton Wilson. Natural Law: or Don’t Put a Rubber on Your Willy, pp. 33-36.)

Provavelmente é verdade que há mais discordância na ética do que nas ciências naturais.10 Mas as ciências naturais são a melhor classe de comparação? A ética certamente tem mais em comum com as ciências sociais do que com as ciências naturais; e nas ciências sociais - e.g., economia, sociologia, psicologia - a medida da discordância é notória. Considere as diferenças entre, digamos, as abordagens keynesiana, monetarista, econométrica, de escolha pública, marxista, georgista, austríaca e a mainstream neoclássica para a teoria econômica. Aqui encontramos não somente uma torrente de discordâncias sobre questões específicas de política tais como se uma dada política aumentará ou não a inflação, o desemprego, o crescimento econômico, etc., mas também extremamente pouco acordo sobre “como perguntar questões significativas”, ou “que forma uma questão significativa (que possa ser respondida) teria que tomar”, ou “o que pode ser conhecido especificamente e o que só pode ser suposto ou deixado sem resposta”.

O método econômico deveria ser indutivo ou a priori? Ele deveria visar à predição ou a explicação? Ele deveria empregar uma concepção subjetiva ou objetiva do valor econômico? Quão úteis são os modelos matemáticos quando aplicados ao comportamento humano? Quantas suposições simplificadoras podemos fazer sobre as motivações dos agentes econômicos antes que nossos modelos cessem de ser úteis em elucidar a realidade social?

Estas são questões sobre as quais o campo da economia não está nem mesmo perto de chegar a um consenso. Ainda assim, como um libertário, Wilson provavelmente não estaria disposto a concluir que todas as teorias econômicas são igualmente válidas e que nenhuma está mais bem fundamentada do que qualquer de suas rivais, ou que não há fato que importe quanto a se dada política causaria um aumento ou diminuição no desemprego. Eu apostaria que apesar da falta de consenso entre os economistas, Wilson provavelmente acredita em algum tipo de verdade econômica.11 Então por que um nível equivalente de discordância na ética deveria nos tornar céticos sobre a possibilidade da verdade ética.

Não há grandes mistérios sobre por que o acordo é mais difícil de ser atingido na ética e nas ciências sociais do que nas ciências naturais. Por um lado, a matéria (a atividade humana) é tanto mais complexa quando menos suscetível à análise matemática, tornando assim a modelagem teórica e a experimentação controlada inerentemente mais difíceis. Por outro, os pesquisadores tem maior probabilidade de levar mais preconceito, auto-interesse, e bagagem ideológica consigo a questões na ética e nas ciências sociais do que a questões nas ciências naturais, tornando assim o problema do viés mais generalizado. É a complexidade e o viés, não a subjetividade inerente, que tornam a discordância moral tão intratável.

Conhecimento vs. mera justificativa

Eu estive argumentando que crenças normativas podem ser justificadas. Agora, alguém pode conceder isso, mas ainda negar que nossas crenças morais possam contar como conhecimento. Houve uma época em que era elegante nos círculos filosóficos definir o conhecimento como uma crença verdadeira e justificada, mas hoje em dia os filósofos reconhecem que uma crença pode ser tanto verdadeira e justificada, e ainda assim poucos estariam dispostos a chamá-la de conhecimento.

O caso paradigmático é quando uma crença verdadeira e justificada é baseada em uma crença falsa e justificada. Suponha que eu acredite que jacarés são mamíferos. Suponha ainda que eu tenho boas razões para minha crença errônea; a enciclopédia em que eu olhei continha um erro de impressão, o biólogo que eu consultei mentiu para mim, e assim por diante. Então eu tenho justificativa para acreditar, falsamente, que jacarés são mamíferos. Uma vez que eu sei que todos os mamíferos são vertebrados, eu tenho justificativa para concluir, com base na minha crença falsa que jacarés são mamíferos e que jacarés são também vertebrados. Agora, acontece que jacarés realmente são vertebrados, embora minhas razões para acreditar nessa verdade estejam erradas. Então eu tenho uma crença verdadeira e justificada que jacarés são vertebrados, mas a maioria das pessoas estaria relutante em dizer que eu sei que jacarés são vertebrados, e a fonte de sua relutância é o fato de que a conexão entre a crença ser verdadeira e eu ter justificativa para acreditar nela parecer tão incerto e acidental. Consequentemente, a maioria dos filósofos conclui que algum tipo de condição de confiabilidade, mostrando como nossas crenças rastreiam a verdade, deve ser adicionada a fim de uma crença verdadeira e justificada contar como conhecimento.

Parece se seguir que mesmo e a) eu acreditar que as pessoas têm um direito à liberdade, e b) minha crença for verdadeira, e c) eu tiver justificativa para mantê-la, eu não me incluo como quem sabe que as pessoas têm um direito à liberdade ao menos que eu acredite nisso porque é verdade. Mas, a objeção continua, só podemos interagir causalmente com fatos descritivos, não com fatos normativos; portanto, crenças normativas jamais podem satisfazer a condição de confiabilidade, e então nunca contam como conhecimento.

Resumidamente, minha resposta a essa objeção é tripla:

(a) se algo como meu esboço de nove passos do principium essendi da Lei Natural estiver correto, então fatos normativos são, na verdade, um subconjunto dos fatos descritivos (e.g., fatos sobre nossos fins naturais) e então nós podemos, afinal, interagir com eles;

(b) não podemos interagir causalmente com fatos matemáticos, mas podemos, não obstante, ter conhecimento matemático, então a interação causal não deve ser a única maneira possível para satisfazer a condição de confiabilidade;12 e

(c) em todo caso, assim como não precisamos ser capazes de explicar como nossos olhos funcionam antes de termos justificativa para nos tomar como tendo conhecimento sensorial, da mesma maneira não precisamos ser capazes de explicar como é que nossas crenças rastreiam a verdade moral antes de termos justificativa para nos tomar como tendo conhecimento moral.

Abordagens consequencialistas vs. deontológicas

Enquanto estou no assunto, acho que a abordagem coerentista ao argumento moral que eu estive defendendo pode lançar alguma luz sobre um tópico de debate comum entre libertários - a saber, se o libertarianismo deveria ser baseado a) no argumento consequencialista de que deveríamos permitir que as pessoas sejam livres porque fazê-lo terá consequências sociais benéficas ou, ao contrário, b) no argumento deontológico que deveríamos permitir que as pessoas sejam livres porque fazê-lo é exigido por nossa obrigação moral de respeitar outras pessoas como fins em si mesmas.13(Geralmente são apenas os libertários deontológicos que empregam a linguagem da Lei Natural, mas historicamente houve versões tanto consequencialistas quanto deontológicas da teoria da Lei Natural; se você acredita em um padrão moral superior, independente da convenção mas acessível à razão, ao qual as leis feitas pelo homem são devidamente responsáveis, então você é um crente na Lei Natural, mesmo se seu padrão moral superior for simplesmente o bem-estar social.)

Às vezes, toda a disputa entre libertários consequencialistas e deontológicos equivale a simplesmente um debate sobre a melhor maneira de apresentar o libertarianismo ao tentar convencer não-libertários. Nesse caso eu acho que o debate é um tanto tolo; por razões que eu entrarei em breve, a maioria das pessoas não estará disposta a aceitar como socialmente benéfico um sistema que elas julgam injusto, e vice-versa, então nem o argumento consequencialista nem o deontológico pode se manter muito bem sozinho. E em todo caso, uma vez que há muitos bons argumentos consequencialistas e muitos bons deontológicos, por que não usar toda a munição em nosso arsenal?

Mas mais frequentemente, a discordância não é sobre como embalar o libertarianismo ao vendê-lo para os infiéis, mas sim sobre que conjunto de razões - as consequencialistas ou as deontológicas - constituem a verdade mais profunda sobre por que o libertarianismo é o sistema correto. Por exemplo, os libertários deontológicos frequentemente dizem que, embora seja um golpe de sorte para nós que o libertarianismo seja socialmente benéfico, ainda seríamos obrigados a respeitar os direitos libertários mesmo se acontecesse de que fazê-lo levaria ao caos social e à miséria; e os libertários consequencialistas fazem observações similares do outro lado. Em outras palavras, cada lado desse debate está oficialmente comprometido com a visão de que as razões do outro lado são irrelevantes para a justificação do libertarianismo.

Ainda assim, curiosamente, embora os libertários deontológicos não pensem que importa que o libertarianismo seja socialmente benéfico, todos eles parecem pensar que de fato ele é benéfico. E similarmente, embora os libertários consequencialistas não pensem que importa que o libertarianismo expresse respeito pelas pessoas, todos eles parecem pensar que, de fato, ele expressa respeito pelas pessoas.

Se os libertários deontológicos viessem a ser convencidos que as políticas libertárias realmente causariam caos social e miséria, eu suspeito que a maioria deles veria sua fé no libertarianismo abalada. Os libertários consequencialistas, reconhecendo isso, frequentemente acusam os deontólogos de hipocrisia, alegando que sob sua aparência deontológica, eles são cripto-consequencialistas. (Eu me lembro de ler um longo debate sobre esse tópico na revista Liberty durante suas primeiras edições.) Mas essa acusação é uma faca de dois gumes, uma vez que se os libertários consequencialistas viessem a ser convencidos de que as políticas libertárias de fato expressam desprezo pelas pessoas, eu imagino que sua fé ficaria abalada também.

Então, o que está acontecendo aqui? Bem, suponha que eu acredite que a água é H2O. Então essa crença me compromete a pensar que se não houvesse coisa tal como H2O, então não haveria água (uma vez que ambos são a mesma coisa). No entanto, se eu viesse a ser convencido de que a teoria atômica da matéria está errada - se eu viesse a ser convencido de que não há átomos de hidrogênio e de oxigênio, e assim nenhum H2O - eu não concluiria que não há água. Em vez disso, eu revisaria minha crença de que água é H2O.

Eu não tenho nenhuma teoria em particular sobre qual é o principium essendi da água; eu acho que é H2O. E isso me compromete com a crença “Se não houvesse H2O, não haveria água”. Mas essa afirmação não me compromete com a crença “Se eu não acreditasse em H2O, eu não acreditaria na água”. H2O não é o meu principium cognossendi primário da água; eu normalmente identifico a água por sua aparência, potabilidade, pontos de ebulição e solidificação, etc., não por sua composição molecular. Então, se eu descobrisse que o H2O não existe, mas meus principia cognossendi comuns ainda indicassem a presença da água, a maneira mais plausível de resolver a inconsistência seria rejeitar minha teoria sobre qual é o principium essendi da água, em vez de desistir da minha crença na existência da água.

O mesmo ponto se aplica à disputa sobre a base do libertarianismo. A discordância é sobre o principium essendi da validade do libertarianismo; os libertários consequencialistas acham que o principium essendi é o bem-estar social, enquanto os libertários deontológicos acham que é o respeito pelas pessoas. No entanto, os libertários, assim como a maioria das pessoas (eu incluso), tendem a pensar que o bem-estar social e o respeito pelas pessoas andam juntos, pelo menos aproximadamente; ou seja, eles pensam que um sistema que respeita as pessoas provavelmente é benéfico socialmente, e vice-versa, então cada característica pode servir como um indicador confiável (embora não sem exceções) da presença do outro. Dada essa crença, aqueles que consideram o bem-estar social como o principium essendi da corretude tenderão a tratar o respeito pelas pessoas como, pelo menos, um principium cognossendi da corretude, assim como aqueles que consideram o respeito pelas pessoas como o principium essendi da corretude tenderão a tratar o bem-estar social como um principium cognossendi.

O debate sobre se o bem-estar social ou o respeito pelas pessoas é o principium essendi da validade do libertarianismo é importante (e não é nenhum segredo que eu estou no campo do respeito); mas eu acho que seus participantes têm às vezes interpretado mal o que suas posições os comprometem. Lembre-se do caso do H2O. Aqueles que acreditam que o respeito pelas pessoas é o principium essendi do libertarianismo estão de fato comprometidos com a crença “Se o libertarianismo não fosse socialmente benéfico, ainda seria moralmente obrigatório”. Mas muitos deles cometeram o erro, do meu ponto de vista, de pensar que essa crença os compromete com a crença adicional “Se cessarmos de acreditar que o libertarianismo é socialmente benéfico, ainda o consideraríamos moralmente obrigatório”. (E similarmente, mutatis mutandis, para os consequencialistas.) Esta crença adicional raramente é verdade, nem deveria ser; as considerações tanto consequencialistas quanto deontológicas são cruciais para a justificação do libertarianismo, mesmo se uma for mais fundamental do que a outra quando se trata de explicar por que o libertarianismo é a posição correta.

Objeção Quatro: As Explicações Evolutivas Tornam a Lei Natural Obsoleta

A Lei Natural: um produto da evolução biológica?

Uma objeção final que eu quero considerar é a que a Lei Natural é uma hipótese desnecessária, porque as avaliações morais podem ser explicadas como um produto da evolução, em vez de como uma resposta a uma verdade moral objetiva.14 Em um artigo recente, Rich Hammer escreve:

Se a beleza é beleza, você poderia pensar que [uma barata] e eu lutaríamos pela mesma dama. […] [Mas nós] somos cada um programados para buscar fêmeas com quem nossos genes possam, bem, continuar. […] [Porque reconhecemos isso] nós não caímos numa disputa acirrada porque discordamos sobre que dama é mais bonita. […] Mas temos pequenas desavenças às vezes quando nossos outros sentidos, especialmente nossos senso de direito, recomendam regras diferentes de conduta. […] Talvez esse senso de direito, que faz com que eu forme opiniões sobre como eu deveria regular minhas ações a fim de considerar as necessidades dos outros, foi programada em mim, exatamente como meu senso de beleza.

Talvez meu genes tenham descoberto que eles tem uma chance melhor de sobreviver se indivíduos humanos forem programados para desejar regras de comportamento que favoreçam a cooperação sobre o conflito. (The Sense of Right and a Man-to-Man Talk With Archy About Women”, Formulations Vol. IV, No. 1 (Outono de 1996), p. 37.)

Mas eu tenho algumas perguntas sobre essa analogia. Na história de Rich, não é surpresa que humanos e baratas discordem em seus julgamentos sobre beleza, porque necessidades biológicas os programaram para ter respostas diferentes - e então deveríamos tomar uma atitude similar em relação a discordâncias morais. Esta última inferência, sobre moralidade, é o que me intriga.15 Discordâncias morais não ocorrem entre humanos e baratas; elas ocorrem entre humanos - membros da mesma espécie, produtos do mesmo processo evolutivo. Então uma explicação de nossos julgamentos morais que apela apenas para considerações evolutivas vai necessariamente estar incompleta.

Então explicações evolutivas sobre as discordâncias morais parecem pouco promissoras. Explicações evolutivas sobre as concordâncias morais estão sobre fundamentos mais firmes. Mas mesmo aqui há espaço para ceticismo. Frequentemente se pensa que se a teoria darwiniana da evolução através da seleção natural está correta, então qualquer característica central ou importante dos seres humanos deve ter uma função evolutiva. Mas isso não é verdade. Considere a habilidade de resolver equações matemáticas. Esta é uma habilidade importante e valiosa, e sem dúvidas tem valor de sobrevivência; mas ela foi selecionada por causa de seu valor de sobrevivência? Eu duvido. A pressão evolutiva selecionou algo, mas o que ela selecionou foi a razão - i.e., uma capacidade genérica para descobrir coisas - e nossa capacidade mais especializada de resolver equações matemáticas é um subproduto dessa capacidade mais genérica, em vez de algo que foi selecionado diretamente.

Então se os seres humanos geralmente têm uma tendência para concordar, após reflexão, com a proposição de que 374 vezes 98 é igual a 36652, isso não por causa da crença que 374 vezes 98 é igual a 36652 tem qualquer valor de sobrevivência em particular; em vez disso, é por que temos uma capacidade genética para descobrir coisas (uma capacidade que tem valor de sobrevivência), e quando aplicamos essa capacidade ao problema do que 374 vezes 98 é igual, nós propomos 36652 porque somos capazes de descobrir que 36652 é a resposta correta mesmo.

Similarmente, então, é possível que nossa capacidade para o raciocínio moral, assim como a nossa capacidade para o raciocínio matemático, seja o subproduto de nossa capacidade geral para a razão, em vez de algo pelo que a seleção natural é diretamente responsável. Em outras palavras, se as pessoas tem uma tendência a manter certas crenças normativas, pode ser porque elas usaram suas capacidades racionais para descobrir que certas coisas são certas e outras, erradas.

Agora, eu certamente não pretendo negar que as considerações evolutivas do tipo a que Robert Axelrod apela em seu livro The Evolution of Cooperation, elas desempenham um papel importante em explicar por que tendemos a favorecer “regras de comportamento que favoreçam a cooperação sobre o conflito”. Eu endosso de todo coração esse ponto. Mas esses impulsos cooperativos não são específicos o suficiente, por si próprios, para embasar todo o espectro de nossas atitudes normativas.

Considere o seguinte padrão de raciocínio moral:

(1) É errado matar humanos exceto em autodefesa. (2) Os animais são relevantemente como os humanos, pelo fato de terem capacidades para o desejo e o medo, alegria e dor. (3) Portanto, também é errado matar animais exceto em autodefesa.

Meu presente interesse não é se este é um argumento bom ou ruim. O ponto é que esse é um modo típico, e facilmente compreensível, de raciocínio. Mesmo aqueles que discordam do argumento podem facilmente ver o ponto dele.

Agora, suponha que temos uma tendência natural para acreditar em (1), e que esta tendência foi selecionada pela evolução, porque criaturas que matam sua própria espécie tem mais dificuldade para construir redes cooperativas e assim estão em desvantagem na luta pela sobrevivência.

Suponha também, por outro lado, que não tenhamos nenhuma tendência em particular para acreditar em (3), e que a ausência de tal tendência também seja o produto da evolução, porque, antes do desenvolvimento da agricultura, as pessoas que eram escrupulosas para comer animais tendiam a se extinguir antes que tivessem uma chance de se reproduzir e passar seus genes adiante.16

Podemos assumir, então, que nossos ancestrais primitivos não tinham escrúpulos para comer animais, e não sentiam qualquer tensão entre sua aceitação de (1) e sua rejeição de (3). Mas o exercício da razão pode incitar as pessoas a notar a tensão, e a resolvê-la abraçando (3). (Não estou dizendo que esta é a única maneira de resolver a tensão, apenas que é uma maneira saliente e inteligível.) Este é um dos modos através dos quais as pessoas chegam às suas crenças morais, e é um modo ao qual as considerações evolutivas são apenas perifericamente relevantes.

Podemos pensar sobre nossos impulsos normativos implantados evolutivamente como desempenhando um papel no raciocínio moral análogo ao papel que a experiência sensorial desempenha no raciocínio científico. Os dados dos sentidos são uma das mais importantes fontes das nossas crenças sobre como o universo funciona. Mas não estamos confinados ao nível sensorial. Nossa capacidade para a razão nos leva a tentar construir um quadro conceitual do universo que faça sentido; e, embora confiemos profundamente nos dados sensoriais para construir esse quadro, se tivermos que sacrificar alguns dados sensoriais a fim de atingir um certo quadro científico que faça um pouco mais de sentido - se tivermos que decidir que, apesar das aparências iniciais, a terra não é plana, o sol não a circunda, e as mesas não são continuamente sólidas até o fim - então um pouco do que os sentidos nos dizem pode ter que ser jogado fora em consideração a uma teoria mais intelectualmente satisfatória.

Igualmente, nossos impulsos morais implantados evolutivamente são uma das mais importantes fontes das nossas crenças sobre como devemos viver. Mas não estamos confinados ao nível instintivo. Nossa capacidade para a razão nos leva a tentar construir um quadro conceitual do certo e do errado que faça sentido; e, embora confiemos profundamente em nos impulsos inatos ao construir esse quadro, se tivermos que desconsiderar alguns de nossos impulsos inatos a fim de atingir um quadro moral que faça um pouco mais de sentido - se tivermos que decidir que, apesar de nossos impulsos iniciais, não deveríamos matar animais para comer - então um pouco do que os nossos instintos morais nos dizem pode ter que se jogado fora em consideração a uma ética mais intelectualmente satisfatória. Mais uma vez, um relato puramente evolutivo do nosso senso de moralidade, por mais iluminador que seja, estará consideravelmente incompleto.

A Lei Natural: o produto da evolução cultural?

Em todo caso, a proporção do comportamento aprendido para o comportamento instintivo é maior nos humanos do que em qualquer outro organismo conhecido.17 Então, não é surpreendente que muitos defensores da objeção evolutiva à Lei Natural tenha escolhido focar na evolução cultural em vez da evolução natural. Como essa versão da objeção propõe, nossas atitudes morais são, em geral, o resultado não da seleção natural agindo sobre as espécies, mas da seleção natural agindo sobre as maneiras de fazer as coisas. As práticas culturais que promovem a sobrevivência de sua sociedade tendem, elas mesmas, a sobreviverem, tanto porque a sociedade onde elas se originaram sobrevive e mantém essas práticas, quanto porque outras sociedades notam seu sucesso e começam a imitá-la. Práticas sociais danosas, ao contrário, tendem a minar as chances de sobrevivência de uma sociedade; a sociedade tem maior probabilidade de perecer, e outras sociedades tem maior probabilidade de evitar a prática porque a sociedade falida tem menos prestígio e, portanto, atraem menos imitadores. Dessa maneira as práticas danosas se extinguem.

Eu creio que há um cerne de verdade profunda nesse argumento. Ele exemplifica a compreensão liberal clássica - desenvolvida de maneiras diferentes por escritores como John Stuart Mill, Michael Polanyi, Friedrich Hayek, e Bruno Leoni - de que a competição é, acima de tudo, um processo de descoberta. Ainda assim, o argumento tem seus limites. Para emprestar uma comparação de David Ramsay Steel:18 é verdade que organismos com parasitas benéficos têm mais chances de sobreviver do que organismos com parasitas danosos, mas seria precipitado concluir disso que os parasitas existentes têm maior chance de serem benéficos. O fato de que uma dada sociedade sobreviveu não é prova alguma que qualquer prática em particular daquela sociedade seja benéfica.

Esta ressalva se aplica a qualquer abordagem evolutiva, seja biológica ou cultural; mas a evolução cultural em particular enfrenta problemas especiais como um fato explicativo. Na evolução biológica, as mutações surgem lenta e incrementalmente; nenhuma espécie brota asas ou galhadas da noite pro dia. Dessa maneira, quando vemos organismos com asas ou galhadas, podemos ter certeza de que essas características se desenvolveram durante muitos milhares de gerações, e então a hipótese de que essas características são benéficas, ou que pelo menos não são hostis, é proeminente. Mas na evolução cultural, as mutações - i.e., novas ideias e práticas, ou o que Richard Dawkins chama de memes - são frequentemente o produto do pensamento humano, e podem emergir completamente desenvolvidas em uma única geração (exemplos: o Islã, a Constituição dos EUA, o clipe de papel), e portanto a presença de um meme é uma evidência muito fraca de que ele foi confiavelmente selecionado por pressões evolutivas.

Pior ainda, já que os memes, ao contrário dos genes, podem se reproduzir via imitação, um meme em particular pode se espalhar e sobreviver mesmo se ele matar seu grupo hospedeiro. O fato de que um meme é bom em garantir sua própria sobrevivência não é garantia alguma de que ele será igualmente efetivo para garantir a sobrevivência dos grupos que o adotam.

Por exemplo, conforme o Império Romano ficou mais centralizado e autoritário, ele enfraqueceu tanto sua base econômica e cultural que essencialmente se autodestruiu, incapaz de afastar as tribos saqueadoras que em anos anteriores poderia ter esmagado sem piscar. Ainda assim, a queda da Roma estagnada, ossificada e hierárquica não pôs um fim ao meme centralista Romano, que continuou a atrair admiradores e imitadores através dos séculos. Tendo destruído seu hospedeiro original, o vírus imperial se propagou, infectando inúmeras sociedades do Império Bizantino ao Reich de Mil Anos, matando-as por sua vez.

Quando lemos o poeta italiano do século XIV Dante cantando louvores ao governo mundial em seu tratado De Monarchia, olhando especialmente para Roma como seu modelo, ou tratando o assassinato de César, em seu famoso Inferno, como um crime comparável em seriedade à traição e crucificação de Cristo19, reconhecemos que o poder de permanência de um meme pode ter pouco a ver com seu sucesso em promover as sociedades que o adotam. E uma olhada em nossa própria vasta reprodução - tanto arquitetônica20 quanto política - da Roma Antiga em pleno esplendor imperial às margens do Potomac é um mal presságio para o futuro dos Estados Unidos.

Os perigos da vitória: lições da história

Essa distinção entre o sucesso dos memes e o sucesso das sociedades que adotam esses memes dá uma possível resposta a uma preocupação colocada por Rich Hammer de que se fizermos de qualquer outra coisa além do sucesso evolutivo o nosso padrão normativo, corremos o risco de pôr em perigo nosso próprio bem-estar:

Os direitos podem ser vistos como maneiras de economizar, maneiras de poupar o custo da batalha. […] Os direitos guiam o comportamento dentro de uma comunidade dominante. Entre um grupo de pessoas que ganharam, e que estão no processo de colher (ou pilhar), os direitos limitam as lutas contraprodutivas dentro do grupo. Os direitos guiam cada membro individual do grupo para que busquem satisfazer seus desejos colhendo de fora do grupo ao invés de outro membro dentro do grupo. […] Se você acredita na explicação evolutiva da formação da vida, então você pode observar que nós, os humanos presentemente sobrevivendo, nos encontramos aqui como o ponto culminante atual de uma longa história de luta evolutiva. E se você acredita na minha tese, de que há uma sobrevivência do mais apto competitiva entre os sistemas de direitos, então você pode observar que nós, a Civilização Ocidental, nos encontramos aqui, numa posição que parece dominar outras culturas, porque somos os beneficiários da luta evolutiva e da seleção de direitos. […] Como eu estou apresentando, os direitos minimizam a violência e o derramamento de sangue entre nós humanos que dominamos o ecossistema em que vivemos. Argumentar que os direitos tem uma base diferente é argumentar, creio eu, contra a nossa dominância e a favor de mais violência e derramamento de sangue. (Rich Hammer. Might Makes Right, pp. 15-16)

Mas claro que as regras que encorajam “colher de fora do grupo”, permitindo assim que uma sociedade “domine outras culturas”, vai “minimizar a violência e o derramamento de sangue” com sucesso apenas dentro do grupo. Sociedades bem sucedidas têm uma longa história de exploração e mesmo extermínio daqueles que estão fora do grupo; testemunha o tratamento que africanos, asiáticos e nativos americanos receberam nas mãos dos poderes colonialistas ocidentais. Rich observa (p. 16) que culturas poderosas podem se permitir ser mais generosas ao conceder direitos a seus vizinhos mais fracos. É verdade, e às vezes elas o fazem. Mas culturas poderosas podem também se permitir escravizar ou assassinar seus vizinhos mais fracos sem medo de represálias, e às vezes eles fazem isso. A civilização é largamente um processo de aumentar as opções das pessoas (avanços na tecnologia e avanços na liberdade política podem ambas ser vistas sob essa luz); mas infelizmente, uma das coisas que se é mais capaz de fazer uma vez que suas opções aumentaram é diminuir as opções de seus vizinhos.

Mas, deixando de lado a questão da violência para com os de fora, pelo menos é verdade que a sociedades dominantes conseguem minimizar a violência e a coerção dentro do grupo? Não necessariamente. Uma vez que uma certa sociedade atinge uma posição de dominância sobre outras culturas, ela tende a esmagar o processo competitivo que a levou ao poder (dominando os concorrentes); e uma vez que a pressão competitiva é diminuída, a presunção de que as práticas da sociedade dominante gozam da benção da seleção evolutiva deve inevitavelmente ser enfraquecida.

O status de tal sociedade é mais como o de uma empresa cuja eficiência e inovação fazem seu sucesso no livre mercado - mas que então usa seus recursos recém-descobertos, os frutos do sucesso competitivo, para fazer lobby com o governo a favor de lei que a isola da concorrência. Uma vez que tais leis são aprovadas, os incentivos da empresa mudam, e ela se torna ineficiente e preguiçosa porque agora ela pode se permitir. Seria um erro, então, assumir que a dominância continuada da empresa faz de sua estrutura administrativa top-down, design de produto sem imaginação, e falta de capacidade de resposta aos clientes, um modelo útil para os futuros empresários imitarem.

Em suma, a dominância de uma sociedade não garante, e pode mesmo minar sua eficiência em qualquer área em particular, incluindo a minimização da violência e do derramamento de sangue. De fato, o seguinte padrão é comum através da história:

(1) Um avanço na civilização permite que os membros do Grupo A expandam suas opções. (2) Membros do Grupo A escolhem usar suas opções expandidas para diminuir as opções do Grupo B. (3) A necessidade do Grupo A de manter seu controle sobre o Grupo B resulta numa diminuição das opções dos membros do Grupo A também; eles perdem sua liberdade, e sua cultura estagna.

Manter o Grupo B em sujeição é uma proposta custosa; requer conscrição, aumentos de impostos, e talvez um complexo industrial-militar, todos os fardos que acabarão sendo arcados pela população do Grupo A. Ficar de olho em potenciais encrenqueiros do Grupo B exige um sistema de vigilância e documentação que os governantes do Grupo A podem usar mais tarde contra seus próprios cidadãos. Aqueles dentro do Grupo A que criticarem o tratamento do Grupo B ameaçam a dominância de A sobre B e podem se encontrar sujeitos à censura. Transações econômicas livres entre membros de A e membros de B podem resultar em melhoras na situação econômica de B que o empodera a resistir à autoridade de A, então a liberdade dos membros de A para negociar com os membros de B também necessitará ser cerceada. E assim por diante.

No mundo antigo, Esparta e Roma fornecem exemplos paradigmáticos dessa dinâmica em funcionamento. Ambos começaram como centros vigorosos e progressistas de comércio e cultura, mas a necessidade de manter o controle sobre as populações subordinadas (os Hilotas no caso de Esparta; o Império no caso de Roma) fizeram de Esparta um cruel coletivo militar e de Roma um estado policial burocrático e ditatorial.

Mas há exemplos mais perto de casa também. Considere o caso da Guerra Civil Americana. Por séculos, os colonos brancos estiveram usando as opções expandidas legadas a eles pelo progresso da civilização ocidental para manter os negros em servidão. Aí, a Revolução Americana trouxe um aumento dramático de liberdade aos brancos por toda a colônia. Os brancos do Norte, ainda aproveitando a onda de fervor libertário revolucionário, na verdade usou suas recentemente expandidas opções para aumentar as opções dos negros, decretando uma série de leis que por fim levaram à abolição da escravatura no Norte. Mas no Sul, mais agrário, onde a escravidão estava mais profundamente arraigada, os brancos estavam menos seduzidos pela causa da emancipação (embora eles frequentemente falassem bastante sobre isso).

Desenvolvimentos econômicos e políticos posteriores consolidaram o apego dos brancos Sulistas à escravidão ainda mais firmemente. Especificamente, a invenção de Eli Whitney e Katherine Greene do descaroçador de algodão tornou a agricultura de plantação mais lucrativa, enquanto que o acordo de três-quintos da Constituição (que tratava cada escravo como três quintos de uma pessoa para propósitos de representação) deu aos estados escravocratas um bloco eleitoral desproporcional no Congresso, e assim um incentivo a mais para continuar a escravidão. A fim de tirar vantagem das opções econômicas expandidas oferecidas pelo descaroçador de algodão e das opções políticas expandidas oferecidas pelo acordo de três-quintos, os brancos nos estados escravocratas precisavam se certificar de que as opções dos negros se mantivessem severamente limitadas.

Mas para manter o sistema escravocrata, o Sul teve que fugir dos princípios libertários de Jefferson e da revolução. Os governos Sulistas acharam necessário impor restrições cada vez maiores sobre as liberdades econômicas e civis dos brancos a fim de manter os negros em sujeição. Muitos Estados tornaram ilegal que senhores de escravos libertassem seus escravos; e logo não havia qualquer liberdade de expressão ou imprensa para os brancos que defendiam a abolição. Em alguns casos, discursar contra a escravidão era punível com a morte.

Quando a secessão finalmente veio e foi estabelecida a Confederação, a supressão das liberdades dos brancos ficou ainda maior, já que o governo central, em nome da necessidade militar, estendeu seus controles a todos os aspectos da vida. Passaportes internos eram exigidos para viajar, direitos civis tradicionais como habeas corpus foram suspensos, a moeda foi desvalorizada, e a maioria dos setores da economia foi nacionalizada. Em sua busca desesperada para manter seu controle sobre os negros, os brancos Sulistas se viram obrigados a estabelecer uma ordem política autoritária que acabou por tomar sua própria liberdade também.

Esta fuga dos princípios da Revolução Americana na prática política foi acompanhada por uma deterioração paralela da teoria política também. Durante as décadas de 1810 e 1820, o grande porta-voz intelectual do Sul - o defensor dos interesses agrários contra a regulamentação neomercantilista Federalista - era John Taylor de Caroline (autor de Arator, Tyranny Unmasked e An Inquiry into the Principles of Government), cuja perspectiva política era profundamente jeffersoniana e libertária - com a previsível exceção de um enorme ponto cego sobre a escravidão. Taylor se recusava enfrentar a tensão entre os princípios da Declaração da Independência e a instituição da escravidão; mas intelectuais Sulistas posteriores enfrentariam essa tensão - e a resolveriam da maneira errada.

Nas décadas de 1830 e 1840, o defensor ideológico dos interesses Sulistas não era John Taylor, mas John C. Calhoun (autor de A Disquisition on Government e A Disquisition on the Constitution). A seu favor, Calhoun era um feroz oponente do poder centralizado, e propôs ideias bastante engenhosas para refrear seu crescimento (e.g., poder de veto para facções minoritárias); nesta medida, Calhoun estava inequivocamente na tradição jeffersoniana. Mas a necessidade de evitar as implicações radicais dessa tradição para a legitimidade da escravidão levou Calhoun a repudiar os princípios de 76. Os direitos humanos, Calhoun mantinha, repousam sobre a tradição legal, não sobre as Leis da Natureza - e o exercício da autoridade política não depende do consentimento dos governados para sua legitimidade, mas é uma característica natural e inevitável da condição humana. Ao jogar pela janela a Declaração da Independência, Calhoun foi capaz de desenvolver uma ideologia política Sulista que poderia acomodar a instituição da escravidão. (Os negros não eram uma das facções minoritárias a quem Calhoun contemplava oferecer direitos de veto!)

O processo de decadência não parou por aí. Na década de 1850, o novo porta-voz ideológico do Sul era o arqui-comunitário George Fitzhugh (autor de Cannibals All! or Slaves Without Masters e Sociology for the South, or the Failure of Free Society). No sistema de Fitzhugh, a necessidade de justificar a escravidão resultou em um ataque em larga escala à tradição jeffersoniana em todos os seus aspectos; todo vestígio de libertarianismo foi metodicamente extirpado. Combinando a nostalgia da direita de um passado tradicionalista feudal idílico e do desejo da esquerda por um futuro socialista cientificamente organizado, Fitzhugh defendia a Sociedade do Status - uma visão hierárquica e orgânica da sociedade em que cada pessoa tem um papel social atribuído que carrega tanto deveres compulsórios de obediência ao seu superior quanto uma garantia de apoio, segurança, e fiscalização paternalista desses mesmos superiores. A escravidão negra, na visão de Fitzhugh, era apenas um caso particular do princípio geral que nenhuma pessoa, branca ou negra, tem o direito de ser o mestre de sua própria vida.

Nem todos os defensores da escravidão aceitavam a filosofia de Fitzhugh, claro; mas a maneira geral de pensar que seus trabalhos representavam estava se tornando generalizada na sociedade Sulista. Em 1862, o jornal Confederado De Bow’s Review estava alardeando o slogan “O Estado é tudo, o indivíduo nada”. (Algumas das pessoas que vestem a bandeira Confederada em suas jaquetas podem querer refletir sobre essa.) A necessidade da cultura branca Sulista de manter a dominação sobre sua população negra a levara a adotar princípios que acabaram ameaçando a liberdade de seus próprios membros brancos.

Não era inevitável que os brancos Sulistas escolhessem fechar seus olhos para a injustiça da escravidão. Esta era uma escolha a ser feita por eles, e eles a fizeram. O que era inevitável, ou quase inevitável, era que essa escolha, uma vez feita, teria consequências onerosas - que ela teria uma influência corruptiva tanto sobre suas instituições quanto sobre seus ideais. Quando nos vemos numa posição de dominação sobre os outros, não podemos nos permitir desculpar nossa autoridade alegando que a luta pela sobrevivência nos favoreceu. Não podemos nos permitir seguir Calhoun e Fitzhugh em rejeitar a Lei Natural de que todos os seres humanos tem direito a igual respeito, independente de quem recebeu a mão vencedora. Por se o fizermos, corremos o risco de destruir não apenas a liberdade deles mas, no longo prazo, a nossa própria.

Eu não quero estar dando à União um passe livre aqui. Na Guerra Civil, ambos, o Norte e o Sul, deram as costas de forma decisiva aos ideais pelos quais se lutou a Revolução Americana21. O desejo do Norte de subjugar o Sul teve um efeito sobre o Norte análogo ao efeito que o desejo do Sul de preservar a escravidão teve sobre o Sul. Mais autoridade foi centralizada em Washington; as liberdades civis eram rotineiramente violadas; o imposto de renda e o recrutamento administrado federalmente foram introduzidos; e um culto sinistro à união nacional se espalhou pela consciência americana. O resultado foi um governo Federal com vastos novos poderes - um Leviatã incipiente que rapidamente se provou um prazer muito saboroso para não ser capturado pela elite corporativa. E assim fomos deixados, ao fim do século XX, com um crescente estado policial americano cujas vítimas primárias, ironicamente, são os mesmo negros cuja liberação deveria ser a justificativa moral da vitória da União.

A moral dessa longa digressão histórica é que, quando uma sociedade adquire uma posição dominante, os prospectos para a liberdade podem se tornar não menos, mas mais precários, primeiro para os vizinhos da sociedade e segundo (como um resultado da necessidade de manter esses vizinhos em sujeição) para os próprios membros da sociedade. Consequentemente, estamos confiando num caniço fraco se dependermos do processo de evolução cultural para garantir a liberdade para nós mesmos e para nossos vizinhos. Se quisermos que o meme da liberdade prevaleça, devemos tomar a iniciativa e trabalhar para propagá-lo, tomando como nosso guia a estrela polar da Lei Natural.

John Locke sobre a Lei Natural

O primeiro argumento pode ser feito a partir da evidência de Aristóteles na Ética a Nicômaco, Livro I, capítulo 7, onde ele diz que “a função apropriada do homem é a atividade da alma de acordo com a razão”; pois, uma vez que provara através de vários exemplos que há uma função apropriada para cada coisa, ele questionou qual é essa função apropriada no caso do homem; isto ele procurou através de uma descrição de todas as operações das faculdades tanto vegetativas quanto senscientes, que são comuns aos homens juntamente com os animais e as plantas. Ele finalmente chega à conclusão adequada de que a função do homem é a atividade de acordo com a razão; consequentemente o homem deve realizar aquelas ações que são ditadas pela razão. Similarmente no Livro V, capítulo 7, em sua divisão da lei entre civil e natural, ele diz que “esta lei natural é aquela lei que tem em todo lugar a mesma força” […]

Nesse ponto, alguns objetam à lei da natureza, alegando que tal lei não existe absolutamente, uma vez que não é descoberta em nenhum lugar; pois a maior parte da humanidade vive como se não houvesse qualquer princípio norteador da vida absolutamente […] se houvesse, de fato, uma lei da natureza, conhecível pela luz da razão, como ocorre de que todos os homens que são dotados de razão não a conheçam?

Respondemos: […] se um homem cego não pode ler um aviso mostrado publicamente, não se segue que uma lei não existe ou não foi promulgada, nem se for difícil para alguém que tem uma visão deficiente lê-la; nem se alguém que está ocupado com outros assuntos não tem tempo, nem se não é do gosto do ocioso ou do vicioso levantar seus olhos para o aviso público e aprender com ele a declaração de seu dever. Eu admito que a razão foi concedida a todos pela natureza, e afirmo que existe uma lei da natureza, conhecível pela razão. Mas não se segue necessariamente disso que ela é conhecida por cada um e todos, pois alguns não fazem uso algum desta luz, mas amam a escuridão […] Mas o próprio sol não revela o caminho a ninguém além daquele que abre seus olhos […] Alguns homens que são nutridos de vício mal distinguem entre bem e mal, uma vez que ocupações más, ficando fortes com a passagem do tempo, os levaram a estranhas disposições, e maus hábitos corromperam seus princípios também. Ainda outros, por causa de um defeito da natureza, têm uma avidez de espírito demasiado fraca para permiti-los descobrir estes segredos escondidos da natureza. De fato, quão raro é o homem que se rende à autoridade da razão nos assuntos da vida cotidiana, ou em coisas facilmente conhecidas, ou que segue a orientação da razão? Pois os homens são frequentemente afugentados de seu curso apropriado pela arremetida de seus sentimentos ou por sua indiferença e falta de preocupação ou conforme eles são corrompidos por suas ocupações habituais, e seguem passivamente não o que a razão dita, mas o que suas paixões baixas incitam neles. […]

O que é que devemos fazer podemos inferir […] da constituição do próprio homem e da aparelhagem das faculdades humanas, uma vez que o homem não é feito por acidente, nem lhes foram dadas estas faculdades, que tanto podem quanto devem ser exercidas, para não fazer nada. Parece que a função do homem é o que ele está naturalmente equipado para fazer; isto é, uma vez que ele descubra em si mesmo o sentido e a razão, e percebe a si mesmo inclinado e pronto para realizar os trabalhos de Deus, como ele deve, e para contemplar seu poder e sua sabedoria nestes trabalhos […] Então, ele percebe que ele está impelido a formar e preservar uma união de sua vida com a de outros homens, não apenas pelas necessidades e indispensabilidades da vida, mas ele percebe também que é guiado por uma certa propensão natural a entrar na sociedade e está equipado para preservá-la pelo dom da fala e do comércio da linguagem. E, de fato, não há necessidade de eu enfatizar aqui a que grau ele é obrigado a preservar a si mesmo, uma vez que ele é impelido a esta parte de seu dever […] por um instinto interno […]

Questions on the Law of Nature

[…] devemos considerar em que estado todos os homens estão naturalmente, e esse é um estado de liberdade perfeita para ordenar suas ações e dispor de suas possessões e pessoas conforme lhes aprouver, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir licença, ou depender do desejo de qualquer outro homem.

Um estado também de igualdade, em que todo o poder e jurisdição são recíprocos, ninguém tendo mais do que o outro: não havendo nada mais evidente de que criaturas da mesma espécie e categoria, promiscuamente nascidas para as mesmas vantagens da natureza, e para o uso das mesmas faculdades, deveriam também ser iguais umas entre as outras sem subordinação ou sujeição […]

O estado de natureza tem uma lei da natureza para governá-lo, que obriga a todos. E a razão, que é essa lei, ensina a toda a humanidade que vá consultá-la que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deve fazer mal à vida, à saúde, à liberdade, ou às posses um do outro. […] sendo providos com tais faculdades, compartilhando tudo em uma comunidade da natureza, não pode ser suposta qualquer subordinação entre nós que possa autorizar-nos a destruir uns aos outros, como se fossemos feitos um para o uso do outro […]

Pois no estado de natureza […] um homem [pode] fazer tudo o que ele achar conveniente para a preservação de si próprio e de outros dentro da permissão da lei da natureza; por qual lei, comum a todos eles, ele e todo o resto da humanidade são uma comunidade, constituindo uma sociedade distinta de todas as outras criaturas. E, não fosse a corrupção e a crueldade que degenera o homem, não haveria necessidade de nenhuma outra; nenhuma necessidade que os homens deveriam separar dessa grande comunidade natural, e através de acordos positivos combinar em associações menores e divididas.

Two Treatises of Government

Notas

  1. Vale a pena notar que há outro sentido comum de “lei natural”, de acordo com o qual as leis causais básicas que governam o universo são chamadas de leis naturais. Esses dois conceitos são distintos. Na concepção causal, a lei natural é descritiva; ela diz o que realmente acontece. Mas a Lei Natural, no sentido em que estou interessado, é normativa; ela diz o que deveria acontecer.

    Mas esses dois sentidos às vezes estão ligados. Por exemplo, é uma lei natural, no sentido descritivo, que se você puser sua mão no fogo, você terá uma sensação que você não vai gostar; e na medida em que se toma isso como uma razão para não por sua mão no fogo, a conexão causal pode também ser contada como uma Lei Natural no sentido normativo.

    O termo “lei natural” ganhou uma quantidade incomum de notoriedade ultimamente por causa da crescente proeminência do Natural Law Party, e alguns podem se perguntar qual a relação, se existe, entre o tipo de Lei Natural que estou defendendo e o tipo de que o Natural Law Party está falando. Na recente campanha dos EUA, representantes do Natural Law Party comentaram que eles concordavam com os fundadores da América que a política pública deveria se baseada na Lei Natural. Agora, os fundadores da América foram profundamente influenciados por teóricos da Lei Natural como Cícero e John Locke, e quando eles falavam sobre Lei Natural normalmente (embora nem sempre - eles eram fãs da física newtoniana também) eles queriam dizer o sentido normativo, como quando a Declaração de Independência diz em seu preâmbulo que as “Leis da Natureza e do Deus da Natureza” autorizam os colonos americanos a se separarem do Império Britânico. Eu não sei muito sobre as crenças do Natural Law Party, mas dada sua ênfase em “soluções cientificamente comprovadas”, e sua repetida declaração de que “o governo deveria ser baseado no que funciona”, minha impressão é que eles estão, em vez disso, falando primariamente sobre a lei natural no sentido descritivo, e que o que eles querem dizer é que a política pública deveria ser moldada à luz de informações precisas sobre como o mundo funciona. Então, nessa medida, eu não acho que o Natural Law Party está falando sobre a Lei Natural no mesmo sentido que eu quero dizer aqui.

    Por outro lado, parece haver uma dimensão religiosa - especificamente uma influenciada pelo Hinduísmo - na perspectiva do Natural Law Party (seu fundador e candidato presidencial recorrente, John Hagelin, dá aulas na Maharishi University em Fairfield, Iowa, e tais práticas espirituais como meditação transcendental e o voo do yoga são centrais às propostas políticas do partido), então é possível que algumas das observações dos candidatos do Natural Law sobre a necessidade de pôr nosso sistema político em conformidade com a Lei Natural deveriam ser interpretadas como um chamado à reforma de nosso sistema à luz de uma moral inerente ao universo (a existência de tal ordem, Dharma, é um princípio fundamental do Hinduísmo), caso no qual a perspectiva do Natural Law Party contaria como uma versão da teoria normativa da Lei Natural afinal. Mas, mais uma vez, meu conhecimento sobre o Natural Law Party é demasiado superficial para que eu ofereça qualquer interpretação com confiança. 

  2. Descartes acha que tem uma saída para isso, que ele pode parar a regressão com algumas crenças (e.g., minha crença de que eu existo) que são auto-evidentes e não sujeitas à dúvida. Mas o princípio que começa a regressão - o princípio cartesiano de que a crença só está justificada quando podemos excluir toda possibilidade de erro - não parece ser uma das crenças que são auto-evidentes e não sujeitas à dúvida, então ainda não está claro por que deveríamos acreditar nela. 

  3. Vale a pena notar, no entanto, que há algumas versões da teoria da Lei Natural que veem a Lei Natural como um conjunto auto-impositivo de regras, e assim veem os direitos naturais como direitos de facto de um tipo estranho, com o universo, em vez da sociedade, realizando a imposição. De acordo com essas visões, as violações da Lei Natural serão punidas - talvez por Deus (você será enviado ao Inferno por transar com a pessoa errada), talvez pela natureza (se você quebrar a Lei Natural contra caminhar para fora de um penhasco, você será punido com morte ou ferimento), talvez pela Lei do Carma (se você pecar nesta vida, você será punido sendo reencarnado como algo nojento em sua próxima vida), talvez pelo próprio fato de ser uma pessoa pior (se você age perversamente, sua punição é sua própria condição perversa, que é bem menos desejável do que a condição de ser virtuoso; como Sócrates coloca, a pior punição possível é ter uma alma corrompida). E se violações dos direitos naturais são punidas com segurança, então esses direitos naturais começam a parecer mais com direitos de facto, ao menos na medida (frequentemente mínima, ai de mim) em que o prospecto de tal punição realmente detenha violações de direitos.

    Essa noção de Lei Natural como auto-impositiva ainda adiciona um elemento normativo sobre o elemento de facto, no entanto. É uma coisa dizer que se você fizer X, você receberá a punição Y. É outra coisa dizer que a punição Y é tão ruim que não vale a pena fazer X. Este último é um julgamento normativo; ele diz que a ruindade de Y pesa mais do que a bondade de X. Isso é algo sobre o que nenhuma teoria meramente de facto está qualificada para emitir juízo. Então mesmo se todos os direitos normativos viessem a ser uma espécie de direitos de facto, seu status como direitos normativos não seriam redutíveis a seu status como direitos de facto

  4. Por outro lado, há mais um peça de evidência para (a). Notando que nossos ancestrais e nossa civilização sobreviveram por causa de seu sucesso na luta competitiva pela existência, Rich diz: “Se você argumenta em favor de um modo diferente de seleção, você argumenta contra o processo que trouxe eu e você aqui. Nós desfrutamos da vida, da saúde, e do lazer de discutir esse assunto por causa do processo que nos trouxe aqui” (p. 16). Rich pode ser interpretado como dizendo que o valor que colocamos em nossas próprias vidas e bem-estar nos compromete a valorizar o triunfo do poderio superior, porque é apenas através do último tendo prevalecido que somos capazes de desfrutar do anterior - e que, portanto, devemos sempre torcer pelo poder mais forte, mesmo quando esse poder se opõe a nós. Mas eu dúvido que essa passagem suportará o peso de tão forte interpretação. 

  5. Incidentalmente, isso é o que está errado com o argumento (parodiado no subtítulo do livro de Wilson) apresentado por alguns teóricos da Lei Natural que condenam a contracepção alegando que a reprodução é o fim natural das relações sexuais. Nossos genes nos deram um ímpeto sexual sobre o fundamento estratégico de que seres com um impulso sexual têm mais probabilidade de se reproduzir. Então a reprodução era a meta de nossos genes ao nos dar a capacidade do desejo sexual, mas o fim natural das relações sexuais consideradas em si mesmas são as relações, não a reprodução. 

  6. Ser humano não é uma condição tudo-ou-nada, em vez de uma questão de grau? Bem, eu responderia que a humanidade é como o tamanho. Em um sentido, o tamanho é uma condição tudo-ou-nada; ou algo tem um tamanho ou não. Ainda assim, entre as coisas que tem um tamanho, algumas têm um tamanho maior que outras. Do mesmo modo, em um sentido ser humano é uma condição tudo-ou-nada; ou uma vida é humana (i.e., se é a vida de um ser humano) ou não - mas entre as vidas humanas, algumas vidas exemplificam essa humanidade em uma maior medida do que outras. 

  7. Para mais discussão sobre esse ponto, veja os meus Punishment vs. Restitution (Formulations, Vol. I, No. 2 (Inverno de 1993-94)) e Slavery Contracts and Inalienable Rights (Formulations, Vol. II, No. 2 (Inverno de 1994-95)). 

  8. Eu estou em dívida com Nicholas Sturgeon, Richard Boyd, e Robert Adams por muitas das ideias que se seguem. 

  9. A fraseologia de Wilson aqui sugere que ele é um adepto da antiga noção positivista do verificacionismo, que mantinha que uma afirmação só é significativa se ela puder ser testada empiricamente. Wilson não diz como ele responderia à objeção padrão ao verificacionismo, a saber, que por esse critério a doutrina verificacionista é ela mesma sem sentido. (Outra cura para o verificacionismo é considerar como você reagiria se estivesse escutando criaturas de outra dimensão que fossem incapazes de lhe detectar, e ouvindo-as concluir que a hipótese de sua existência não era apenas inverossímil (o que seria justo) mas sem sentido). 

  10. Eu digo “provavelmente” porque a medida de dissidência dentro das ciências naturais é difícil de avaliar, dado que tal dissidência é tornada invisível por nossos costumes sociais de uma maneira que a dissidência dentro do campo da ética não é. Por exemplo, se um autoproclamado cientista argumenta que a terra é plana ou que as Montanhas Rochosas são uma escultura de vanguarda esculpida por visitantes de Vênus, nós recusamos continuar chamando ele de cientista, ou conceder que o que ele está fazendo é ciência; mas se um autoproclamado eticista argumenta que a raça humana é um câncer sobre a terra e deveria ser aniquilada, então mesmo se discordarmos de sua posição, nós ainda concedemos a ele o título de eticista e dizemos que ele está fazendo ética. Como resultado, a discordância sobre questões científicas é tornada menos visível do que a discordância sobre questões éticas. (O verdadeiro teste de “ciência genuína” na nossa cultura, suspeito eu, é se ela pode produzir tecnologia militar para o governo.) 

  11. Eu digo isso com cuidado, visto que alguns dos outros escritos de Wilson sugerem um ceticismo sobre o conceito de realidade objetiva como tal. Ainda assim, ele frequentemente escreve como se pensasse que afirmações sobre interações causais no espaço e no tempo tivessem um tipo de objetividade nelas que as afirmações normativas não têm. 

  12. Em particular, a seguinte provisão parece fazer tudo que precisamos que a condição de confiabilidade faça, sem excluir o conhecimento moral: “A crença não deve depender, para sua justificativa, da presença de crenças que são falsas ou da ausência de crenças que são verdadeiras”. 

  13. Estritamente falando, minha própria posição não é nem consequencialista nem deontológica, mas ética das virtudes; mas na maioria das questões, e certamente na presente questão, ela chega mais perto do lado deontológico, e então eu ignorarei as diferenças aqui (especialmente uma vez que Immanuel Kant, usualmente considerado como o teórico deontológico paradigmático, conta como um eticista das virtudes a meu ver, uma vez que ele justifica as regras morais em termos da atitude virtuosa que elas expressam, em vez de justificar a atitude virtuosa em termos de ser uma disposição para obedecer a regras certas. Para mais sobre estas distinções, veja os meus Slavery Contracts and Inalienable Rights (Formulations, Vol. II, No. 2 (Inverno de 1994-95)). e Inalienable Rights and Moral Foundations (Formulations, Vol. II, No. 4 (Verão de 1995). 

  14. Outra maneira de colocar a objeção é que se nossas atitudes morais são o resultado da evolução, então teríamos as atitudes morais que temos, quer elas refletissem com precisão uma verdade moral transcendente ou não, caso em que as crenças morais falham em satisfazer o critério para o conhecimento, i.e., a conexão entre nossa crença de que algo é errado e isso realmente ser errado é puramente acidental. 

  15. Na verdade, eu estou intrigado sobre o exemplo da beleza também. Parece funcionar apenas se limitarmos a beleza ao caso estrito da atratividade sexual. Uma explicação evolutiva é bem plausível quando se trata da preferência do Rich por fêmeas humanas sobre fêmeas de barata. Mas se alguém acha a música de Mozart mais bonita do que a de Haydn, é menos óbvio que uma explicação evolutiva deva ser iminente. Como seria uma explicação dessas? 

  16. Por favor, note que estes são apenas exemplos; eu não estou fazendo quaisquer alegações sobre como a evolução humana realmente ocorreu. Na verdade, muitas de nossas tendências mais básicas podem ter evoluído quando nossos ancestrais ainda eram herbívoros. E em particular, eu duvido que nossos ancestrais mais primitivos estavam inclinados a acreditar em qualquer coisa tão elevada como (1); de fato, eles podem bem ter se agarrado a uma ética de cooperação dentro do grupo e de indiferença ou hostilidade àqueles fora do grupo. Em caso afirmativo, então a generalizada atitude moderna de que a cooperação deveria se estender (pelo menos em algum grau) a todos os camaradas humanos pode ser, em parte, o resultado da compreensão moral, o reconhecimento de que as diferenças entre os de dentro e de fora do grupo não são significantes o suficiente para justificar tal disparidade em tratamento. 

  17. Para discussão, vide The Return of Leviathan (Formulations, Vol. III, No. 3 (Primavera de 1996)). 

  18. Deixe-me aproveitar esta oportunidade para recomendar, a qualquer um interessado no assunto, o iluminador artigo de David Ramsay Steele Hayek’s Theory of Cultural Group Selection (Journal of Libertarian Studies, Vol. VIII, No. 2 (Verão de 1987), pp. 171-195), uma das melhores discussões que já vi sobre os usos e abusos dos argumentos evolutivos culturais. 

  19. No círculo mais baixo do Inferno (Inferno, Canto XXXIV), as três mandíbulas de Satã estão para sempre roendo os três maiores traidores de todos os tempos: Judas (o traidor de Cristo) - e Brutus e Cassius (os traidores de César). Isto de um autor supostamente Cristão, em adulação ao sistema imperial Romano sob cujas leis Cristo foi executado e milhares de Cristãos primitivos foram martirizados! A única indicação de que o crime de Judas poderia ser um nível mais sério do que o dos dois tiranicidas é que Judas tem sua cabeça dentro da boca de Satã e suas pernas para fora, enquanto Brutus e Cassius estão num posição, presumivelmente mais confortável, de cabeça para fora e pernas para dentro. (Ironicamente, o florescimento cultural europeu que produziu artistas como Dante - e lançaram as bases para a Renascença e para a Revolução Científica - parece ter sido largamente o resultado da descentralização e fragmentação política do Ocidente, refletindo precisamente a medida em que a sociedade de Dante tinha (felizmente) falhado em assimilar o meme centralista Romano.) 

  20. A maioria dos edifícios clássicos de mármore do governo que parecem tão definidores de Washington, D.C., data não do tempo da Fundação, mas sim da Era Progressista (aproximadamente o final do século XIX e começo do século XX), quando o romance da América com o fascismo e o imperialismo estava apenas entrando em pleno funcionamento. 

  21. Defensores do Norte gostam de pensar que a Guerra Civil foi primariamente sobre a escravidão, porque isso põe a União às luzes mais atraentes. Defensores do Sul gostam de pensar que a Guerra Civil não teve quase nada a ver com a escravidão, porque isso põe a Confederação às luzes mais atraentes. A verdade real lança as luzes menos lisonjeiras possíveis sobre cada lado: a preservação da escravidão foi central para os motivos do Sul para seceder, mas a eliminação da escravidão foi apenas periférica para os motivos do Norte para invadir. Para uma análise libertária penetrante que foca nos aspectos políticos, econômicos e culturais em vez de aspectos militares, e evita a tentação de elogiar tanto Norte como o Sul, vide Emancipating Slaves, Enslaving Free Men: A History of the American Civil War (Chicago: Open Court, 1996) de Jeffrey Rogers Hummel. (Os ensaios bibliográficos sozinhos valem o preço do livro.)