O Estado

The State · Tradução de Erick Vasconcelos e Giácomo de Pellegrini
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O autor deixou um rascunho inacabado e não divulgado de “The State” quando morreu durante a pandemia de gripe de 1918. O rascunho foi publicado postumamente, com algum material incorretamente encomendado, em “Untimely Papers” (1919). Esta edição segue a ordem corrigida usada na maioria das edições impressas da obra de Bourne.

I.

À maioria dos americanos das classes que se consideram significativas, a guerra trouxe uma sensação de santidade do Estado que, caso houvessem dedicado algum tempo para refletir sobre o assunto, pareceria uma alteração repentina e surpreendente de seus hábitos de pensamento. Em tempos de paz, nós normalmente ignoramos o Estado em favor de controvérsias políticas, de disputas pessoais por cargos ou de defesas de políticas partidárias. É com o governo, não com o Estado, que as pessoas politizadas se preocupam. O Estado é reduzido a um sombrio emblema que só toma consciência durante feriados patrióticos.

O governo, evidentemente, é composto, não de santos, mas de homens comuns, e é, portanto, um legítimo objeto de críticas e até mesmo de desdém. Se o seu próprio partido estiver no poder, pode-se assumir que as coisas estejam se movendo de forma segura; mas se a oposição estiver no poder, claramente toda a segurança e a honra abandonaram o Estado. No entanto, você não se posiciona exatamente dessa forma. Você apenas pensa que alguns patifes devem ser tirados de dentro de um prático mecanismo de cargos e funções, o qual você toma por dado. Quando nós dizemos que os americanos não têm lei, nós normalmente queremos dizer que eles têm menos consciência do que outros povos da augusta majestade da instituição do Estado que existe por trás do governo de homens e leis que vemos. Numa República, os homens que detêm os cargos públicos são indistinguíveis da massa. Bem poucos possuem qualquer dignidade pessoal da qual pudessem dotar suas funções políticas; isto é, se já pensaram alguma vez nisso. E eles não têm qualquer distinção de classe que lhes dê encanto. Numa República, obedece-se ao governo a contragosto, porque ele não têm nenhum adorno que o dote de fascínio ou santidade. Se você for um bom democrata à moda antiga, você se regozija com esse fato, você glorifica a simplicidade de um sistema em que todo cidadão se tornou um rei. Se você for mais sofisticado, você lamenta o fim da dignidade e da honra nas questões de Estado. Mas na prática, o democrata não trata o cidadão eleito com o respeito devido a um rei, e o cidadão sofisticado não faz um tributo à dignidade quando a encontra. O Estado republicano quase não tem ardis com os quais seduzir as emoções do homem comum. Os que tem são de origem militar, e numa era não-militar como a que atravessamos desde a Guerra Civil, mesmo esses ardis militares quase não foram vistos. Numa tal era, a sensação do Estado quase desaparece da consciência dos homens.

Com o choque da guerra, contudo, o Estado volta a si próprio. O governo, sem qualquer mandado da população, sem qualquer consulta à população, conduz todas as negociações, os apoios e as coligações, as ameaças e as explicações, que lentamente o levam a colidir com algum outro governo e gentil e irresistivelmente levam o país à guerra. Pelo bem dos honrados e orgulhosos cidadãos, ele é fortalecido com uma lista de intoleráveis insultos que nos foram lançados pelas outras nações; pelo bem do liberal e beneficente, ele tem um convincente conjunto de objetivos morais que nossa ida à guerra cumprirá; às classes ambiciosas e agressivas, ele pode gentilmente citar o maior papel no destino do mundo que elas assumirão. O resultado é que, mesmo naqueles países onde a declaração de guerra é teoricamente uma atribuição dos representantes do povo, jamais se soube de qualquer legislatura que tenha negado o pedido para levar a nação à batalha de um Executivo que tenha conduzido todas as relações internacionais em total privacidade e irresponsabilidade. Bons democratas estão habituados a sentir a crucial diferença entre um Estado no qual o Parlamento ou Congresso popular declara guerra e um Estado no qual um monarca absoluto ou uma classe dominante declara guerra. Mas, colocando-se num rigoroso teste pragmático, a diferença não é grande. Tanto na mais livre das Repúblicas quanto no mais tirânico dos Impérios, toda política externa, as negociações diplomáticas que produzem ou prenunciam uma guerra, é propriedade privada do braço Executivo do governo, e não está sujeita à qualquer limitação de organizações populares ou dos votos em massa do povo.

No momento em que a guerra é declarada, contudo, as pessoas, através de algum tipo de alquimia espiritual, convence-se de que ela própria desejou e executou o ato. Elas, então, com a exceção de uns poucos descontentes, permitem ser arregimentadas, coagidas e transtornadas em todos os ambientes de suas vidas, e transformadas em sólidas fábricas de destruição do que quer que os outros povos tenham, elas entram no campo da desaprovação do governo. O cidadão joga fora seu desprezo e sua indiferença em relação ao governo, identifica-se com seus propósitos, ressuscita todos os seus símbolos e memórias militares, e o Estado mais uma vez surge, com sua augusta presença, nas imaginações dos homens. O patriotismo se torna o sentimento dominante e produz imediatamente aquela intensa e incorrigível confusão entre as relações que o indivíduo possui e deve possuir com a sociedade da qual é parte.

O patriota perde todo senso de distinção entre Estado, nação e governo. Em momentos mais tranquilos, a nação ou o país formam a ideia básica de sociedade. Nós pensamos vagamente numa grande população espalhada sobre uma certa porção geográfica da superfície da terra que fala o mesmo idioma e vive numa civilização homogênea. Nossa ideia de país se relaciona com os aspectos não-políticos de um povo, com suas formas de viver, suas características pessoais, sua literatura e suas artes, suas atitudes características em relação à vida. Nós somos americanos porque vivemos num certo território, porque nossos ancestrais empreenderam um grande projeto de desbravamento e colonização, porque vivemos em certos tipos de comunidades que possuem uma determinada aparência e que expressam suas aspirações de determinadas maneiras. Nós podemos ver que nossa civilização é diferente de civilizações contíguas como a índia e a mexicana. As instituições de nosso país formam uma certa rede que nos afeta vitalmente e que intriga nossos pensamentos de uma forma que essas outras civilizações não intrigam. Bem ou mal, nós somos parte do país. Nós viemos a fazer parte dele através da operação de leis fisiológicas, não porque escolhemos. Quando alcançamos o que se chama de idade do discernimento, as influência do país já moldaram nossos hábitos, nossos valores, nossas formas de pensar, de forma que mesmo que nos conscientizemos desse fato, nós jamais perdemos a marca de nossa civilização, e jamais poderíamos ser confundidos com os filhos de qualquer outro país. Nosso sentimento por nossos compatriotas é de similaridade ou de mero conhecimento. Nós podemos ter intenso orgulho de nossa rede civilizatória particular e gostar de fazer parte dela, ou detestar a maior parte de suas qualidades e nos enfurecer com seus defeitos. Isso não altera o fato de que nós estamos inextrincavelmente ligados a ela. O país, como um grupo inescapável em que nascemos, e que nos torna um tipo particular de cidadão do mundo, parece ser um fato fundamental de nossa consciência, um mínimo irredutível de sentimento social.

Esse sentimento pelo país é essencialmente não-competitivo; nós pensamos em nosso povo meramente como um grupo que vive na superfície da terra juntamente com outros grupos, agradáveis ou condenáveis como sejam, mas que fundamentalmente dividem a terra conosco. Em nossa simples concepção de país, não há maior sentimento de rivalidade com outros povos do que há em nossa família. Temos interesse no que está dentro, não no que está fora, ele é intensivo e não beligerante. Nós crescemos e nossas imaginações gradualmente delimitam o mundo em que vivemos, elas não precisam de maior satisfação consciente de seus impulsos gregários que essa sensação de ser parte de uma grande massa de pessoas com a qual somos mais ou menos afinados e em cujas instituições atuamos. O sentimento pelo país seria inexpansível se não fosse pelas ideias de Estado e governo que estão associadas a ele. País é um conceito de paz, de tolerância, de vivência e convivência. Mas Estado é essencialmente um conceito de poder, de competição: ilustra um grupo em seus aspectos agressivos. E nós temos a falta de sorte de não apenas nascermos num país, mas também num Estado, e enquanto crescemos, aprendemos a misturar os dois sentimentos numa insolúvel confusão.

O Estado é o país agindo como uma unidade política, é o grupo agindo como um repositório de força, como determinador da lei, como árbitro da justiça. A política internacional é uma “política de força”, pois é uma relação de Estados e isso é o que Estados invariável e calamitosamente são: imensos aglomerados de força humana e industrial que podem ser jogados uns contra os outros em guerra. Quando um país age como um todo em relação a outro país, impondo leis sobre seus próprios habitantes, ou coagindo ou punindo indivíduos ou minorias, está agindo como um Estado. A história dos EUA como um país é bastante diferente da história dos EUA como um Estado. Num caso, é o drama do desbravamento de terras, do aumento da riqueza e das formas pela qual ela foi utilizada, da empresa da educação, da disseminação de ideais espirituais, da luta das classes econômicas. Mas como um Estado, é a história de sua influência no mundo, de suas guerras, de obstruções ao comércio internacional, de impedimentos à própria cisão, de punições a cidadãos considerados ofensivos pela sociedade, de coletas de dinheiro para pagar por tudo isso.

Governo, por outro lado, não é sinônimo nem de Estado nem de nação. É o mecanismo pelo qual a nação, organizada como um Estado, realiza suas funções estatais. Governo é uma estrutura para a administração das leis e da força pública. Governo é a ideia de um Estado posta em funcionamento nas mãos de homens definidos, concretos, falíveis. É o sinal visível da graça invisível. É a palavra encarnada. E tem necessariamente as limitações inerentes à praticidade. O governo é a única forma na qual podemos visualizar o Estado, mas não é idêntico a ele. Que o Estado seja uma concepção mística é algo que não se deve nunca esquecer. Seu glamour e sua importância estão por trás da estrutura do governo e direcionam suas atividades.

Os tempos de guerra tornam claro o próprio ideal do Estado e revelam atitudes e tendências que anteriormente estavam ocultas. Em tempos de paz, a sensação do Estado se enfraquece em uma República que não seja militarizada. Pois a guerra é essencialmente o alimento do Estado. O ideal do Estado é que, dentro de seu território, seu poder e influência sejam universais. Da mesma forma que a Igreja é a intermediária entre o homem e sua salvação espiritual, o Estado é imaginado como sendo o intermediário entre o homem e sua salvação política. Seu idealismo é um rico sangue que flui para todos os membros do corpo político. E é precisamente na guerra que a necessidade de uma união parece maior e que a necessidade de universalidade parece mais inquestionável. O Estado é a organização do bando para ação ofensiva ou defensiva contra outro bando similarmente organizado. Quanto mais aterradora a ocasião da defesa, mais se aproximará a organização e mais coercitiva será sua influência sobre cada membro do bando. A guerra envia uma corrente de propósitos e atividades para o nível mais baixo do bando, a suas partes mais remotas. Todas as atividades da sociedade são ligadas o mais rápido possível ao objetivo central de possibilitar uma ofensiva militar ou uma defesa militar, e o Estado se torna o que, em tempos de paz, ele lutara em vão para se tornar — o árbitro e determinante inexorável dos negócios, das atitudes e das opiniões do homem. Surge a calmaria, as contra-correntes desaparecem, e a nação se move arrastada e lentamente, mas com cada vez mais velocidade e integração, rumo ao grande objetivo, rumo à “tranquilidade de se estar em guerra”, de que falou inesquecivelmente L. P. Jacks.

As classes que são capazes de assumir um papel ativo, e não meramente passivo, na organização da guerra têm suas atividades e energias tremendamente liberadas. Os indivíduos são sacudidos de suas antigas rotinas, muitos deles ganham novas posições de responsabilidade, novas técnicas precisam ser aprendidas. Desgastantes laços domésticos são quebrados e mulheres que teriam permanecido presas a suas obrigações com crianças são liberadas para o serviço no exterior. Uma grande sensação de rejuvenescimento toma as classes significativas, uma sensação de nova importância no mundo. Os velhos ideais nacionais são cooptados, readaptados ao objetivo e usados como critérios universais, ou moldes em que todo o pensamento é despejado. Todos aqueles cidadãos individuais que, em tempos de paz, não tinham qualquer função que os fizesse se sentir uma expressão ou um fragmento vivo do Estado se tornam agentes ativos amadores do governo na denúncia de espiões e traidores, no levantamento de fundos para o governo, ou na propaganda das medidas consideradas necessárias pela burocracia. As opiniões minoritárias, que, em tempos pacíficos, eram somente irritantes e não poderiam ser condenadas pela lei a não ser que estivessem associadas a um crime real, com a eclosão da guerra, tornam-se propriamente crimes. Críticas ao Estado, objeções à guerra, opiniões desinteressadas em relação à necessidade ou ao encanto do serviço militar obrigatório, são sujeitas a ferozes penalidades, que excedem em muito a severidade das penas afixadas para crimes normais. A opinião pública, expressada nos jornais, nos púlpitos e nas escolas se torna um só bloco maciço. “Lealdade”, ou, antes, ortodoxia de guerra, se torna o único teste para todas as profissões, técnicas, ocupações. Isso é particularmente verdadeiro na seara da vida intelectual. Nela, assume-se que a menor mácula já se disseminou por toda a alma, de forma que um professor de física está ipso facto desqualificado para ensinar física ou para ter uma posição de prestígio numa universidade — a república do ensino — se ele não sustentar a posição correta quanto à guerra. Até mesmo a mera associação com pessoas de tal maneira maculadas é considerada um fator de desqualificação para um professor. Qualquer coisa relacionada ao inimigo se torna um tabu. Seus livros são suprimidos quando possível, seu idioma é proibido. Passa-se a considerar que suas produções artísticas carregam um grande veneno que sutilmente contamina espiritualmente toda alma que permite a si mesma usufruir delas. Assim, a música inimiga é suprimida, e medidas enérgicas de opróbrio são tomadas contra aqueles cujas consciências artísticas não estão preparadas para assumir tal ato de auto-sacrifício. O furor por uma leal conformidade funciona imparcialmente, e frequentemente em completa oposição a outras ortodoxias e conformidades tradicionais, ou mesmo ideais. A ortodoxia triunfante do Estado é mostrada em seu clímax talvez quando os pastores cristãos perdem seus púlpitos por considerarem em termos mais ou menos literais o Sermão da Montanha, e quando os fanáticos cristãos são enviados para a prisão por vinte anos por distribuírem folhetos que argumentam que a guerra é contrária aos ensinamentos bíblicos.

A guerra é o alimento do Estado. Ela automaticamente põe em funcionamento através da sociedade aquelas forças irresistíveis de uniformidade, de cooperação apaixonada com o governo na coação de grupos minoritários e indivíduos que carecem de um maior senso coletivo. O mecanismo governamental estabelece e aplica drásticas penalidades; as minorias são obrigadas a ficarem em silêncio ou são levadas a mudar suas opiniões por um sutil processo de persuasão que parece estar realmente os convertendo. É claro, o ideal da perfeita lealdade, da perfeita uniformidade, nunca é de fato alcançado. O entusiasmo das classes submetidas ao trabalho amador de coerção se fatiga, mas frequentemente a agitação delas serve, não ao propósito de convertê-las, mas para aumentar suas resistências. As minorias se tornam intratáveis, e surgem algumas opiniões intelectuais amargas e satíricas. Porém, em geral, a nação em tempos de guerra alcança uma uniformidade de sentimentos, uma hierarquia de valores, que culmina num apogeu indisputável do ideal do Estado, o qual não poderia ser produzido através de nenhum outro meio a não ser a guerra. A lealdade — ou devoção mística ao Estado — se torna o maior valor humano imaginável. Outros valores, tais como a criatividade artística, o conhecimento, a razão, a beleza, a melhoria da vida, são instantânea e quase que unanimemente sacrificados, e as classes significativas que se transformaram em agentes amadores do Estado se envolvem não somente no sacrifício desses valores para si próprias, mas na coação de todas as outras pessoas, para que elas também os sacrifiquem.

A guerra — ou, ao menos, a guerra empreendida por uma República democrática contra um inimigo poderoso — parece alcançar quase tudo que o mais inflamado idealista político poderia desejar. Os cidadãos não mais são indiferentes ao próprio governo, e cada célula do corpo político se enche de vida e energia. Nós finalmente estamos no caminho da completa realização daquela coletividade em que cada indivíduo de alguma forma possui a virtude do todo. Numa nação em guerra, cada cidadão se identifica com o todo e se sente imensamente fortalecido por essa identificação. O propósito e o desejo da coletividade vive em cada pessoa que se atira de corpo e alma à causa da guerra. A distinção entre sociedade e indivíduo é quase que totalmente obnubilada. Numa guerra, o indivíduo se torna quase idêntico a sua sociedade. Ele alcança um estado de soberba auto-confiança, de intuição de que todas as suas ideias e emoções são corretas, de forma que na supressão dos oponentes ou hereges, ele é invencivelmente forte; sente por trás de si toda a força da coletividade. O indivíduo, como ser social, em guerra parece chegar a sua apoteose. A nação americana não poderia ter demonstrado tal devoção em massa, tal sacrifício e trabalho, por nenhum impulso religioso. Certamente não seria por qualquer bem secular, tal como a educação universal ou a subjugação da natureza, que ela despejaria seus tesouros e sua vida, ou permitiria que medidas coercitivas tão severas fossem tomadas contra si, como o confisco de seu dinheiro e o recrutamento obrigatório de seus homens. Mas por uma guerra de autodefesa ofensiva, empreendida em favor de uma causa sob o slogan da “democracia”, a nação alcançaria o maior nível jamais visto de esforço coletivo.

Pois esses bens seculares, ligados ao aprimoramento da vida, à educação do homem e ao uso da inteligência para levar a razão e a beleza à vida em comunidade da nação, são alienígenas ao tradicional ideal do Estado. O Estado tem íntima conexão com a guerra, pois é a organização para a ação política da coletividade, e agir politicamente em relação a um grupo rival tem significado — durante toda a história — guerra.

Não há nenhum julgamento depreciativo implicado no uso do termo “bando” em conexão com o Estado. É somente uma tentativa de se aproximar mais dos princípios primários da natureza dessa instituição em cuja sombra todos vivemos, nos movemos e somos. Etnólogos em geral concordam que a sociedade humana surgiu primeiramente como um bando humano, não como uma coleção de indivíduos ou de casais. O bando é, de fato, a unidade original, e apenas quando se diferenciou as individualidades pessoais se desenvolveram. Sabe-se que todas as mais primitivas tribos sobreviventes de homens vivem numa organização social muito completa, mas também muito rígida, onde quase não há espaço para a individualização. Essas tribos permanecem estritamente organizadas em bandos, e a diferença entre elas e o Estado moderno é de grau de sofisticação, não de essência.

Psicólogos reconhecem o impulso gregário como um dos mais fortes fatores primitivos de manutenção da união dos bandos de diferentes espécies de animais de classes mais altas. A humanidade não é exceção. Nossa violenta história evolucionária evitou que esse impulso desaparecesse. Esse impulso gregário é a tendência de imitar, de se igualar, de aderir, e é mais forte quando o bando acredita estar ameaçado por um ataque. Animais se juntam para proteção, e os homens se tornam mais conscientes em relação à coletividade com a ameaça de guerra.

A consciência em relação à coletividade traz confiança e um sentimento de maior força, que eleva a pugnacidade e leva ao início de uma batalha. No homem civilizado, o impulso gregário não age somente para produzir uma ação coordenada de defesa, mas também para produzir uma identidade de opinião. Uma vez que pensar é uma forma de comportamento, o impulso gregário chega até seus domínios e faz com que surja aquela sensação de pensamento uniforme que a guerra engendra com tanto sucesso. E é nessa enchente de consciente vida em sociedade que a gregariedade executa seu massacre.

Pois, da mesma forma que nas sociedades modernas o instinto sexual supre muito mais que a simples necessidade de propagação humana, o impulso gregário supre muito mais do que a mera função de proteção que ele deve executar. Seria o bastante se nós fôssemos gregários o suficiente para desfrutarmos da companhia dos outros, para sermos capazes de cooperar e para sentirmos um leve mal-estar quando solitários. Infelizmente, contudo, esse impulso não se contenta com essas razoáveis e saudáveis demandas, mas insiste que a uniformidade deva prevalecer em todo lugar, em todos as partes da vida. Assim, todo o progresso humano, toda inovação e todo inconformismo, deve ser levado adiante apesar da resistência desse tirânico instinto de bando, que leva o indivíduo à obediência e à conformidade com a maioria. Mesmo nas mais modernas e esclarecidas sociedades, esse impulso não demonstra sinais de abatimento. Como é guiado por uma inexorável demanda econômica da esfera da utilidade, parece se agarrar mais firmemente às áreas dos sentimentos e das opiniões, de forma que a conformidade passa a ser algo agressivamente desejado e demandado.

O impulso gregário se mantém em funcionamento mais violentamente porque, quando o grupo está em movimento ou quando está tomando qualquer ação positiva, o sentimento de estar com um coletivo e de ser apoiado por ele alimenta o desejo de poder, o nutriente pelo qual o organismo individual pede com tanta constância. Você se sente poderoso ao se adaptar, e desamparado e perdido caso seja excluído do grupo. Embora mesmo se você não tiver acesso ao poder ao pensar e se sentir exatamente como todos os outros em seu grupo, você ao menos tem o caloroso sentimento da obediência, a calmante irresponsabilidade da proteção.

Unindo-se a essas vigorosas tendências do indivíduo — o prazer do poder e o prazer da obediência —, o impulso gregário se torna irresistível em sociedade. A guerra o estimula ao mais alto grau, enviando as influências da misteriosa corrente coletiva, com seus aumentos de força e obediência, aos setores mais longínquos da sociedade, a todo indivíduo e pequeno grupo que possa ser afetado. E é nesses impulsos em que o Estado — a organização de todo o bando, toda a coletividade — se baseia e é deles de que faz uso.

Há, evidentemente, no sentimento em relação ao Estado um grande elemento de puro misticismo. O senso de insegurança, o desejo por proteção, direciona os desejos do indivíduo de volta a seu pai e a sua mãe, com quem suas primeiras sensações de proteção estão associadas. Não é à toa que o Estado ainda é considerado como o Pai ou como a Pátria-mãe, uma vez que as relações com ele são concebidas em termos de afeição familiar. A guerra tem demonstrado que em lugar algum que esteja sob ataques ou ameaças de ataque esse tipo de sentimento infantil tem deixado de se manifestar novamente, neste país tanto quanto em qualquer outro. Se não temos uma intensa relação paternal como a dos alemães em relação à Vaterland, pelo menos no Tio Sam nós encontramos um símbolo de proteção, de autoridade gentil, e nos muitos pôsteres da Mãe da Cruz Vermelha nós vemos quão facilmente as mais sensíveis funções do serviço de guerra são concebidas em termos familiares. Um povo em guerra se torna, no sentido mais literal, uma criança obediente, respeitadora e confiável novamente, cheia da fé inocente na total sabedoria e no total poder do adulto que a tutela, que impõe seu domínio moderado mas necessário sobre ela e em quem deposita suas responsabilidades e ansiedades. Graças a esta volta à infância, há um grande conforto e um certo influxo de poder. Na maior parte das pessoas, o fardo de ser um adulto independente é pesado, e ele é mais penoso para aquelas classes significativas que legaram ou que assumiram as responsabilidades de governar. O Estado fornece os mais convenientes símbolos com os quais essas classes podem usufruir de todo o prazer real de governar, perdendo, porém, o fardo psíquico da maturidade. Elas continuam a dirigir a indústria, o governo e todas as instituições da sociedade basicamente da mesma forma que antes, mas, perante seus próprios olhos e perante os olhos da sociedade, abandonam seus modos egoístas e predatórios e transformam-se em leais servidores da sociedade, ou algo maior que eles — o Estado. O homem que abandona um grande negócio em Nova York para assumir um posto na condução das políticas industriais de guerra em Washington aparentemente não experimenta quaisquer mudanças em seus poderes ou em suas técnicas administrativas. Mas, psiquicamente, que transfiguração acontece! Ele agora não é apenas o poder, mas também a glória! E seu senso de satisfação é diretamente proporcional não ao sacrifício pessoal envolvido na mudança a que se submeteu, mas à amplitude das prerrogativas industriais e do senso de comando que mantém.

Uma certa indignação insuperável surge, nos membros dessa classe, se a mudança de seus negócios privados para o serviço estatal envolver alguma perda real de poder e privilégios pessoais. Se deve haver algum sacrifício real, que seja, sentem eles, no campo da honra, pelas tradicionais aclamadas mortes em batalha, naquele atalho para o suicídio, como Nietzsche chama a guerra. O Estado, em tempos de guerra, fornece satisfação para esse real desejo, mas seu maior mérito é a oportunidade que dá para que ocorra a supracitada infantilização. Em sua reação a um suposto ataque a seu país ou a um insulto a seu governo, você se aproxima do bando para proteção, você iguala suas palavras e atos aos dele e insiste veementemente que todos pensem, falem e ajam juntos. E contempla veneradamente, com um olhar filial, o Estado, como o Pai do rebanho, como o símbolo quasi-pessoal de força do bando, como líder e determinante de suas ações e ideias.

Os membros das classes trabalhadoras, ou ao menos a parte das classes trabalhadoras que não identifica a si própria com as classes significativas e que tenta imitá-la e alçar-se ao nível dela, são notoriamente menos afetados pelo simbolismo do Estado, ou, em outras palavras, são menos patrióticos que as classes significativas. Pois não possuem nenhum poder ou glória. O Estado, em guerra, não lhes oferece a oportunidade de regredir à infância, pois, nunca tendo adquirido a maturidade social, não a podem perder. Se foram drenados e arregimentados, como foram pelo regime industrial do século passado, os membros dessas classes vão docilmente à batalha pelo Estado, mas carecem do senso filial e da sensação de coletividade que permeia a mente dos “melhores”. Eles vivem habitualmente em servidão industrial, em que, nominalmente livres, estão presos a um sistema de produção maquinal de que não possuem as ferramentas, e na distribuição de cujo produto não tem nenhuma voz, exceto aquela que ocasionalmente podem levantar através de uma velada intimidação que canaliza uma parte um pouco maior do que produzem para si mesmos. Em relação a essa servidão, o recrutamento militar não é uma grande mudança. Eles vão para o exército não com a alegria das classes significativas, a qual a guerra alimenta tão poderosamente, mas com a mesma apatia com que permanecem no trabalho industrial.

Por este ângulo, a guerra pode quase ser chamada de um esporte das classes altas. Os novos interesses e excitações que faz surgir, os poderes que infla, a satisfação que proporciona a persistentes impulsos humanos — a gregariedade e a regressão parental —, todos esses fatores a dotam de todas as qualidades de um luxuoso jogo coletivo que é intensamente sentido por cada pessoa na exata proporção da sensação de dominação que ela tem através da divisão de classes de sua sociedade. Um país em guerra — particularmente nosso próprio país em guerra — não age como um bando completamente homogêneo. As classes significativas são permeadas pela sensação de bando em sua máxima intensidade primitiva, mas há barreiras, ou ao menos diferenciais de intensidade, de forma que essa sensação não flui livremente por toda a nação. Um país moderno representa um longo processo histórico e social de desagregação do bando. A nação em paz não é um grupo, é uma rede de miríades de grupos que representam a cooperação e similares sentimentos de homens de todas as camadas sociais, com todos os interesses e empreendimentos humanos. Em todo moderno país industrial, há camadas paralelas de classes econômicas com diferentes atitudes, instituições e interesses — burguesia e proletariado, com as muitas subdivisões de acordo com poder e função de ambas, e mesmo com seus entrelaces, como exemplificados por aqueles trabalhadores altamente qualificados, que habitualmente se identificam com as classes proprietárias e significativas, e se esforçam para elevar-se ao nível da burguesia, imitando seus padrões e suas maneiras culturais. Existem grupos religiosos com um certo senso familiar definido, embora com cada vez menos força, e há poderosos grupos étnicos que se comportam quase que como colônias culturais no Novo Mundo, agarrando-se tenazmente a suas línguas e tradições históricas, apesar de seus sentidos de coletividade serem fundamentados em maior medida em símbolos culturais, não estatais. Existem ainda certos vagos grupos secionais. Todos esses sectos, partidos políticos, classes, níveis e interesses podem funcionar como focos de sentimentos de bando. Eles se interseccionam e se entrelaçam, e a mesma pessoa pode ser parte de vários diferentes grupos localizados em diferentes camadas. Diferentes ocasiões levarão esse sentimento de bando em uma ou outra direção. Numa crise religiosa, ele estará consciente da necessidade de que seu secto (ou sub-bando) prevaleça; numa campanha política, de que seu partido alcance a vitória.

Todos esses bandos menores oferecem resistência, portanto, à disseminação do sentimento de bando. Os únicos grupos que fazem séria oposição à disseminação do sentimento de bando que surge com a ameaça de guerra, e que normalmente envolveria toda a nação, são aqueles que continuam a se identificar com a outra nação, de que eles ou seus pais vieram. Em tempos de paz, para todos os efeitos, os membros desses grupos são cidadãos de seu novo país. Mantêm suas tradições étnicas vivas mais como um luxo. De fato, essas tradições tendem a se dissolver rapidamente, exceto onde se ligam a alguma causa nacionalista mal resolvida no exterior, em que há algum tipo de luta por liberdade ou irredentismo. Se sofrem oposição de uma política de americanismo demasiado detestável, tendem a se fortalecer. E, em tempos de guerra, esses elementos étnicos que possuem alguma conexão tradicional com o inimigo, mesmo que a maioria dos indivíduos tenha pouca simpatia verdadeira pela causa dele, são naturalmente indiferentes ao sentimento de bando da nação que retorna às tradições de Estado das quais não fazem parte. Porém, para os nativos imbuídos com o sentimento do Estado, qualquer resistência ou apatia é intolerável. O sentimento de bando, a consciência despertada do Estado, exige universalidade. Os líderes das classes significativas, que sentem com maior intensidade essa compulsão estatal, exigem 100 por cento de americanismo, entre 100 por cento da população. O Estado é um Deus ciumento e não tolerará rivais. Sua soberania precisa permear a todos, e todos os sentimentos devem ter formas estereotipadas de romântico militarismo patriótico, que é a tradicional expressão do sentimento de bando do Estado.

Assim surge um conflito dentro do Estado. A guerra se torna quase um esporte entre caçadores e caçados. A perseguição de inimigos internos parece mais atrativa do que o ataque a inimigos externos. Toda a incrível força do Estado é direcionada contra os hereges. A nação borbulha com uma lenta porém insistente febre. Um terrorismo branco é usado pelo governo contra pacifistas, socialistas e imigrantes inimigos, além de também perseguir, de forma mais branda, todas as pessoas ou movimentos que se possa imaginar terem qualquer conexão com o inimigo. A guerra, que deve ser o alimento do Estado, unifica os elementos burgueses e as pessoas comuns, e proíbe todos os outros. O proletariado revolucionário, que demonstra maior resistência a essa unificação, está, como já vimos, psiquicamente fora de sintonia com a corrente. Sua vanguarda, como mostrou o Industrial Workers of the World, é incansavelmente perseguida, apesar da prova de que ela é um sintoma, não uma causa, e que sua perseguição aumenta a desafeição do trabalho e intensifica as tensões, em vez de diminuí-las.

Mas as emoções que compõem a defesa do Estado não levam em consideração os resultados pragmáticos. Uma nação em guerra, guiada por suas classes significativas, está liberando alguns de seus impulsos que foram pouco exercitados no passado. Está se satisfazendo de certas maneiras, e a real condução da guerra ou a condução do país são fatores de menor importância em relação ao prazer proporcionado por novas formas de virtude, poder e agressividade. Se fosse possível demonstrar conclusivamente que a perseguição de elementos levemente destoantes na verdade aumenta as dificuldades da produção e da organização das técnicas de guerra, se veria que o público mal se alteraria. As classes significativas precisam se regozijar em caçar e punir todos aqueles que sentem instintivamente não estarem suficientemente imbuídos do entusiasmo corrente pelo Estado, muito embora isso efetivamente retarde os próprios esforços do Estado para capturar os alvos por quem lutam tão apaixonadamente. A melhor prova disso é que com a contínua perseguição de conspiradores desde o início da guerra na Europa, os crimes concretos descobertos e punidos foram menos do que os crimes de opinião ou de expressão de críticas ao Estado ou à política nacional. A punição por opinião tem sido muito mais feroz e constante do que a punição por crimes reais. Irrepreensíveis americanos anglo-saxões que expressavam mais opiniões pacifistas ou socialistas que a opinião pública obsessivamente estatista receberam penalidades mais duras e maior opróbrio, em muitos casos, do que conspiradores alemães definitivamente hostis. Uma opinião pública que, quase sem protestos, aceita como justa, adequada, bela, merecida e em sintonia com os ideais da liberdade e da livre expressão uma sentença de vinte anos de prisão pela expressão de meras palavras, não importando quais sejam, mostra que está sofrendo de um tipo de perturbação social dos valores, uma espécie de neurose social, que deve ser analisada e compreendida.

Quando entramos em guerra, várias pessoas previram que ocorreria exatamente essa perturbação de valores; temiam que a democracia fosse sofrer mais por conta dos EUA em guerra do que poderia ser ganho por ela no exterior. Esse temor se revelou amplamente justificado. A questão relativa a qual seria o comportamento dos EUA em guerra — se agiria como uma esclarecida democracia que vai à guerra por elevados ideais ou como um bando obcecado pelo Estado — foi decisivamente respondida. Os registros foram feitos e não podem ser apagados. A história decidirá se o terror das opiniões e se a arregimentação da vida justificaram-se sob a mais idealista das administrações democráticas. Será visto que, quando a nação americana teve sua maior chance para conduzir uma guerra nobre, com escrupuloso cuidado com a segurança dos valores democráticos domésticos, escolheu adotar todas as mais absurdas e coercitivas técnicas do inimigo e de outros países em guerra, e escolheu rivalizar em intimidação e em severidade das punições com os piores sistemas de governo de nossa era. Por anteriormente desconsiderar e desrespeitar o ideal do Estado, a nação aparentemente foi penalizada com uma violenta mudança de posição para o outro extremo. Agiu de forma tão similar a um bando em sua coerção irracional das minorias que não há qualquer artificialidade na interpretação do progresso da guerra em termos de psicologia de grupo. Involuntariamente deu o mais forte alívio às verdadeiras características do Estado e a sua aliança íntima com a guerra. Forneceu aos inimigos da guerra e aos críticos do Estado os argumentos mais contundentes possíveis. A nova paixão pelo ideal do Estado pôs em movimento e estimulou as forças que ameaçam materialmente reformar o Estado. Mostrou que aqueles que estão realmente decididos a acabar com a guerra de que o problema não é simplesmente o de terminar uma guerra que acabará com as guerras.

Pois a guerra é uma das complexas maneiras pelas quais uma nação age, e age dessa forma por uma compulsão espiritual que a empurra, talvez contra todos os seus interesses, contra todos os seus reais desejos e contra todos os valores que realmente preza. São os Estados que fazem guerra e não as nações, e o próprio conceito de guerra está ligado necessariamente ao ideal do Estado. Por séculos as nações não fizeram guerras; na verdade, os únicos exemplos históricos de nações em guerra foram as grandes invasões bárbaras ao sul da Europa, as invasões à Rússia pelo Oriente e, talvez, a varredura perpetrada pelo Islã através norte da África, até a Europa, após a morte de Maomé. E essas guerras se deveram à expansão de tribos migratórias ou a chama do fanatismo religioso. Talvez esses grandes movimentos mal possam ser chamados de guerras, uma vez que guerras implicam a arregimentação e a liderança do povo; de fato, necessitam do Estado. Antes da instituição na Europa dessas organizações, enormes conflitos entre nações — nações, isto é, como grupos culturais — eram impensáveis. É absurdo supor que, por séculos, pudesse haver qualquer possibilidade de que um povo se mobilizasse em massa (com seus próprios líderes, e não com os líderes de seus devidamente constituídos Estados) e saísse de suas fronteiras para empreender uma guerra contra um povo adversário. As guerras dos exércitos revolucionários da França foram claramente em defesa da liberdade, que sofria ataques, e, além disso, claramente não foram direcionadas contra outros povos, mas contra os governos autocráticos que se uniam para esmagar a Revolução. Não há exemplo na história de uma guerra genuinamente nacional. Há exemplos de defesas nacionais, entre civilizações primitivas, tais como os povos balcânicos, contra intoleráveis invasões por déspotas e opressores vizinhos. Mas guerra, como tal, não pode acontecer a não ser num sistema de competição entre Estados, os quais se relacionam uns com os outros através dos canais diplomáticos.

A guerra é uma função desse sistema de Estados, e não poderia ocorrer não fosse ele. Nações organizadas para administração interna, nações organizadas como federações de comunidades livres ou nações organizadas de qualquer forma que não a da centralização política de uma dinastia, ou de descendentes reformados de uma dinastia, não poderiam empreender guerras umas com as outras. Elas não só não teriam motivos para entrar em conflito, como também não teriam capacidade de reunir a concentração de forças necessária para a efetividade de uma guerra. Poderiam haver todos os tipo de saques amadores, poderiam haver expedições guerrilheiras de grupo contra grupo, mas não seria possível haver a terrível guerra em massa do Estado nacional, aquela exploração da nação pelos interesses do Estado, aquele abuso das vidas e dos recursos nacionais que é a guerra moderna.

Não há nenhum exagero na afirmação de que a guerra é uma função de Estados e não de nações, de que, de fato, é a função principal dos Estados. A guerra é algo artificial. Não é a inocente explosão espontânea da belicosidade do bando; não é mais primária que uma religião formal. A guerra não pode existir sem um establishment militar, e um establishment militar não pode existir sem uma organização estatal. A guerra somente possui sua antiquíssima tradição e hereditariedade porque o Estado tem uma longa tradição e hereditariedade. Mas são inseparáveis e funcionalmente unidos. Nós não podemos lutar contra a guerra sem implicitamente lutar contra o Estado. E nós não podemos esperar ou tomar medidas para que esta guerra seja uma guerra para acabar com todas as guerras, a não ser que ao mesmo tempo tomemos medidas para acabar com o Estado em sua forma tradicional. O Estado não é a nação, e o Estado pode ser modificado, e até mesmo abolido em sua presente forma, sem causar danos à nação. Pelo contrário, com o fim do domínio do Estado, as genuínas forças vitalizadoras da nação serão liberadas. Se a função principal do Estado é a guerra, então o Estado deve sugar da nação grande parte de suas energias para aplicar em estéreis propósitos de defesa e agressão. Ele desperdiça ou literalmente destrói tanto quanto pode da vitalidade da nação. Ninguém negará que a guerra é um vasto complexo de forças mutiladoras e destruidoras da vida. Se a função principal do Estado é a guerra, então ele está preocupado principalmente com a coordenação e com o desenvolvimento das forças e técnicas aplicáveis à destruição. E isso não significa somente a real e potencial destruição do inimigo, mas da própria nação doméstica também. Pois a própria existência de um Estado num sistema de Estados indica que a nação está sempre em risco de guerras e invasões, e o desvio das energias para objetivos militares significa uma mutilação dos processos produtivos e vitalizadores da vida nacional.

Toda essa organização de energias e técnicas mortíferas não é um processo natural, mas bastante sofisticado. Particularmente nas nações atuais, embora também ao longo da história moderna da Europa, não poderia jamais existir sem o Estado. Pois não atende às demandas de nenhuma outra instituição, não segue os desejos de nenhum grupo religioso, industrial ou político. Se a demanda por uma organização e um establishment militar não advém dos oficiais do Estado, mas do público, é apenas daquela parte do público obcecada pelo Estado, daqueles grupos que têm mais entusiasmo pelo ideal do Estado. E, neste país, nós tivemos a evidência indubitável de quão fracos podem ser os oficiais do Estado de mentalidade pacífica frente a uma obsessão das classes significativas pelo Estado. Se um poderoso setor das classes significativas é mais intensamente afetado pelas atitudes do Estado, infalivelmente fará com que o governo se adapte aos seus desejos, fazendo-o agir novamente como a incorporação do Estado que finge ser. Em todo país nós vemos grupos mais leais que o rei — mais patriotas que o governo: os ulsterites na Grã-Bretanha, os junkers na Prússia, a a_ction française_ na França, nossos patrioteers na América.

O militarismo expressa os desejos e satisfaz o maior impulso desta classe somente. As outras classes, deixadas por si mesmas, têm necessidades, interesses e ambições demais para se preocuparem com um jogo tão dispendioso e destrutivo. O grupo obcecado pelo Estado, porém, é capaz de controlar os instrumentos estatais ou de intimidar aqueles que detêm o controle, de forma que a ele seja possível fazer uso da força coletiva para impor um programa militar às classes avessas e relutantes. O idealismo estatal se impregna por todas as camadas da sociedade; coopta grupos e indivíduos na exata proporção do prestígio da classe dominante. Assim nós temos o bando se movendo entre dois extremos, com os patriotas militaristas de um lado, que pouco se distinguem em atitude e ânimo dos mais reacionários Bourbons de um Império, e os grupos de trabalhadores desqualificados de outro, que não possuem qualquer senso de Estado. Mas o Estado age como um todo, e a classe que controla os instrumentos de governo pode fazer as ações efetivas da massa se alterarem como um todo. O bando não é realmente como um todo, emocionalmente. Porém, por meio de uma engenhosa mistura de adulação, agitação e intimidação, o bando é moldado de forma a se tornar uma unidade mecânica, senão um todo espiritual. Aos homens se diz simultaneamente que eles ingressarão no serviço militar por vontade própria, como um honorável sacrifício pelo bem-estar do país, e que se não entrarem, serão caçados e punidos com as mais horríveis penalidades; e sob a mais indescritível confusão de orgulho democrático com medo pessoal, submetem-se à destruição das próprias fontes de sustento, senão das próprias vidas, de uma forma que teria anteriormente parecido a eles tão absurda a ponto de ser inacreditável.

Neste grande mecanismo de bando, divergências são como areia na lavoura. O ideal do Estado é principalmente um tipo de empurrão animal cego rumo à unidade militar. Qualquer divergência dessa unidade leva o impulso à destruição. A dissidência é rapidamente proibida, e o governo, apoiado pelas classes significativas e por aquelas que, em todas as localidades, mesmo nas minúsculas, identificam-se com elas, avança contra os foras-da-lei, desconsiderando o valor deles para outras instituições da nação ou o efeito que a perseguição pode ter sobre a opinião pública. O bando se divide entre caçadores e caçados, e a empresa da guerra se torna não somente um jogo técnico, mas também um esporte.

Não se deve jamais esquecer que as nações não declaram guerra umas às outras, nem mesmo no sentido mais estrito são as nações que se enfrentam. Muito se tem falado que as guerras modernas são guerras de povos inteiros, não de dinastias. Mas não é porque a nação está arregimentada e porque seus recursos estão sendo direcionados à guerra que o país enquanto país está lutando. É o país organizado como um Estado que está lutando, e somente como um Estado poderia lutar. Então, literalmente, são Estados que fazem guerras uns com os outros, não povos. Governos são os agentes dos Estados, e são os governos que declaram guerra uns contra os outros, agindo de acordo com os interesses do grande ideal do Estado que representam. Não há caso conhecido nos tempos modernos de povos sendo consultados ao início de uma guerra. O presente clamor por um “controle democrático” da política externa indica o grau pelo qual, mesmo na mais democrática das nações modernas, a política externa tem sido uma possessão privada secreta do braço executivo do governo.

Mesmo que os povos sejam plenamente representados por seus Parlamentos e Congressos em todas as questões políticas internas, nunca foi possível dizer que esses corpos populares tenham agido, a não ser como ratificadores mecânicos da vontade do Executivo. A formalidade pela qual os Parlamentos e Congressos declaram guerra é a menor das tecnicalidades. Antes que tal declaração ocorra, o país terá sido levado à beira da guerra pela política internacional do Executivo. Uma longa série de medidas será tomada, cada uma delas comprometendo mais o insuspeitoso país a uma guerra, sem qualquer consulta ao povo ou a seus representantes. Quando a declaração de guerra é finalmente pedida pelo Executivo, o Parlamento ou o Congresso não poderiam recusá-la sem reverter o curso da história, sem repudiar se vinha representando aos olhos dos outros Estados como símbolo da vontade e do ânimo da nação. Repudiar um Executivo em tal momento equivaleria a admitir para todo o mundo que o país foi grosseiramente enganado por seu próprio governo, que o país, por um descuido quase criminoso, permitiu que seu governo o comprometesse a gigantescas iniciativas, as quais o país não tinha qualquer disposição de assumir. Nessa crise, mesmo um Parlamento que representa, nos mais democráticos Estados, o homem comum e não as classes significativas, as que mais estimam o ideal do Estado, alegremente apoiará a política externa que pouco compreende e votará quase que unanimemente por uma incalculável guerra, na qual a nação poderá ser levada à ruína. Por esse motivo o referendo que foi defendido por algumas pessoas como um teste do sentimento americano em relação à entrada na guerra foi considerado, mesmo por sérios democratas, algo de certa forma inapropriado. Os dados haviam sido jogados. A vontade popular poderia apenas desordenar e confundir monstruosamente a majestosa marcha da política estatal em sua nova cruzada pela paz no mundo. O irresistível ideal do Estado tomou o controle das almas dos homens. Ao passo que, até ali, era irrepreensível a expressão em palavras e atos de uma posição neutra, dali em diante se tornaria o mais horrível crime permanecer neutro, pois assim o Estado havia decidido. O meio-oeste dos Estados Unidos, que nutria forte agitação pacifista em nossos tempos de neutralidade, se tornou em poucos meses beligerante na igual proporção de seu sentimento anterior. A mentalidade do bando seguiu fielmente a mentalidade do Estado e, com os pedidos de um referendo logo esquecidos, o país chegou à universal conclusão de que, uma vez que seu Congresso havia formalmente declarado guerra, a própria nação havia, da mais solene e universal forma, idealizado e ocasionado toda a situação.

A opressão das minorias justificava-se porque elas resistiam perversamente à racionalmente construída e solenemente declarada vontade da maioria da nação. A coalescência de opiniões, que se tornou inevitável no momento em que o Estado passou a adotar algumas medidas de guerra, foi interpretada como uma decisão popular anterior à guerra, e a desinclinação a se curvar ao bando foi tratada como um ato monstruosamente antissocial. De forma que o Estado, que havia vigorosamente resistido à ideia de um referendo e se agarrou ferozmente, e com total sucesso, a seu autocrático e absoluto controle da política externa, tinha o prazer de ver o país, em poucos meses, tomado por uma impressão retrospectiva de que um genuíno referendo havia ocorrido. Quando um país se envolve com essas atitudes estatais, sua memória apaga; não apenas pensa ter aceitado, mas pensa ter ele mesmo desejado toda as políticas e táticas de guerra. As classes significativas, com seus satélites, se identificam com o Estado, de maneira que o que o Estado, através da agência do governo, desejou, esta maioria imagina ela própria ter desejado.

Tudo isso serve para mostrar que o Estado representa todas as forças autocráticas, arbitrárias, coercitivas e beligerantes de um grupo social; é um tipo de conjunto de tudo que há de mais degradante no livre espírito criativo moderno, no sentimento de vida, de liberdade e da busca pela felicidade. A guerra é o alimento do Estado. Somente quando o Estado está em guerra a sociedade moderna funciona com aquela unidade de sentimento, com uma acrítica devoção patriótica, com aquela cooperação de serviços, que sempre foram os ideais dos admiradores do Estado. Com os ataques das ideias democráticas, contudo, a moderna República não pode ir à guerra com as velhas concepções autocráticas e mortalmente beligerantes. Se um bem sucedido ânimo de guerra requer um renascimento dos ideais do Estado, eles só podem ressurgir, sob formas democráticas, com essa retrospectiva convicção de controle democrático sobre a política externa, de desejo democrático pela guerra, e, particularmente, com essa identificação da democracia com o Estado. Quão degenerado o antigo Estado devia ser, contudo, é indicado pelas leis contra sedição e pela atitude do governo em relação à política externa. Uma das primeiras exigências dos mais prescientes democratas nas democracias da Aliança era a de que a diplomacia secreta deveria acabar. Percebia-se que a guerra era tornada possível através de uma teia de acordos secretos entre Estados, alianças que eram feitas por governos sem nem sombra do apoio popular, ou mesmo sem o conhecimento popular, e compromissos vagos, pouco inteligíveis, que dificilmente chegavam ao nível de um acordo ou de um tratado, mas que se mostrava obrigatório no evento. Certamente, disseram esses pensadores democratas, a guerra não pode ser evitada a não ser que esse sistema diplomático secreto seja destruído, esse sistema pelo qual o poder, a riqueza e a humanidade de uma nação podem ser transferidos a uma nação aliada em alguma crise futura. Acordos que afetam as vidas de povos inteiros devem ser feitos, não por governos, mas pelos próprios povos, ou, ao menos, por seus representantes em total clareza e publicidade.

Tal exigência de um “controle democrático da política externa” parecia axiomático. Mesmo se o país fosse levado à guerra por passos dados secretamente e anunciados ao público somente após serem consumados, sentia-se que a atitude do Estado americano em relação à política externa era apenas uma relíquia dos velhos tempos e seria superada na nova ordem. O próprio Presidente americano, a esperança liberal do mundo, havia exigido, aos olhos do mundo, uma diplomacia aberta, com acordos firmados livre e abertamente. Teria isso significado uma genuína transferência de poder desta crucial função do Estado do governo para o povo? De forma alguma. Quando a questão recentemente veio a debate no Congresso, e as implicações de uma discussão aberta foram consideradas, com os desejos pesados, o Presidente demonstrou sua desaprovação sem qualquer ambiguidade. Ninguém jamais acusou o Sr. Wilson de não ser um idealista do Estado, e quando quer que as aspirações democráticas levassem seus ideais muito além da órbita estatal, se poderia esperar que ele reagisse vigorosamente. Aqui havia um caso de claro conflito entre o idealismo democrático e o ponto principal do conceito de Estado. Tendo sido ele ou não impensadamente levado a estimular uma diplomacia aberta em seu programa liberalizante, quando suas implicações se tornaram claras a ele, ele demonstrou como a ideia havia sido em sua mente apenas um instrumento para acentuar o papel redentor dos EUA. Ele não havia pensado na genuína diplomacia aberta como uma séria técnica pragmática. Como poderia? Pois o último ponto de poder do Estado é sua política externa. É com a política externa que o Estado age mais concentradamente como o bando organizado, com o sentido mais completo de poder agressivo, com a mais livre arbitrariedade. Na política externa, o Estado é ele mesmo. Pode-se dizer que os Estados, em relação uns aos outros, estão em constante estado de guerra latente. A “paz armada”, uma expressão tão familiar antes de 1914, era uma descrição acurada da relação normal dos Estados quando eles não estão em guerra. De fato, não é demais dizer que a relação normal dos Estados é a guerra. A diplomacia é uma guerra dissimulada, na qual os Estados pretendem alcançar através de trocas e intrigas, pela malícia perspicaz, os objetivos que teriam que ganhar de maneiras mais rudes através da guerra. A diplomacia é usada enquanto os Estados se recuperam de conflitos em que se exauriram. É a troca de gentilezas e concessões de valentões exaustos enquanto se levantam do chão e lentamente recuperam suas forças para começar novamente uma luta. Se a diplomacia fosse um equivalente moral da guerra, um estágio mais alto do progresso humano, um meio inestimável pelo qual fazer as palavras prevalecerem em vez das bombas, o militarismo teria dado lugar a ela. Mas, por ser um mero substituto temporário, a mera aparência da guerra sob outra forma, um efeito substituto é quase exatamente proporcionado pela força armada por trás dela. Quando ela fracassa, o recurso é o apelo imediato às armas, que até então estavam abaixadas. Uma diplomacia que representasse as forças populares democráticas em suas manifestações não-estatais não seria diplomacia. Não seria melhor do que as comissões ferroviárias ou educacionais que são enviadas de um país a outro com um propósito construtivo racional. O Estado, agindo como um ideal diplomático militar, está eternamente em guerra. Da mesma forma que ele deve agir arbitrariamente e autocraticamente em tempos de guerra, deve agir em tempos de paz neste papel particular, onde age como uma unidade. Controle unificado é necessariamente controle autocrático.

O controle democrático da política externa, portanto, é uma contradição em termos. A discussão aberta destrói a rapidez e a precisão das ações. O gigante Estado é paralisado. O Sr. Wilson permanece com seu ideal de Estado ao mesmo tempo em que deseja eliminar a guerra. Ele deseja tornar o mundo seguro para a democracia tanto quanto ideal para a diplomacia. Quando os dois estão em conflito, seu claro insight político, seu idealismo do Estado, leva-o a considerar que são os inocentes valores democráticos que devem ser sacrificados. O mundo deve primeiramente ser tornado seguro para a diplomacia. O Estado não deve ser diminuído.

O que é o Estado essencialmente? Quanto mais de perto o examinamos, mais místico e pessoal se torna. Podemos perceber que a nação é um grupo social definido, com atitudes e qualidades exatas o suficiente para significar algo. Podemos ver que o governo é uma certa organização de funções ordenadoras, um mecanismo de criação e execução de leis. A administração é um grupo reconhecível de funcionários políticos, temporariamente com o controle do governo. Mas o Estado é uma ideia que está por trás de todas essas outras, eterna, santificada, e dela o governo e a administração pensam ganhar seus sopros vitais. Mesmo a nação, especialmente em tempos de guerra - ou, pelo menos, suas classes significativas — considera que deriva sua autoridade e seus objetivos da ideia de Estado. Nação e estado mal são diferenciados, e os fatos concretos, práticos e aparentes submergem dentro de um símbolo. Nós não reverenciamos nosso país, mas a bandeira. Nós podemos criticar severamente nosso país, mas é perigoso que desrespeitemos a bandeira. É a bandeira e o uniforme que fazem com que o coração do homem bata mais alto e que o enche de emoções nobres, não o pensamento e as pias esperanças de que os EUA são uma nação livre e esclarecida.

Não se pode dizer que o objeto de emoção seja o mesmo, porque a bandeira é um símbolo da nação, de forma que ao reverenciar a bandeira americana estejamos reverenciando a nação. Pois a bandeira não é um símbolo do país como um grupo cultural, que segue certos ideais de vida, mas meramente um símbolo do Estado político, inseparável de seu prestígio e expansão. A bandeira é mais intimamente conectada com as conquistas militares, com a memória militar. A história patriótica de uma nação é somente a história de suas guerras, isto é, do Estado em sua maior vivacidade e em seu mais glorioso funcionamento. Então, ao respondermos ao apelo da bandeira, estamos respondendo ao apelo do Estado, ao símbolo do bando organizado como um corpo ofensivo e defensivo, consciente de sua valentia e de sua mística força coletiva.

Até as autoridades da presente administração a quem se concedeu controles autocráticos sobre a opinião pública sentem, embora não sejam capazes de formalizar filosoficamente, essa distinção. Declarou-se oficialmente que não se deve considerar que as horríveis penalidades contra opiniões sediciosas devem inibir críticas legítimas, isto é, partidárias, da administração. Uma distinção é feita entre administração e governo. Acuradamente se sugere que a administração é um grupo temporário de políticos partidários em comando do mecanismo governamental, executando as místicas políticas do Estado. A maneira pela qual operam esse mecanismo pode ser livremente discutida e combatida por seus adversários políticos. O mecanismo do governo também pode ser legitimamente alterado, em caso de necessidade. O que não se pode discutir ou criticar é a mística política em si ou os motivos pelos quais o Estado adota tal política. O Presidente, é verdade, fez certas distinções partidárias entre candidatos em relação ao apoio ou ao não-apoio à administração, mas o que ele pretende distinguir é entre o apoio e o não-apoio às políticas do Estado como foram fielmente executadas pela administração. Certas medidas tomadas pela administração foram idealizadas diretamente para aumentar o vigor do Estado, tais como a as leis de alistamento obrigatório ou de espionagem. Outras tinham relação meramente com o mecanismo. Opor-se às primeiras medidas era o mesmo que se opor ao Estado e, portanto, era intolerável. Opor-se às segundas era opor-se ao falível julgamento humano e, assim, embora pudesse ser alvo de reprovação, não se deveria ser interpretado como um suicídio político.

A distinção entre governo e Estado, contudo, não tem sido tão cuidadosamente observada. Em tempos de guerra, é natural que o governo, como o depositário da autoridade, seja confundido com o Estado ou com a mística fonte de autoridade. Você não pode ferir a ideia mística que é o Estado, mas pode interferir nos processos de governo. De forma que os dois se identificam na mente do público, e qualquer desprezo ou oposição em relação ao mecanismo de governo é considerado equivalente a um desprezo pelo sagrado Estado. O Estado, sente-se, está sendo ferido em seu leal substituto, e a emoção pública corre apaixonadamente para defendê-lo. Ela torna até mesmo qualquer crítica à forma de governo um crime.

A inseparável união do militarismo ao Estado é notoriamente mostrada por aquelas leis que enfatizam a interferência no Exército e na Marinha como o mais grave dos crimes sediciosos. Pragmaticamente, um caso de sabotagem capitalista ou uma greve numa indústria de guerra parecem ser muito mais perigosos ao prosseguimento bem sucedido da guerra do que os esforços isolados e inefetivos de um indivíduo para evitar o recrutamento. Mas na tradição do ideal do Estado, essa interferência industrial na política nacional não é identificada como um crime contra o Estado. Ela pode ser objetada; pode ser tomada, racionalmente, como um impedimento da maior gravidade. Porém, não é sentida naqueles lugares obscuros da mente do bando que ditam a identidade do crime e estabelecem suas punições proporcionais. O Exército e a Marinha, no entanto, são os próprios braços do Estado; neles, flui seu mais precioso sangue. Paralisá-los é o mesmo que tocar no próprio Estado. E a majestade do Estado é tão sagrada que mesmo tentar essa paralisia é um crime igual a uma greve de sucesso. A vontade é considerada suficiente. Muito embora o indivíduo, em seu esforço para impedir o recrutamento, vá fracassar total e lamentavelmente, ele não deverá ser poupado. Que a cólera do Estado caia sobre ele por sua irreverência! Mesmo que ele não tente nenhuma ação efetiva, mas apenas expresse sentimentos que incidentalmente levem de forma indireta alguém a não se alistar, ele é culpado. Os guardiães do Estado não perguntam se algum efeito real surgiu a partir desse perverso desejo. É suficiente que o desejo exista. Quinze ou vinte anos de prisão não são considerados suficientes para tal sacrilégio.

Essas atitudes e essas leis, que afrontam a todo princípio da razão humana, não existem por acidente e nem são resultados da histeria causada pela guerra. São consideradas justas, apropriadas e belas por todas as classes que possuem o ideal do Estado, e expressam somente um extremo da saúde e do vigor na reação do Estado a seus inimigos.

Tais atitudes são inevitáveis por surgirem através dos devotos do Estado. Pois o Estado é um símbolo pessoal e místico, e só pode ser compreendido por meio da investigação de sua origem histórica. O Estado moderno não é o produto racional e inteligente de homens modernos que desejam viver harmoniosamente juntos, com a segurança de suas vidas, propriedades e opiniões. Não é uma organização que tenha sido idealizada como um meio pragmático para atingir um objetivo social desejável. Todo o idealismo que nós fomos educados para atribuir ao Estado é fruto de nossas imaginações retrospectivas. O que ele nos faz para benefício e segurança da vida, faz incidentalmente, como subproduto e desenvolvimento de suas funções originais, não porque em determinado tempo os homens ou as classes desejaram com total consciência e consideração. É muito importante que ocasionalmente levantemos o incorrigível véu de idealismo ex post facto pelo qual nos jogamos um brilho de racionalização sobre o que é o Estado e fingimos, no êxtase da vaidade social, que inventamos pessoalmente e estabelecemos pela glória de Deus e do homem as respeitáveis instituições que vemos ao nosso redor. As coisas são o que são, e chegam até nós com todos os seus erros e malevolências. A filosofia política pode nos deliciar com fantasias e convencer aqueles de nós que precisam de ilusões para viver que o que existe é uma cópia justa e aproximada — cheia de falhas, é claro, mas bastante sólida e sincera — daquela sociedade ideal que podemos nos imaginar criando. A partir disso, é só mais um passo até a suposição tácita de que de alguma forma nós tivemos alguma participação em sua criação e somos responsáveis por sua manutenção e santidade.

Nada é mais óbvio, entretanto, que o fato de que todos nós chegamos à sociedade como em algo no que não tivemos qualquer participação. Nós não temos nem mesmo a vantagem, como têm aquelas pequenas almas ainda não nascidas no Pássaro Azul, da consciência antes de tomarmos nossos rumos na terra. Quando nos apercebemos, estamos presos numa rede de costumes e atitudes, nossos maiores desejos e interesses foram carimbados em nossas mentes, e quando saímos da idade de tutelagem e chegamos aos anos de discernimento, quando podemos concebivelmente influenciar a forma das instituições sociais, a maior parte de nós foi tão moldada pela sociedade e pela classe em que vivemos que mal temos qualquer distinção entre nós, enquanto indivíduos capazes de expressar julgamentos e desejos, e nosso ambiente social. Nós fomos moldados com tanto sucesso que aprovamos o que nossa sociedade aprova, desejamos o que nossa sociedade deseja e adicionamos ao grupo nossa própria inércia apaixonada contra a mudança, contra o esforço da razão e contra a aventura da beleza.

Todos nós, sem exceção, nascemos numa dada sociedade, da mesma forma que são dadas a fauna e a flora de nosso ambiente. A sociedade e suas instituições são, para o indivíduo que ingressa nelas, um fenômeno tão natural quanto as condições do tempo. Não há, portanto, nenhuma santidade no Estado, assim como não há santidade no tempo. Nós podemos nos curvar perante ele, da mesma forma que nossos ancestrais se curvaram perante o sol e a lua, mas apenas porque algo primitivo dentro de nós se satisfaz com essa atitude, não porque há qualquer coisa inerentemente reverencial na instituição cultuada. Assim que o Estado começa a funcionar e que uma grande classe percebe seus interesses e sua expressão de poder na manutenção dele, a classe dominante pode compelir a obediência de quaisquer minorias desinteressadas. O Estado, então, se torna um instrumento pelo qual o poder de todo o bando é manipulado em benefício de uma classe. Os dominadores logo aprendem a lucrar com a reverência que o Estado produz na maioria e a transforma numa resistência geral à diminuição de seus privilégios. A santidade do Estado passa a se identificar com a santidade da classe dominante, e esta pode permanecer no poder sob a impressão de que ao obedecer e servir a ela, estamos obedecendo e servindo à sociedade, à grande coletividade de todos nós.

II.

Uma análise do Estado nos levaria de volta aos primórdios da sociedade, ao complexo de impulsos religiosos, pessoais e de rebanho que encontrou expressão em tantas formas. O que nos interessa é o Estado americano, como ele se comporta e como os americanos se comportam em relação a ele neste século XX, e entender que não temos que voltar mais longe do que a monarquia inglesa inicial da qual nossa República americana é descendente direta. Quão direta e verdadeira é essa linha de descendência quase ninguém percebe. As pessoas que acreditam na distinção mais nítida entre democracia e monarquia mal conseguem apreciar como uma instituição política pode passar por tantas transformações e, no entanto, permanecer a mesma. No entanto, um rápido olhar deve mostrar-nos que em toda a evolução da monarquia inglesa, com todas as suas ampliações e revoluções, e mesmo com o seu salto através do mar para uma colônia que se tornou uma nação independente e depois um Estado poderoso, as mesmas funções estatais e atitudes foram preservadas essencialmente inalteradas. As mudanças foram mudanças de forma e não de espírito interior, e a alargada extensão da democracia não foi um processo pelo qual o Estado foi essencialmente alterado para atender à mudança de classes, à extensão do conhecimento, às necessidades da organização social, mas uma mera expansão elástica pela qual o velho espírito do Estado absorveu facilmente o novo e se ajustou com sucesso às suas exigências. Nem por uma vez foi seriamente abalado. Apenas uma ou duas vezes foi seriamente desafiado, e cada vez rapidamente recuperou seu equilíbrio e prosseguiu com todas as suas atitudes e crenças reforçadas pelo distúrbio.

O Estado democrático moderno, sob esse prisma, não é, portanto, uma criação brilhante e racional de um novo dia, a forma política sob a qual os grandes povos devem viver saudavelmente e livremente em um mundo moderno, mas o último descendente decrépito de um estoque antigo e cheio, que ficou tão exausto que mal reconhece seu próprio ancestral, na verdade o repudia enquanto se apega tenazmente ao espírito arcaico e irrelevante que tornou esse ancestral poderoso, e resiste às novas garrafas para o novo vinho que sua saúde como uma sociedade moderna precisa desesperadamente. Uma conclusão tão abrangente poderia ter sido questionada em relação ao Estado americano, se não fosse a guerra, que forneceu uma longa e bela série de exemplos da tenacidade do ideal do Estado e de seu domínio pelas classes significativas da nação americana. A guerra é o alimento do Estado e é durante a guerra que se entende melhor a natureza dessa instituição. Se a democracia norte-americana durante a guerra agiu com uma veracidade quase incrível, ressuscitou-se com uma fúria quase alegre o Estado sonolento, podemos concluir que a tradição do passado não foi quebrada e que a República americana é a descendente direta do Estado Inglês.

E qual era a natureza desse antigo Estado inglês? Antes de tudo, era uma monarquia absoluta medieval, surgindo do caos feudal, que representara o primeiro esforço de ordem após a turbulenta assimilação dos bárbaros invasores pela civilização romana cristianizadora. O senhor feudal evoluiu do guerreiro invasor que havia conquistado ou recebido terras e as mantinha, almas e usufruto delas, como feudo para algum senhor superior a quem ajudou na guerra. Seus próprios servos e vassalos trocavam serviço fiel pela proteção que o guerreiro com seu bando organizado podia lhes dar. Onde um chefe invasor mantinha seu poder sobre seus tenentes menores, um reino insignificante surgiria, como na Inglaterra, e um rei inquieto e ambicioso poderia estender seu poder sobre seus vizinhos e consolidar os reinos insignificantes apenas para cair diante do poder armado de um invasor como William, o Conquistador, que traria todo o reino sob seus calcanhares. O Estado moderno começa quando um príncipe assegura domínio quase indiscutível sobre território e pessoas bastante homogêneas e se esforça para fortalecer seu poder e manter a ordem que conduzirá à segurança e influência de seus herdeiros. O Estado em seu início é uma monarquia pura e não diluída; é poder armado, culminando em uma única cabeça, inclinado para um objeto primário, a redução à sujeição, à lealdade incondicional e não qualificada de todas as pessoas de um determinado território. Esse é o esforço principal do Estado, e é um esforço que o Estado nunca perde, através de todas as suas inúmeras transformações.

Quando a subjugação foi adquirida, o Estado moderno havia começado. No rei, os súditos encontraram sua proteção e seu senso de unidade. De seu lado, ele era um guerreiro temível, ambicioso e obstinado, obtendo o domínio supremo que ele ansiava. Mas deles, ele era um símbolo do rebanho, o emblema visível daquela segurança de que precisavam e pela qual se uniram gregariamente. Servos e vassalos, cuja segurança sob seus senhores mesquinhos fora rudemente destruída nos constantes conflitos pela supremacia, agora respiravam novamente sob a supremacia que exterminava essa anarquia local. Rei e o povo concordaram na sede de ordem, e a ordem se tornou a primeira função de cura do Estado. Mas, na manutenção da ordem, o rei precisava de oficiais da justiça; as velhas regras grupais de grupo para dispensar justiça tinham que ser codificadas, um sistema de lei formal elaborado. O rei precisava de ministros, que executariam sua vontade, extensões de seu próprio poder, pois uma máquina amplia o poder da mão de um homem. Assim, o Estado cresceu como uma diferenciação gradual do poder absoluto do rei, baseado na devoção de seus súditos e no controle de um bando militar, rápido e acoplado. A gratidão pela proteção e o medo do braço forte foram suficientes para produzir a lealdade do país ao Estado.

A história do Estado, então, é o esforço para manter essas prerrogativas pessoais de poder, o esforço para converter cada vez mais em lei estável as regras de ordem, as condições de vingança pública, a distinção entre classes, a posse de privilégios. Foi um esforço para converter o que era a princípio usurpação arbitrária, um uso perfeitamente aparente da força injustificada, no dado adquirido e no divinamente estabelecido. O Estado se move inevitavelmente na linha da ditadura militar ao direito divino dos reis. O que tinha que ser inicialmente imposto impensadamente passa a ser através do hábito social parecer o necessário, o inevitável. A aceitação inquestionável do Estado vem de séculos longos e turbulentos, quando o Estado foi desafiado e teve que lutar seu caminho para prevalecer. O estabelecimento do poder pessoal do rei - que era o primeiro Estado - teve que lidar com a insolência de barões hostis, que viam com muita clareza a origem adventícia da monarquia e não sentiam razão para que eles não devessem reinar. Conflitos entre o rei e seus parentes, brigas por herança, brigas por devolução de propriedades, ameaçavam constantemente a existência do novo Estado monárquico. A vontade de poder do rei necessária para sua satisfação absoluta, universalidade do controle político em seus domínios, assim como a Igreja Romana reivindicou a universalidade do controle espiritual sobre o mundo inteiro. E assim como papas rivais eram o produto inevitável de uma pretensão de soberania, reis e príncipes rivais disputavam aquela joia deslumbrante de poder indiscutível.

Não até o regime de Tudor surgir na Inglaterra, uma monarquia pessoal irresponsável nas linhas do ideal inicial do Estado, governando uma nação razoavelmente bem organizada e próspera. Os Stuarts não eram apenas fracos demais para herdar a fruição dos trabalhos de Guilherme, o Conquistador, mas cometeram o erro fatal de trazer à vista e à filosofia do público a ideia de Direito Divino implícita no Estado, e isso numa época em que um uma nova classe de nobres e burgueses do país alcançava riqueza e autoconsciência apoiada pelo zelo de uma religião teocrática e individualista. Cromwell certamente poderia, se tivesse continuado no poder, revisado o ideal do Estado, talvez completamente o transformado, destruindo os conceitos de poder pessoal e soberania universal, substituindo uma espécie de governo dos soviéticos presbiterianos sob a tutela de um czar celestial. Mas a Restauração trouxe de volta o antigo Estado sob uma forma peculiarmente frívola. A Revolução foi a mais simples mudança de monarcas a pedido de uma maioria protestante que insistia em garantias contra a recaída religiosa. A natureza intrínseca da monarquia como símbolo do Estado não foi de modo algum alterada. No lugar do monarca inepto que não podia liderar o Estado pessoalmente ou se concentrar nas prerrogativas reais, um círculo de cortesões administrava o Estado. Mas a direção deles consistia no interesse do monarca e do ideal tradicional, de modo que a corrente do Estado inglês não fosse quebrada.

O vangloriado Parlamento Inglês dos lordes e plebeus não possuía nenhuma vitalidade que enfraquecesse ou ameaçasse enfraquecer o ideal do Estado. Seu objetivo original era apenas facilitar o aumento das receitas do rei. Os nobres responderam melhor quando pareciam dar seu consentimento. Sua participação no governo real era subjetiva, mas a existência do Parlamento serviu para aplacar qualquer inquietação diante da autocracia do rei. As classes significativas dificilmente se rebelariam quando tivessem o privilégio de dar consentimento às medidas do rei. Sempre havia saída para o espírito rebelde de um poderoso lorde em revolta privada contra o rei. O único Parlamento que tentou seriamente governar fora e contra o rei precipitou uma guerra civil que terminou com a submissão efetiva do parlamento a uma autocracia mais descuidada e corrupta do que já se sabia. Na época de George III, o Parlamento era moribundo, totalmente não representativo, tanto das novas classes burguesas quanto dos camponeses e trabalhadores, uma mera paródia frívola de uma legislatura, desprezada tanto pelo rei quanto pelo povo. O rei era mais efetivamente o Estado e seus ministros, o governo, administrado em termos de seus caprichos pessoais, por homens cujo único interesse era intriga pessoal. O governo havia sido por muito tempo o que nunca deixou de ser - uma série de beliches e emolumentos no Exército, na Marinha e nos diferentes departamentos do Estado, para os representantes das classes privilegiadas.

O Estado de George III foi um exemplo do ideal mais arcaico do Estado inglês, a pura monarquia pessoal. A grande massa do povo havia caído na tradição secular de lealdade à coroa. As classes que poderiam ter sido inquietas pelo poder político foram aplacadas por uma demonstração de governo representativo e pela lucrativa oferta de cargos. O descontentamento mostrou-se apenas naqueles poucos elementos esclarecidos que não podiam evitar a ironia diante da pura irracionalidade de um Estado administrado nas velhas linhas heroicas de um soberano tão grotesco e de uma sucessão tão grotesca de ministros cortesões. Tal descontentamento não poderia, de maneira alguma, reunir força suficiente para uma revolução, mas a Revolução que estava prevista veio nos EUA, onde até o pigmento muito obviamente sombrio da representação parlamentar foi negado aos colonos. Tudo o que era vital no pensamento político da Inglaterra apoiou os colonos americanos em sua resistência ao governo desagradável de George III.

A Revolução Americana começou com certas esperanças latentes de que poderia se transformar em uma ruptura genuína com o ideal do Estado. A Declaração da Independência anunciou doutrinas que eram totalmente incompatíveis não apenas com a concepção secular do Direito Divino dos Reis, mas também com o Direito Divino do Estado. Se todos os governos derivam sua autoridade do consentimento dos governados, e se um povo tem direito, a qualquer momento que se torne opressivo, derrubá-lo e instituir outro que seja quase conforme aos seus interesses e ideais, a velha ideia da soberania do Estado é destruída. O Estado é reduzido ao trabalho caseiro de um instrumento para executar políticas populares. Se a revolução é justificável, um Estado pode até ser criminoso, por vezes, ao resistir à sua própria extinção. A soberania do povo não é mera frase. É um desafio direto à tradição histórica do Estado. Pois implica que a suprema santidade reside não no Estado, nem no seu agente, no governo, mas na nação, isto é, no país visto como um grupo cultural e não especificamente como um rebanho dominado pelo rei. O Estado torna-se então um mero instrumento, servo dessa vontade popular ou das necessidades construtivas do grupo cultural. A Revolução possuía, portanto, os ingredientes de um experimento moderno muito ousado - a fundação de uma nação livre que deveria usar o Estado para realizar seus vastos propósitos de subjugar um continente, assim como os exércitos dos colonos usavam armas para desassociar sua sociedade do governo irresponsável de um rei no exterior e seus ministros frívolos. A história do Estado poderia ter terminado em 1776, no que diz respeito às colônias americanas, e a nação moderna que ainda se esforça para se materializar nasceria.

Por algum tempo, parecia quase como se o Estado estivesse morto. Mas os homens que são libertados raramente sabem o que fazer com sua liberdade. Em cada colônia aquela semente fatal do Estado havia sido semeada; não poderia desaparecer. Prestígio e interesses rivais começaram a se fazer sentir. Medo de Estados estrangeiros, angústia econômica, discórdia entre classes, inevitável esgotamento físico e prostração do idealismo que se segue a uma guerra prolongada - todos combinados para colocar as classes responsáveis ​​dos novos Estados no clima de uma regressão ao ideal de Estado. Aparentemente, não há razão para que a mera falta de um Estado centralizado destrua a possibilidade de progresso na nova América libertada, desde que o ciúme e a rivalidade entre Estados possam ter sido destruídos. Mas não havia líderes para esse nacionalismo anti-Estado. Os sentimentos da Declaração permaneceram meros sentimentos. Nenhum esquema político construtivo foi construído sobre eles. O ideal do Estado, por outro lado, tinha líderes ambiciosos das classes financeiras, que viam na excessiva descentralização da Confederação muitas oportunidades para o controle da sociedade pelos elementos democráticos da classe baixa. Eles foram ameaçados por potências imperialistas externas e pela democracia interna. Pelo medo do primeiro, eles tendiam a exagerar a impossibilidade do segundo. Não havia inclinação para fazer do Estado uma escola onde as experiências democráticas pudessem ser elaboradas como deveriam. Eles não estavam dispostos a dar à reconstrução o termo que poderia ter sido necessário para construir esse nacionalismo verdadeiramente democrático. Seis anos curtos são um período curto para reconstruir um país agrícola devastado por uma guerra de seis anos. Os elementos populares nos novos Estados tiveram apenas que mostrar sua turbulência; eles não tiveram tempo de crescer. Os ambiciosos líderes das classes financeiras receberam uma convenção para discutir as controvérsias e os desajustes dos Estados, que os estavam clamando por uma revisão dos Artigos da Confederação e, depois, por um dos golpes de Estado mais bem-sucedidos da história, transformaram sua assembleia na fabricação de um novo governo nas linhas mais fortes do antigo ideal do Estado.

Essa nova Constituição, fabricada em sessão secreta pelos líderes das classes proprietárias e governantes, foi então submetida à aprovação dos eleitores, que somente com a manipulação mais experiente foi obtida, mas que foi suficiente para anular a corrente indignada de protesto daqueles elementos populares que viram os frutos da Revolução escapando deles. O sufrágio universal o mataria para sempre. Se as colônias libertadas tivessem a vantagem da experiência francesa diante deles, a promulgação da Constituição seria, sem dúvida, seguida por uma nova revolução, como quase aconteceu mais tarde contra Washington e os federalistas. Mas a ironia ineficaz do destino colocou em operação o maquinário do novo governo constitucional federalista no momento em que a Revolução Francesa começou e, quando aquelas grandes ondas de sentimentos jacobinos chegaram à América do Norte, o novo Estado federalista estava firme o bastante para resistir ao vendaval e à turbulência.

O novo Estado não era, portanto, o feliz símbolo político de um povo unido, que, estava a fim de formar uma união mais perfeita etc., mas a imposição de um Estado a um nacionalismo frouxo e crescente, que estava em condições de equilíbrio instável e talvez fosse necessário fertilizar apenas do exterior para desenvolver um genuíno experimento político em democracia. O preâmbulo da Constituição, como logo foi mostrado no voto popular hostil e mais tarde na revolta contra os federalistas, era uma esperança mais piedosa do que atual, uma bem-aventurança a ser realizada quando pela força da pressão do governo, a criação do idealismo, e mero hábito social, a população deve ser soldada e amassada em um Estado. Que isso foi o que aconteceu de maneira aguda, é visto no fato de que as origens um tanto chocantes e antidemocráticas do Estado americano foram quase completamente encobertas e a revelação é amargamente ressentida, por ninguém tão amargamente quanto as classes significativas que foram mais diligentes cultivando mitos e lendas patrióticas. A história americana, até onde entrou na emoção popular geral, segue essa linha. As colônias são libertadas pela Revolução de um rei tirano e se tornam Estados livres e independentes; seguem-se seis anos de paz impotente, durante os quais as colônias brigam entre si e revelam a fraqueza irremediável do princípio sob o qual estão trabalhando juntas; em desespero, o povo cria um novo instrumento e lança uma República livre e democrática, que foi e permanece - especialmente porque resistiu ao choque da guerra civil - a forma mais perfeita de governo democrático conhecida pelo homem, perfeitamente adequada para ser promulgada como um exemplo no século XX para todas as pessoas, e para ser espalhado pela propaganda e, se necessário, pela espada, em todas as regiões imperiais não regeneradas. Os historiadores modernos revelam a manifestadamente opiniões antidemocrática da Convenção. Mostram que os membros não apenas tinham um interesse econômico inconsciente, mas um interesse político franco em defender um Estado que deveria proteger as classes proprietárias contra a hostilidade do povo. Mostram como, de um ponto de vista, o novo governo tornou-se quase um mecanismo para superar o repúdio às dívidas, para colocar de volta em seu lugar um agricultor e uma pequena classe de comerciantes que os tempos instáveis ​​de reconstrução ameaçavam libertar, para restabelecer em uma base mais segura da santidade da propriedade e do Estado, sua supremacia de classe ameaçada por uma democracia que havia bebido demais na fonte da Revolução. Mas tudo isso causa pouca impressão na outra lenda da mente popular, porque perturba o senso de santidade do Estado e é essa rocha à qual o desejo do rebanho deve se apegar.

Todo menino de escola é treinado para recitar as fraquezas e ineficiências dos Artigos da Confederação. Considera-se axiomático que, sob eles, a nova nação estava caindo na anarquia e só foi salva pela sabedoria e energia da Convenção. Esses infelizes artigos tiveram de suportar a infâmia lançada sobre os não experimentados pelos radiantes e bem-sucedidos. A nação tinha que ser forte para repelir a invasão, forte para pagar até o último centavo de cobre amado as dívidas dos proprietários e providentes, forte para impedir que os desprotegidos e os imprevistos usassem o governo para garantir sua própria prosperidade à custa de capital monetário. De acordo com os Artigos, os novos Estados estavam obviamente tentando se reconstruir com uma ternura alarmante para o homem comum empobrecido pela guerra. Ninguém sugere que a ansiedade dos líderes das classes dominantes até então inquestionáveis ​​desejasse a revisão dos Artigos e trabalhasse com tanto peso em um novo instrumento, não porque a nação estava falhando sob os Artigos, mas porque estava sendo bem-sucedida. Sem a intervenção dos líderes, a reconstrução ameaçou a tempo de transformar a nova nação em uma democracia agrária e proletária. É impossível prever o que teria se materializado em uma forma de sociedade muito modificada a partir do Estado antigo. Tudo o que sabemos é que, em um momento em que a corrente do progresso político estava na direção da democracia agrária e proletária, uma força hostil a ela tomou conta da nação e impôs-lhe uma forma poderosa contra a qual nunca conseguiria fazer mais do que luta cega. O vírus libertador da Revolução foi definitivamente eliminado e, a partir de agora, se funcionasse, teria que trabalhar contra o Estado, em oposição ao poder armado e respeitável da nação.

As classes proprietárias, sentadas firmemente na sela por seu golpe constitucional, certamente nunca perderam sua ascensão. O grupo particular de federalistas que projetou o novo mecanismo e desfrutou do privilégio de colocá-lo em movimento foi expulso em uma dúzia de anos pela democracia jeffersoniana que seus modos haviam ofendido tão profundamente. Mas a democracia jeffersoniana nunca significou na prática mais do que a substituição do governo dos cavalheiros do país pelo governo do capital da cidade. A verdadeira hostilidade entre seus interesses era pequena quando comparada à hostilidade de ambos em relação ao homem comum. Quando os dois foram varridos pela irrupção da democracia ocidental sob Andrew Jackson e o governo do homem comum apareceu por um tempo em suas formas menos desejáveis, foi bastante fácil para as duas classes proprietárias formar uma coalizão tácita contra eles. O novo Ocidente alcançou uma extensão do sufrágio e uma sensação jovial de ter se estabelecido politicamente, mas o domínio das classes antigas não foi seriamente desafiado. Suas disputas sobre uma tarifa eram assuntos de família, pois a tarifa não poderia afetar materialmente o homem comum do Oriente ou do Ocidente. Os capitalistas do leste e do norte logo viram a vantagem de apoiar o poder escravo de cavalheiros do sul do país, contra o pioneiro partido solo livre. O mau estado geral por parte dessa coalizão permitiu que um presidente de minoria solo livre do Ocidente assumisse o cargo e provocasse a Guerra Civil, que esmagou o poder dos escravos e deixou a capital do Norte em posse indiscutível de um campo contra o qual o pioneiro poderia fazer apenas esporadicamente revoltas ineficazes.

Desde a Guerra Civil até a morte de Mark Hanna, as classes industriais capitalistas possuídas seguiram uma carreira triunfal na posse do Estado. Em vários momentos, como em 1896, o país teve que ser salvo para eles de hordas rebeldes e desiludidas de pequenos agricultores, comerciantes e idealistas democráticos, que no transbordamento da prosperidade haviam sido espremidos na pequena extremidade do chifre. Mas, exceto por essas ameaças ocasionais, os negócios, ou seja, o capitalismo expansionista agressivo, tiveram quase quarenta anos para dirigir a República americana como uma reserva privada, ou laboratório, experimentando, desenvolvendo, desperdiçando, subjugando o conteúdo de seu coração, no meio de uma vasta sonolência de complacência, como nunca se viu e contrasta estranhamente com a dissidência espiritual e o pensamento revolucionário construtivo que ocorreu ao mesmo tempo na Inglaterra e no continente.

Essa era terminou em 1904 como uma rachadura da destruição, que despertou um povo inteiro para os dias modernos que haviam adormecido e pelos quais haviam se tornado consciente de maneira aguda e dolorosa dos males da sociedade em que dormiam e se arrependeram de cada ideia, programa, movimento, ideal, para retirá-los do pântano em que dormiram. A glória daquelas figuras brilhantes - capitães da indústria - saiu em uma escuridão sulfúrica. O chefe de Estado, que inventou em dogmatismo o que lhe faltava em filosofia, aumentou a confusão revivendo os Dez Mandamentos para fins políticos e colaborando com os iníquos. O mundo americano se lançou em um estado de dúvida, de consciência social despertada, de esforço pragmático para a salvação da sociedade. As classes dominantes - irritadas, confusas, perseguidas - fingiram com muito lamento que estavam perdendo o controle do Estado. Seus profetas inspirados proferiram advertências solenes contra a novidade política e o abandono dos frutos experimentados e testados da experiência.

Essas classes realmente tinham pouco a temer. Um sistema político que havia sido fundado no interesse da propriedade por seus próprios ancestrais espirituais e econômicos, que se enraizaram na vida do país por uma função de 120 anos, que foi apoiado por um sistema legal que voltou sem interrupção para a monarquia inglesa primitiva provavelmente não se desmoronaria diante da raiva de alguns agitadores, da desilusão de alguns sociólogos radicais ou dos ataques de minorias proletárias. Aqueles que passaram o tempo no interregno de Taft, que apenas continuaram a Presidência até encontrar um estadista para preenchê-lo, foram recompensados ​​pelo aparecimento da exigência da guerra, na qual a organização empresarial era imperativamente necessária. Eles foram capazes de fazer uma coalizão limpa e quase silenciosa com o governo. A massa da classe média preocupada, enigmática pela campanha contra os fracassos americanos, que às vezes se estendia quase ao ceticismo do próprio Estado americano, ficou muito contente em voltar à glorificação do ideal do Estado, sentir-se a respeito deles em guerra, as velhas armas protetoras, para retornar ao velho senso primitivo e robusto da onipotência do Estado, sua virtude, honra e beleza incomparáveis, afastando todas as velhas e desagradáveis ​​dúvidas e consternações.

Que a mesma classe que impôs sua constituição à nascente democracia proletária e agrária tenha se mantido até hoje indica quão leve foi o efeito real da Revolução. Quando essa mudança política foi consolidada no novo governo, verificou-se que havia uma mera transferência do poder da classe dominante através dos mares, ou melhor, que uma classe comercial dominante nas colônias conseguiu remover através de uma guerra travada em grande parte pelas massas, um vexatório domínio dos círculos irresponsáveis ​​de ministros que cercavam George III. As colônias apenas trocaram um sistema operado no interesse do comércio exterior de riqueza inglesa por um sistema operado no interesse do comércio da Nova Inglaterra e da Filadélfia e, mais tarde, da escravidão do sul. A ousada inovação de se livrar de um rei e estabelecer um Estado sem rei aparentemente não impressionou os fazendeiros de cabeça dura e os pequenos comerciantes com tanta força quanto seus defensores patrióticos. O ânimo da Convenção era tão obviamente monárquico que qualquer ordem que eles inventassem poderia ser apenas um rei muito pouco disfarçado. O compromisso pelo qual a presidência foi criada provou ser o meio pelo qual quase toda a massa de prerrogativas reais da realeza foi trazida e apresentada no novo Estado.

O presidente é um rei eleito, mas o fato de ser eleito provou ter muito menos importância no curso da evolução política do que o fato de ser pragmaticamente um rei. Era a intenção dos fundadores da Constituição que ele fosse eleito por um pequeno corpo de notáveis, representando as classes dominantes, que poderiam examiná-lo a cada quatro anos em uma nova eleição. Isso não foi inovação. Os reis costumam ser selecionados dessa maneira na história da Europa, e o imperador romano era regularmente escolhido por eleição. O fato de o mandato do presidente americano ser limitado mostra apenas a confiança que os fundadores sentiram na força de apoio de seu instrumento. Sua eleição nunca passaria das mãos dos notáveis ​​e, portanto, o cargo seria garantido por um fiel representante das demandas da classe alta. O que ele mais obviamente representava eram os interesses daquele órgão que o elegia, e não a massa das pessoas que ainda estavam sem privilégios. Pois o novo Estado começou sem nenhuma crença quixotesca no sufrágio universal. As qualificações de propriedade que estavam em vigor em todas as colônias foram mantidas. O governo era francamente uma função daqueles que mantinham um interesse concreto no bem público, na forma de propriedade visível. A responsabilidade pela segurança dos direitos de propriedade só poderia ser segura para aqueles que tinham algo a garantir. A participação na comunidade daqueles que mais ocupavam o cargo era obviamente maior.

Um dos maiores erros de visão política cometidos pelos sábios fundadores da Constituição foi supor que os vigilantes filiados à propriedade e à ordem pública permaneceriam uma classe homogênea. Washington, agindo estritamente como porta-voz do ideal unificado do Estado, depreciou o crescimento de partidos e facções que terrivelmente mantêm o Estado em turbulência ou ameaçam desmembrá-lo. Mas as políticas monárquicas e repressivas dos amigos de Washington rapidamente geraram um partido democrático da oposição que representava os interesses das classes urgentes, e o sistema partidário foi firmado no país. No momento em que o eleitorado conseguiu reduzir o colégio eleitoral a um mero gravador do voto popular, ou em outras palavras, ampliou a classe de notáveis ​​para todo o eleitorado proprietário de propriedades, os partidos estavam firmemente estabelecidos para continuar o processo seletivo, refinar e garantir o trabalho do colégio eleitoral. A liderança do partido tornou-se, e permanece desde então, o núcleo de notáveis ​​que determinam a presidência. O eleitorado, tendo conquistado uma vitória aparentemente democrática na destruição dos notáveis, encontra-se reduzido ao papel de mera ratificação ou seleção entre dois ou três candidatos, em cuja escolha eles têm apenas uma parcela nominal. O colégio eleitoral que se situava entre o eleitorado proprietário e o executivo com as prerrogativas de um rei, deu lugar a um órgão que era genuinamente um obstáculo à expressão democrática e muito menos responsável por seus atos. O núcleo de conselhos partidários que se tornou, após a redução do Colégio Eleitoral, os verdadeiros selecionadores dos presidentes, eram não oficiais, quase anônimos, totalmente não controlados pela população cujos governantes escolheram. Mais ou menos auto-escolhidos, ou escolhidos por grupos locais a quem eles dominavam, forneciam uma garantia muito mais segura de que o Estado deveria permanecer nas mãos das classes dominantes do que o antigo colégio eleitoral. Os conselhos partidários poderiam ser organizados livremente inteiramente fora da organização governamental, sem a supervisão do Estado ou o exame do eleitorado. Poderiam ser compostos pelos próprios líderes das classes proprietárias ou seus tenentes, que poderiam manter seu poder indefinidamente, ou pelo menos até serem destituídos por rivais no mesmo domínio encantador. Estavam pelo menos inteiramente a salvo do ataque do eleitorado oficialmente constituído, que, à medida que o sistema partidário se tornava mais moroso e mais firmemente estabelecido, descobriu que só podia votar nas listas criadas por conselhos desconhecidos por trás de um Partido imponente e todo-poderoso.

Assim que esse sistema foi organizado em uma hierarquia que se estendia da política nacional até as políticas estaduais e municipais, tornou-se perfeitamente seguro ampliar o eleitorado. Os clamores dos desapropriados ou dos menos desapropriados para participar da seleção de seu governo republicano democrático poderiam ser gentilmente aceitos sem pôr em risco, no mínimo, a supremacia das classes que os fundadores pretendiam ser supremas. A minoria estava agora ainda mais efetivamente protegida da maioria do que no antigo sistema, por mais indiretas que fossem as eleições. O eleitorado estava agora reduzido a um ratificador de ardósias, ambos comprometidos com o domínio da classe alta; o eleitorado poderia ter o sufrágio mais livre e universal, pois qualquer desejo de mudança política, qualquer vontade determinada de mudar o equilíbrio de classes seria obrigada a se registrar através das máquinas do partido. Não poderia fazer nenhum ataque frontal ao governo. E o maquinário do partido foi planejado diretamente para absorver e neutralizar esse choque popular, entregando ao eleitorado descontente uma pedra disfarçada quando pediu pão político e efetivamente esmagando qualquer terceiro que tentasse chegar ao governo, exceto através dos dois partidos do sistema.

O sistema partidário teve sucesso, é claro, além dos sonhos mais loucos de seus criadores. Relegou os fundadores da Constituição ao papel de teóricos doutrinários, amadores políticos. Justamente porque cresceu lentamente para atender às necessidades de políticos ambiciosos e não foi imposto pelo decreto da classe dominante, como foi a Constituição, teve uma chance de se assimilar, trabalhou com a inteligência política e instinto do povo e foi adotado de maneira alegre e universal como uma forma política genuína, expressiva tanto da necessidade popular quanto da demanda da classe dominante. Satisfez a demanda popular por democracia. O enorme senso de vitória que se seguiu à varredura das qualificações de propriedade do sufrágio, a evidência tangível de que agora todos os cidadãos estavam participando de assuntos públicos e que toda a democracia da humanidade era agora autogovernada, criaram um clima de complacência política que durou ininterruptamente até o século XX. O sistema partidário era, portanto, o meio de remover a queixa política da maior parte da população e de dar às classes dominantes a permanência oculta, mas genuína, de controle que a Constituição tentara abertamente dar a eles. Complementou e reparou as inépcias da Constituição. Tornou-se o governo não oficial, mas real, o instrumento que usou a Constituição como instrumento.

Somente em dois casos o sistema partidário pareceu perder o controle; foi lançado fora da base pelo início de um novo partido de fora - nas eleições de Jackson e Lincoln. Jackson entrou como representante de um novo ocidente democrático que não tinha tradição de qualificações para sufrágio e Lincoln como candidato minoritário em um momento de conflito seccional entre facções. Mas o desconforto dos políticos do partido foi curto. O sistema partidário mostrou-se perfeitamente capaz de assimilar esses dois novos movimentos. A insurreição de Jackson foi logo capturada pelas máquinas antigas e alimentou a escravidão, e o partido de Lincoln se tornou propriedade do novo capitalismo de bonança. Nem Jackson nem Lincoln fizeram a menor deflexão na marcha triunfal do sistema partidário. Em praticamente nenhuma outra competição o eleitorado teve, para todos os efeitos práticos, uma escolha, exceto entre dois candidatos, idênticos na medida em que seu papel político seria o de representantes das classes importantes do Estado. Campanhas como a de Bryan, onde uma das partes é capturada por um elemento que busca uma transferência real de poder das classes significativa para as menos significativas, divide o partido e ataques esporádicos de terceiros simplesmente jogam a balança de uma maneira ou de outra entre os grandes partidos, ou, se ameaçadores o suficiente, produzem uma coalizão virtual contra eles.