Nunca existiu um projeto de país


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Existe um mito no imaginário nacional sobre um suposto “projeto de nação”. Ele está presente em teses acadêmicas e discursos políticos, sempre se apresentando como um tributo nostálgico a algum período autoritário da história do país. A ideia subjacente à lenda do projeto é que o autoritarismo, seja o de Vargas ou o da ditadura militar, era dotado de propósito, existia sentido em suas providências. Nele a condução dos negócios públicos não era prejudicada pela confusão de interesses divergentes e paroquiais como ocorre hoje em dia. A homenagem geralmente é interrompida com alguma evasiva sobre a truculência do regime, como se não existisse uma relação necessária entre essa truculência e a disposição para “adequar” diferentes interesses e perspectivas a um grande plano totalizante.

O respeito solene aos episódios autoritários no Brasil transcende barreiras ideológicas, mas é especialmente estranho quando surge de alguns segmentos da esquerda, considerando que ela foi vítima da repressão política desses regimes. Esse respeito pode ser explicado, em parte, pela abordagem cartesiana dessa esquerda sobre o que vem a ser desenvolvimento econômico, pela notória incapacidade de compreender qualquer ordem ou prosperidade que não seja produto de desígnio e comando. Por essa perspectiva, uma economia de mercado é pura “anarquia da produção” e nunca poderia proporcionar bem-estar sem o benefício das diretivas de um planejamento concebido por uma autoridade forte o suficiente para sufocar a mesquinha oposição de interesses particulares.

No entanto, o “projeto de nação” nunca existiu, é uma representação fantasiosa do processo político durante períodos autoritários. As graças atribuídas ao autoritarismo – visão de longo prazo, incorruptibilidade, civismo, competência tecnocrática, etc. – nunca existiram. A intenção desse texto é reconstituir uma parte da história do país para expor essa fabricação. O motivo do enfoque econômico dessa reconstituição está no próprio conceito de “projeto de nação”, geralmente conjurado para justificar o dirigismo, uma série de políticas econômicas (principalmente industriais) voltadas para expandir a jurisdição do Estado muito além de suas meras funções regulatórias, direcionando o investimento, a produção e o comércio.

A Primeira República

Tudo começou há muito tempo, quando o país iniciou a sua industrialização. A maioria das pessoas adquiriu a noção de que até a década de 1930 o Brasil era um terreno baldio e que Getúlio Vargas criou a indústria nacional com o suor da própria testa. Na verdade, nossa industrialização começou no século XIX, com crescimento acelerado a partir de 1890 através de indústrias de bens de consumo não duráveis, bens intermediários e bens de capital1. Em 1880 o Brasil começou a importar alto-fornos, em 1900 já produzia duas mil toneladas de ferro gusa por ano e em 1914 a produção anual era de 14 mil toneladas. No começo do século XX, a indústria têxtil brasileira era a maior da América Latina. Ao contrário do que geralmente é presumido, a maior parte dessas mercadorias não era produzida em enclaves para ser exportada, era produzida para ser consumida por trabalhadores em um mercado doméstico interligado por ferrovias2. Antes da primeira guerra mundial a indústria nacional de bens finais era responsável por 80% do consumo doméstico. Essa demanda alimentava a indústria de bens intermediários e de capital, como construção naval e maquinário. O início da industrialização brasileira foi um processo endógeno, não uma estratégia consciente de desenvolvimento.

Apesar de ter surgido e adquirido porte espontaneamente, o setor industrial não permaneceria assim por muito tempo. A indústria germinou no Brasil em um solo de instituições muito diferentes do de países centrais. Tendo surgido no seio do poder econômico constituído e politicamente conectado, a indústria encontrou um ambiente político favorável às suas demandas por blindagem contra concorrência externa. A princípio modesto, o protecionismo ganhou força com o Centro Industrial do Brasil, fundado em 1902. Em 1914 um relatório do Departamento de Comércio dos Estados Unidos concluiu que o Brasil tinha as maiores barreiras tarifárias do hemisfério ocidental3. Antes da Primeira Guerra, os países da América Latina – sendo Colômbia e Brasil os dois mais fechados – tinham em média as maiores tarifas efetivas de proteção do mundo, cinco vezes maiores do que países industrializados da Europa4.

Essas tarifas eram instituídas ad hoc, atendendo aos interesses de uma burguesia industrial, e não como diretrizes de um plano de desenvolvimento. Nas palavras de Campos Sales, as proteções não deveriam ser “inoportunas”, não serviam para fomentar o surgimento de novas indústrias, mas pra proteger aquelas que já existiam. As barreiras tarifárias foram acompanhadas de subsídios creditícios e outros benefícios. A bolha do encilhamento durante o mandato de Ruy Barbosa no Ministério da Fazenda foi alimentada pela emissão de moeda por bancos regionais voltados a prover liquidez para a indústria. Afonso Pena, anos antes de assumir o governo federal em 1906, presidiu o Banco da República (precursor do Banco do Brasil) durante um imenso programa de crédito direcionado ao setor industrial. Hermes da Fonseca ofereceu para a indústria siderúrgica uma coleção de benesses paternais: descontos nos fretes das ferrovias estatais, garantia de compra de até dois terços da produção das usinas, empréstimos até o total de todo capital integralizado, prêmios em dinheiro por tonelada produzida e até a concessão de um monopólio nacional para qualquer usina que produzisse 150 mil toneladas de aço por ano5.

A República Velha, portanto, nunca foi o episódio de hegemonia da doutrina do laissez faire que é habitualmente contraposta à Era Vargas, assim como a causa do relativo atraso do Brasil (e da América Latina em geral) nunca foi uma suposta relutância em proteger sua indústria. Os interesses de classe industrial sempre estiveram bem acolhidos no governo, mas seus benefícios desde cedo estavam concentrados nas mãos de poucos. Um sistema bancário atrofiado, capturado para suprir as necessidades de financiamento do governo (o que é chamado pelo jargão de “repressão financeira”6) era incapaz de tornar liquidez amplamente acessível, concentrando o setor nas mãos de poucos industriais-financistas com capacidade de mobilizar capital através da emissão de debêntures e ações. Essa concentração ajuda a explicar, por um lado, a coesão e a eficácia da indústria em cooptar o governo e, por outro, as circunstâncias que surgiriam nas décadas seguintes.

A Era Vargas

É importante recapitular a história da economia brasileira durante a Primeira República para poder desconstruir a impressão comum de que Getúlio Vargas industrializou o país. Pelo contrário, seria mais apropriado dizer que foi a indústria que criou Getúlio Vargas. Celso Furtado popularizou uma versão da história que colocava o desenvolvimento industrial da década de 1930 como uma consequência incidental da tentativa de Vargas de proteger o setor cafeicultor, mas basta um exame superficial dos institutos, ministérios, órgãos, leis e discursos do período para demonstrar que a política industrial de Vargas sempre foi deliberada e consciente7. Essa política industrial, no entanto, não surgiu como instruções de uma autocracia esclarecida de acordo com um plano de desenvolvimento, mas como expressão do poder das associações empresariais. A atuação de Euvaldo Lodi (futuramente presidente da CNI) e Roberto Simonsen (presidente da FIESP) na redação da reforma tributária de 1934 – que instituiu um aumento agregado de 15% nas tarifas de importação – é um exemplo emblemático desse poder8. Além do aumento das barreiras tarifárias também foram instituídas cotas e licenças de importação9 que, apesar de serem em geral mais economicamente nocivas, são mais proveitosas para a corrupção e para a barganha de favores.

Nada é mais representativo da fraqueza e subserviência do varguismo do que o decreto 19.739 de 1931. A fragilidade do mercado de capitais brasileiro não era suficiente pra manter a concentração industrial indefinidamente. Durante a década de 1920, novos entrantes, principalmente nos setores de menor escala, começaram a desafiar e exaurir os altos retornos desfrutados pelos oligopólios industriais, pressionando seus preços para baixo. Exportar a produção e enfrentar a concorrência mundial estava fora de cogitação, então os líderes do setor buscaram uma solução mais conveniente: continuar parasitando o mercado interno cativo e pleitear junto ao governo por mais proteções. As exigências para restringir a competição no mercado interno se intensificaram a partir de 1928, mas encontraram resistência até a revolução de 1930, quando diversos representantes da indústria assumiram posições cruciais no aparelho estatal, como o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, recém criado para abrigar lobistas.

Em 1931 foi promulgado o decreto que proibia a importação de máquinas, efetivamente impedindo a entrada de novos concorrentes e a renovação tecnológica das pequenas e médias empresas que não constavam nos registros das associações patronais. O decreto era tão meticuloso no apadrinhamento de interesses especiais que, para garantir que a proibição não afetasse a grande indústria estabelecida, exigiu a apresentação de um cadastro, no prazo de 90 dias, de todas as máquinas e equipamentos utilizados para poder autorizar a importação voltada para substituir o que estava obsoleto ou quebrado. A produção nacional de máquinas e equipamentos, por outro lado, era abertamente tratada como uma consequência inconveniente que só agravava “o problema da superprodução”.

O sistema de substituição de importações nunca foi um projeto tecnocrático baseado em uma visão política nacionalista. O nacionalismo era um véu, um discurso que apelava ao mais baixo denominador ideológico para esconder a verdadeira matéria prima da política nacional: a barganha vulgar do governo com agentes privilegiados do setor público e privado, geralmente em detrimento dos interesses difusos de uma sociedade civil enfraquecida. Dentro desse contexto o Estado produz políticas públicas erráticas, incoerentes, que se apresentam como uma solução para os problemas que ele mesmo criou. As soluções, por vez, implicam em novos problemas, configurando um ciclo vicioso.

O melhor exemplo desse processo durante o Estado Novo foi a criação da Companhia Siderúrgica Nacional. A justificativa apresentada pelo governo para o empreendimento e reproduzida pela historiografia sicofanta é bastante familiar: a baixa produção, o alto preço e a debilidade da iniciativa privada. Diante desse justificativa, talvez cause surpresa constatar que a indústria siderúrgica brasileira era a maior da América Latina, três vezes maior do que a indústria mexicana, autossuficiente na produção de ferro gusa, produzindo também lingotes e laminados de aço. A defasagem tecnológica do setor – até aquele momento baseado em carvão vegetal – existia, mas as razões dessa defasagem são raramente investigadas. Desde o começo do século a indústria siderúrgica no Brasil era recipiente de uma profusão de programas e subsídios que envolviam controles de preço, tarifas, crédito direcionado, garantias de compra da produção, proibição da exportação de insumos, proibição de importação de máquinas e concessões de monopólio. Seria impossível listar aqui todas as medidas absurdas, mas talvez a pior de todas tenha sido a anuência explícita do governo a partir de 1930 com o surgimento de um cartel formalmente constituído com o propósito declarado de fixar preços, respaldado pela posição comum no governo da época de que a cartelização e a manutenção de altos preços era desejável para impedir a queda da renda durante a Grande Depressão. No final da década de 1930, a Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, por exemplo, auferia lucros de 200% e continuava a receber generosos empréstimos do tesouro. A construção da usina em Volta Redonda, com o objetivo de contornar os problemas de um setor completamente corrompido por incentivos perversos, não significava um confronto aberto contra interesses privados, pelo contrário, desde sua constituição a CSN não pretendia concorrer nos mesmos mercados do cartel das siderúrgicas. O objetivo da estatal de produzir utilizando carvão mineral era ineficiente de acordo com engenheiros da época e se tornou ainda mais ineficiente pela proibição da importação do carvão mineral para favorecer minas de Santa Catarina que extraíam carvão de baixa qualidade e com altos custos de transporte.

O Estado Novo foi um período de recrudescimento do nacionalismo econômico. A hostilidade contra o capital externo e o fortalecimento dos interesses do empresariado nacional foram influenciados pela Segunda Guerra e pela ascensão do trabalho organizado. A proteção implícita e a escassez de investimento externo durante a Segunda Guerra permitiram que a indústria doméstica fortalecesse sua posição dentro do governo e se apropriasse de uma parcela maior do mercado interno. O sentimento xenófobo e a paranoia incitados pela guerra foram cruciais para a campanha de nacionalização e a criação do monopólio petrolífero.

A relação entre Vargas e o trabalho organizado é geralmente interpretada pelo que a historiografia chama de “mito da outorga”, a noção de que os direitos trabalhistas foram concedidos por Vargas como um presente. A verdade é que os trabalhadores começaram a se articular no início do século XX e antes da revolução de 1930 já tinham conquistado através de greves, paralisações e negociações, uma série de melhorias nas condições de trabalho, sucessivos aumentos salariais e pagamento adicional por horas extras, periculosidade e trabalho noturno. Getúlio Vargas – assim como outros populistas latino-americanos, como Juan Perón e Lazaro Cárdenas – viu no trabalho organizado uma oportunidade para construir uma base de sustentação para seu regime, disciplinando e assimilando a classe operária dentro do aparato corporativista e conciliatório do Estado10. Com o sacrifício da autonomia dos trabalhadores, eles se tornaram cúmplices dos mesmos privilégios desfrutados pela classe patronal, privilégios que proporcionavam lucros extraordinários, trabalhos estáveis e um generoso fluxo de renda para os sindicatos. Essa dinâmica peculiar se repete até os dias de hoje quando, por exemplo, montadoras acumulam carros nos pátios. Como oligopólios tendem a ter preços rígidos, os carros não se tornam mais baratos. O reajuste ocorre reduzindo a produção e consequentemente os empregos na indústria, levando trabalhadores e sindicatos a constituir a primeira linha de defesa nos corredores do governo por mais estímulos às montadoras, como o Inovar-Auto, Super IPI e outros subsídios. Uma análise marxista convencional dos conflitos de classe está fadada a ignorar que o empresariado e o trabalho organizado no Brasil são dois lobos, ocasionalmente rosnando um para o outro por um pedaço maior do espólio, mas sempre unidos contra as ovelhas, contra a verdadeira “classe oprimida”: a grande massa politicamente desarticulada, inconsciente da sua própria condição, impotente diante das maquinações dos donos do poder e forçada a se sacrificar pelas suas regalias.

O nacionalismo econômico do Estado Novo impôs uma condição árdua ao desenvolvimento do país: abrir mão do investimento externo direto, uma modalidade de investimento voltada para o longo prazo, menos volátil, que promove transferências de tecnologia e receitas tributárias. Antes da Primeira Guerra, o investimento externo direto no Brasil era quase 300% do valor do produto interno bruto, mas no fim da Era Vargas essa proporção havia caído para apenas 18%11. A partir da década de 1950 o fluxo de investimentos estrangeiros se recuperaria parcialmente com as multinacionais, mas com receitas decrescentes de exportação e um Estado ávido pelo consumo da poupança interna, o país se tornaria dependente do acúmulo de dívida para financiar seu crescimento, um processo que definiu o rumo da economia durante a ditadura militar.

O interlúdio

É providencial reconstituir o cenário antes do golpe militar para descobrir qual a missão histórica que a ditadura veio cumprir para esse estranho organismo instalado na economia brasileira.

Um dos aspectos da política econômica que denunciava a natureza improvisada e a ausência de qualquer projeto de desenvolvimento foi o “modelo de substituição de importações”. O modelo tem uma contradição interna implícita no conceito de “proteção efetiva”: qualquer proteção tarifária concedida a um setor da economia é enfraquecida caso também sejam concedidas proteções para os setores que o antecedem na estrutura produtiva, isto é, para os setores que fornecem bens intermediários e de capital para sua produção. Isso ocorre porque as tarifas que aumentam no mercado doméstico o preço de um insumo ou maquinário diminuem o valor adicionado pela indústria que utiliza aquele insumo ou maquinário. Se uma tarifa aumenta em $50 o preço do queijo, uma outra tarifa que aumenta em $50 o preço do leite acaba anulando os benefícios da primeira tarifa para o produtor de queijo. A consequência desse dilema é que o Brasil passou por um bizarro processo de industrialização “horizontal”, que atravessava apenas o mercado de bens de consumo não duráveis e dependia da importação de máquinas, equipamentos e bens intermediários em geral.

Nossa industrialização engendrada de cima para baixo era, assim como inaugurações em véspera de eleição de uma prefeitura do interior, só uma fina camada de tinta. A mudança de uma parcela significativa da população para as cidades, consumindo produtos com cadeias produtivas cada vez mais complexas, colocou mais pressão sobre a demanda de bens de capital e de consumo duráveis, levando à conclusão de que o modelo de substituição de importações era, paradoxalmente, intensivo em importações.

As reservas de moeda estrangeira para financiar as importações, no entanto, se tornavam cada vez menores. Com a deterioração dos termos de troca, a queda da receita de exportações e um menor fluxo de investimento externo, o balanço de pagamentos foi posto sob pressão. Tudo isso poderia ser corrigido com o câmbio, a variável de equilíbrio com o resto do mundo, ou com uma tentativa de promover as exportações. Os planejadores, sempre debruçados sobre a planta baixa do grandioso projeto de nação, não escolheram nenhuma das duas opções. A desvalorização do câmbio implicava em custos visíveis e imediatos que afetavam principalmente os setores mais próximos do governo e a promoção de exportações dependia de mudanças estruturais e investimentos de longo prazo, um horizonte de tempo que nunca interessou aos sábios condutores da política econômica, nem durante os regimes autoritários.

O curso de ação foi o mais conveniente possível: aumentar ainda mais as barreiras protecionistas para racionar divisas e postergar a crise no balanço de pagamentos enquanto fosse possível. Surgiu, então, um vácuo para a produção de bens intermediários, de capital e de consumo durável. Esse vácuo foi preenchido por multinacionais que decidiram “pular a cerca” do protecionismo e constituir plantas dentro do país. As multinacionais eram dotadas daquilo que as permitia contornar todas as limitações que impossibilitaram o surgimento de indústrias domésticas nesse setor: acesso ao mercado de capitais internacional, tecnologia e capital humano. Essas multinacionais, no entanto, eram muito diferentes daquelas que povoaram a economia durante a República Velha, isoladas e voltadas para a exportação. As novas multinacionais vieram atraídas pela oportunidade de parasitar um mercado interno fechado e desprovido de concorrência, conectavam-se a uma estrutura produtiva dentro do país e arregimentavam um exército de trabalhadores bem pagos que atuavam em sua defesa. Por outro lado, circunscritas em um mercado interno relativamente limitado, essas empresas eram forçadas a operar plantas obsoletas ou muito abaixo da sua escala mínima de eficiência, ofertando produtos de menor qualidade e muito mais caros do que no resto do mundo, um fenômeno ainda bastante familiar. A chegada das multinacionais não pressagiava uma melhora no ambiente concorrencial, sua atuação estava delimitada a setores específicos, segmentando a economia entre setores dominados pelas multinacionais e setores dominados pela indústria nacional.

A evolução desse cenário caótico é a raiz da periódica falência das democracias na América Latina12. Para muitos intelectuais ocidentais o progresso econômico e institucional andam lado a lado, reforçando-se mutuamente, mas a América Latina sempre insistiu em contrariar esse otimismo. Abaixo do Trópico de Câncer a modernização da economia e a evolução da indústria sempre vieram acompanhadas do agravamento de tensões sociais e da instabilidade política. A alternância entre regimes autoritários e períodos de democracia não mudava a lógica desse mecanismo. Golpes e revoluções em pouco tempo reinstituíam as mesmas relações clientelistas e sucumbiam às mesmas crises previsíveis. O descontrole dos gastos do governo alimentava uma inflação crônica, as tentativas de controle da inflação por autoridades monetárias destituídas de credibilidade assumiam a forma de ajustes recessivos e desemprego. As crises eram sucedidas por consolidações setoriais e pela eliminação de pequenos produtores marginais. O uso político do câmbio conduzia a recorrentes crises no balanço de pagamentos. E das inúmeras distorções alocativas causadas por uma miríade de proteções e subsídios decorria uma produtividade estagnada.

Entre todas essas mazelas, o aspecto mais pernicioso do ambiente político-econômico brasileiro era sua tendência a produzir desigualdade. Uma desigualdade que não se manifesta como qualquer distribuição enviesada de renda, mas como consequência de uma iniquidade intrínseca, como um produto dos privilégios e da exclusão característicos de uma sociedade estamental. Diante do capitalismo de compadrio, do jogo de cartas marcadas, o apelo da sociedade civil ao populismo é praticamente uma estratégia racional13. A população se volta para líderes que são abertamente hostis às elites, que prometem distribuir igualmente os espólios do rentismo. O populista reconfigura a coalizão que sustenta o poder. A retórica e os atores mudam, mas a natureza das relações com o Estado permanece a mesma, perpetuando a lei de ferro das oligarquias. Na pior das hipóteses, o populista tenta usar instrumentos macroeconômicos com propósitos distributivos, encadeando um ciclo de curta prosperidade acompanhado de profunda recessão14, conjurando os apelos da população por uma solução autoritária.

A ditadura militar

O golpe de 1964 surge para sufocar as convulsões sociais que são o resultado inevitável das contradições desse modelo de desenvolvimento, estabilizando temporariamente o corpo doente e em seguida reincidindo na mesma lógica.

Seguindo esse roteiro, a primeira medida foi o Programa de Ação Econômica do Governo, o PAEG, um conjunto de medidas ortodoxas que reduziu a inflação, o déficit fiscal, a porcentagem do déficit financiado por emissão de moeda, melhorou a situação do balanço de pagamentos e corrigiu distorções tributárias15. Todos esses sucessos foram efêmeros, nenhuma mudança institucional que pudesse assegurar uma estabilidade duradoura foi feita. O legado permanente do PAEG foi, mais uma vez, instaurar soluções que futuramente iriam se revelar um fardo.

Essa falha típica de países latino-americanos transforma qualquer avanço pontual que é produto da deliberação de um governo em uma oportunidade irresistível para o próximo governo agir de forma irresponsável. Equilibrar as contas públicas e abrir “espaço fiscal” apenas proporciona ao mandato seguinte a oportunidade de gastar mais. A inflação sob controle é a chance para colher os frutos da falsa prosperidade que acompanha uma aceleração da inflação. O acúmulo de reservas pelo seu antecessor é oportuno para mascarar o enfraquecimento da moeda através de um câmbio artificialmente sobrevalorizado. E foi exatamente isso que aconteceu após a colheita dos frutos do PAEG com o “milagre econômico”. Em seguida, o regime interrompeu sua fase de estabilização e prosseguiu com a vocação do Estado brasileiro para a falência periódica.

No primeiro choque do petróleo, em 1973, quando o esgotamento do modelo já dava sinais, os militares precisavam decidir entre duas alternativas. A primeira opção era abrir a economia, eliminar a abundância de incentivos e subsídios contraditórios e inaugurar instituições que permitissem o controle do orçamento, da inflação e o equilíbrio externo. A segunda opção era aproveitar o cenário de ampla liquidez no mercado de capitais internacional para pisar no acelerador, se endividar e tentar tapar os buracos da matriz industrial do país. Nesse ponto a natureza das instituições brasileiras já deve ter ficado clara, então a alternativa que foi escolhida também deve ser óbvia16. O objetivo do PND II era tentar inverter a tendência do balanço de pagamentos com a entrada de capital externo, centralizando esse passivo externo no governo e usando os recursos para financiar investimentos nos setores historicamente debilitados pelo modelo de substituição de importações. A tentativa de remendar os problemas causados pelo modelo anterior reproduzindo o mesmo modelo no setor de bens de capital e de bens intermediários não poderia dar certo e acabou afundando o país em uma das maiores recessões da história na década de 1980, a “década perdida”.

A caducidade da ditadura militar é frequentemente floreada como resultado de um infortúnio, de uma conjunção trágica de circunstâncias externas aliadas a algumas poucas decisões infelizes, quando, na verdade, foi uma decadência previsível e inevitável, intrínseca à própria natureza do regime. É indispensável observar os detalhes dessa trajetória de estabilização e declínio porque nela a ruína do autoritarismo no Brasil se revelou em todas as suas cores. Esse processo de falência foi marcado por todos os crimes pelos quais a historiografia e o senso comum sempre absolveram o regime militar: fraqueza política, corrupção, visão de curto prazo, falta de planejamento e um parco legado de instituições que representassem uma conquista permanente.

A primeira marca infamante da política econômica da ditadura foi uma herança da Era Vargas, mas que seria levada a suas últimas consequências durante a década de 1970. Com Vargas, os militares aprenderam que era possível internalizar as rendas extraordinárias dos oligopólios dentro dos próprios quadros burocráticos do Estado através da constituição de uma miríade de estatais e monopólios setoriais. Novas estatais foram criadas e as antigas, como Vale do Rio Doce e Petrobras, foram conglomeradas dando origem a diversas subsidiárias, somando 231 novas empresas públicas17. Essas estatais não eram ferramentas para a consecução dos projetos de esclarecidos planificadores, eram feudos controlados por pessoas poderosas e que malmente forneciam informações e prestavam contas ao governo. Seus prejuízos eram socializados para toda população e seu faturamento era indevidamente apropriado por fundos de pensão de funcionários. Na medida em que se apresentavam como instrumentos da política econômica, eram instrumentos dos objetivos de curto prazo e dos remendos improvisados pelo regime, servindo como vetores para captar divisas (por atraírem menos desconfiança do investidor externo do que o governo federal) e usando o defasamento de suas tarifas como ferramenta para conter a inflação, uma estratégia muito parecida com nossa história recente.

É simbólico que nesse período a presidência da república tenha passado para as mãos de Ernesto Geisel, um militar que comandava a Petrobras em um cargo notório por recolher propina de seus diretores e que, diante da crise do petróleo, colocou toda a economia do país em risco para defender o monopólio da empresa18. A democratização conseguiu resolver parte do problema com as privatizações, mas o país ainda sofre com o legado de um aparato de estatais loteado entre partidos, usado como instrumento de governabilidade e transformado em nicho de corrupção.

A multiplicação das estatais não significou um recuo do interesse privado de grandes empresas, pelo contrário, ambos prosperaram em uma relação simbiótica. Grandes empreiteiras, a maioria envolvida nos escândalos recentes investigados pela operação Lava Jato, adquiriram envergadura através de projetos ligados às estatais durante o regime militar19. Um caso ilustre é a ascensão repentina da Odebrecht, que no início da ditadura era uma construtora local de pouca expressividade mas que subiu da 19ª posição entre as maiores empreiteiras do país em 1971 para a 2ª posição em apenas dois anos, graças a sua proximidade com Geisel, que nomeou um diretor da companhia, Angelo Calmon de Sá (futuramente condenado por desvios no Banco Econômico), para o Ministério da Indústria e Comércio.

Os grandes projetos de engenharia da ditadura, celebrados como símbolos de uma visão estratégica de desenvolvimento, sofriam críticas dentro do próprio governo pelo seu aparente despropósito e foram contaminados pela atuação política de empresas nacionais, multinacionais e empreiteiras. A construção das usinas de Angra I e II – que proporcionou à Odebrecht o segundo maior faturamento do país em 1979 com dispensa de licitação e contratos que permitiam custos suplementares sem limites – foi denunciada pela revista alemã Der Spiegel20. Uma CPI, montada como um teatro para eximir o governo, acabou admitindo a contragosto que a obra estava cercada de procedimentos estranhos. As construções sofreram uma série de reveses, ficaram inacabadas no fim do regime e produziam eletricidade a um custo dez vezes maior do que uma hidrelétrica. A ponte Rio-Niterói, concebida por um projeto repleto de falhas, teve um edital de licitação com todos os vícios do direcionamento, uma substituição irregular do consórcio responsável pela construção e acabou custando quase quatro vezes mais do que inicialmente previsto. A Ferrovia do Aço foi idealizada com altos padrões de engenharia, custos exorbitantes (chegando a representar 2% de toda a dívida externa do país), críticas do congresso e das próprias empreiteiras, prazo de término cinco vezes maior do que o anunciado e só chegou a ser concluída porque uma mineradora se dispôs a assumir a obra em troca de isenção pelo uso da ferrovia. Do total de 1,4 bilhão de dólares estimados inicialmente, foram gastos 3 bilhões, sendo apenas 130 milhões gastos pela mineradora para terminar a obra. A Rodovia Transamazônica, talvez o projeto mais insólito do período, oficialmente pretendia resolver o problema agrário com o assentamento de colonos nas margens de uma rodovia ligando a Paraíba à fronteira oeste do Amazonas. Não oficialmente, porém, agradava empreiteiras como a Mendes Júnior (próxima a Mário Andreazza, Ministro dos Transportes) e outras empresas estrangeiras cujo envolvimento na especulação de terras nas margens da rodovia foi denunciado pelo general Albuquerque Lima em uma CPI sobre o assunto. O solo amazônico demonstrou ser impróprio para o cultivo, as chuvas deixavam a estrada intransitável para escoar produção durante 6 meses do ano e a rodovia foi abandonada sem conclusão e com apenas metade do trecho asfaltado. A usina de Itaipu, projetada originalmente para custar US$ 1 bilhão, acabou custando US$ 12 bilhões de investimento direto mais 15 bilhões em obrigações financeiras da dívida denominada em dólares. Além de problemas técnicos e acusações de superfaturamento, o embaixador responsável pela compra das turbinas foi encontrado morto, espancado e enforcado em uma árvore, após ter declarado para conhecidos que pretendia escrever um livro sobre a corrupção na obra21.

Os projeto faraônicos eram suscetíveis aos mesmos vícios que acompanham o investimento público na democracia – falta de planejamento, busca por prestígio político e procedimentos burocráticos suspeitos –, mas com a garantia de que o regime militar poderia ignorar os custos socioambientais de sua execução e o escrutínio da imprensa e da lei. O constante enviesamento dos contratos do governo, sempre destinados às mesmas grandes empreiteiras, mobilizou pequenas empresas de engenharia em um pleito por transparência e igualdade de oportunidades que só seria respondido parcialmente com a Lei de Licitações após a democratização. As relações suspeitas entre empreiteiras e o Estado só foram escancaradas definitivamente com as investigações conduzidas pela operação Lava Jato.

Um dos piores itens do inventário de problemas deixado pela ditadura foi a inflação crônica que se acelerou no fim do regime. Uma das grandes raízes da desigualdade, a inflação foi um problema que acompanhou a industrialização em países da América Latina e constitui uma espécie de armadilha histórica. Em um contexto de constante instabilidade política, o Estado tem pouco poder de tributar e captar poupança (externa e interna), dependendo da emissão de moeda para se financiar, provocando uma contínua elevação do nível de preços. A instabilidade dos preços então provoca um ciclo vicioso, prejudicando a capacidade do governo de arrecadar impostos e emitir títulos, redobrando a dependência das emissões monetárias. O “imposto inflacionário” é ineficiente e tem efeitos distributivos perversos, o que conduz a uma demanda política pela sua extinção. Sem uma autoridade monetária dotada de credibilidade, toda tentativa de controle da inflação vinha acompanhada de desemprego e falências, o notório “ajuste recessivo”, e era logo abandonada, reiniciando o processo.

A atuação da ditadura militar para reverter esse quadro histórico foi um fracasso, um conjunto de gambiarras institucionais. A primeira delas foi o sacrifício da independência do Banco Central. Roberto Campos, ao pedir a Costa e Silva que voltasse atrás na decisão de demitir o diretor do Banco Central, lembrando que era responsabilidade da instituição atuar como guardião da moeda, obteve dele uma resposta típica da arrogância de um caudilho do terceiro mundo: “o guardião da moeda sou eu”22. Com o Banco Central e o Conselho Monetário Nacional submissos ao Ministério da Fazenda, a estabilidade de preços passou a ser só um objetivo subsidiário à conveniência do regime.

A segunda foi a manutenção da “conta movimento”, uma conexão direta entre o Banco Central e o Banco do Brasil que permitia aos dirigentes da estatal e ao governo expandir a oferta monetária livremente para conceder empréstimos e financiamentos de acordo com seus interesses, sem precisar se preocupar com os fracos controles orçamentários. A terceira era o esdrúxulo “orçamento monetário”, onde ficavam escondidas despesas com programas de fomento, dando ao orçamento fiscal a aparência de equilíbrio enquanto os gastos públicos saíam de controle.

Finalmente, para tentar reduzir a dependência do governo das emissões monetárias, o PAEG criou as notórias ORTNs, Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional, uma classe de títulos do tesouro com correções monetária e cambial. O objetivo era criar um mercado para títulos do governo que não existia até então devido à instabilidade do nível de preços e à medieval “Lei da Usura” introduzida por Getúlio Vargas. Com rendimentos protegidos contra a inflação, os títulos atraíram muitos investidores, o que previsivelmente conduziu a um endividamento do governo sem precedentes.

Depois do choque do petróleo, começou a ridícula comédia dos erros: buscando se proteger contra a inflação, investidores abandonaram títulos prefixados e se abrigaram nas ORTNs, tornando o tesouro dependente do acúmulo de um passivo que evoluía junto com o nível de preços. O governo, agindo de acordo com sua índole, tentou roubar os investidores defasando o indexador das ORTNs. A quebra de confiança reduziu a demanda pelos títulos e encurtou o seu prazo, contrariando todo o propósito da indexação e formando um estoque de dívida que tinha de ser “rolado” constantemente de acordo com a taxa de juros vigente. Em 1983, durante negociações com o FMI e sob a iminência de uma crise no balanço de pagamentos, o governo promoveu uma “maxidesvalorização” cambial, fazendo as ORTNs atreladas ao câmbio dispararem de valor, comprometendo mais ainda a solvência do Estado.

O regime militar saiu de cena com uma inflação acelerada e acima de 200% ao ano. Durante o período, 4% da renda do setor não bancário foi transferido ao setor bancário, criando bancos dependentes de lucros obtidos através da inflação. A dívida externa saltou de 3 bilhões de dólares para 102 bilhões em 1984, o equivalente a metade do PIB do país.

Por uma certa perspectiva, a centralização de poder foi uma oportunidade única para reconfigurar o Estado e confrontar os problemas que estavam na raiz da inflação, mas nada disso foi feito. Ironicamente, foi durante a fraca e corrupta democracia que muitas dessas condições adversas foram superadas. A Constituição de 1988 finalmente aboliu o orçamento monetário e instituiu o princípio da unidade orçamentária. O orçamento das estatais, até então um método de assalto generalizado das contas públicas por agentes privilegiados, foi finalmente submetido ao legislativo. Em 1985 as funções do Tesouro, Banco Central e Banco do Brasil foram reordenadas e separadas, dando fim à “conta movimento”. O Plano Real controlou com sucesso a inflação e a Lei de Responsabilidade Fiscal impôs critérios para controle de despesas, transparência das contas públicas e limites para o endividamento.

A constante instabilidade da política monetária e cambial durante o século passado sacrificaram um ingrediente importante de um hipotético projeto de nação: o investimento. Em circunstâncias normais, o crescimento de uma economia é alimentado pela acumulação de capital (principalmente investimentos de longo prazo) financiada por poupança. No entanto, para conectar poupadores e investidores é necessário um setor de serviços financeiros e é nessa seara que moram as disfunções do país subdesenvolvido. A conjunção da instabilidade monetária, da insegurança jurídica e da ausência de um arcabouço legal apropriado sacrificaram o mercado de capitais doméstico e centralizaram no Estado o papel de condutor do investimento. O Estado, por outro lado, consumido por instabilidade política e falta de legitimidade, abre mão da tributação para se financiar através de emissão de moeda, transformando a inflação em uma “poupança forçada”, um mecanismo para transferir renda da população para formação de capital. Sem estabilidade de preços e segurança jurídica, um mercado líquido de títulos públicos se torna improvável. O Estado, então, reage à sua incapacidade de tomar empréstimos sequestrando o setor bancário – que deveria financiar o investimento privado – para financiar sua própria dívida, criando uma demanda compulsória por seus títulos.

Os poderes extraordinários do autoritarismo poderiam supostamente ter sido usados para desamarrar esse complicado nó histórico de diversas formas: criando um ambiente macroeconômico estável, reduzindo exigência das reservas compulsórias, desconcentrando o setor bancário e conduzindo uma reforma na legislação do mercado de capitais que protegesse credores e acionistas, promovesse transparência e bons padrões de governança. A ditadura militar não fez quase nada disso, pelo contrário, ela decidiu concentrar ainda mais no Estado a responsabilidade pelo investimento através da administração direta, de instituições como o BNDE (hoje BNDES) e das estatais, que juntos correspondiam a 50% de toda formação bruta de capital no período, sem contar os fundos de poupança compulsória, incentivos fiscais, subsídios, títulos públicos, agências financeiras públicas, etc. Quase todo investimento passava, direta ou indiretamente, pelas mãos do Estado.

O resultado dessa centralização foi a queda e estagnação da produtividade, o que não é surpreendente considerando que tanto o esforço industrializante de Vargas como o de Geisel foram dirigidos por critérios políticos, tentando desobstruir gargalos a medida que surgiam e direcionando recursos para usos ineficientes. A coalizão política que sustentou o PND II era formada por oligarquias regionais arcaicas que trocavam apoio por investimentos em seus currais. Decisões de investimento eram frequentemente influenciadas pelas preferências particulares de diretores das grandes estatais. Obras que eram supostamente de interesse público eram determinadas por relatórios dos próprios consórcios de empreiteiras responsáveis por sua construção. Reservas de mercado, como a notória Lei de Informática, eram concebidas sob pressão de associações empresariais e sem o embasamento de nenhum estudo23. Crédito era direcionado por bancos públicos para empresas em falência, como no escândalo Lutfalla, empresa do sogro de Paulo Maluf24. Empresas nacionais se acostumaram com um ambiente onde sua sobrevivência era condicionada pelo “rent seeking”, no qual adquirir trânsito político, autorizações, licenças, isenções e empréstimos direcionados eram prioridade, enquanto a eficiência, o aperfeiçoamento e a inovação eram objetivos secundários.

Muito progresso foi feito também nesse sentido, apesar da mudança de curso nos últimos anos. O investimento do setor privado chegou a constituir 87% de toda formação bruta de capital da economia em 1997, tendo diminuído desde então. O recuo da participação do Estado no investimento, no entanto, foi mais do que compensado pelo aumento de despesas correntes e transferências, na medida em que o gasto público dobrava de tamanho em proporção ao PIB, entre 1991 e 2016. Entre títulos públicos, empréstimos e operações compromissadas, 72% dos recursos captados pelo sistema bancário são destinados ao financiamento do setor público25. O Estado abandonou o papel de formador de um estoque de capital ineficiente durante o regime militar para ser um dissipador de capital durante a democracia, impondo um freio ao crescimento econômico. O aparelho de investimento herdado da ditadura militar se tornou um fardo para a democracia, constituindo um instrumento de formação de monopólios e perpetuação de quadrilhas no poder. Com o fim da inflação, o BNDES e outros bancos de fomento assumiram o papel histórico de canalizadores de “poupança forçada”, chegando a movimentar metade de todo volume de crédito do país26.

Nem toda falta de produtividade da economia brasileira pode ser atribuída ao talento empresarial do Estado, o segundo período da ditadura militar representou também um recrudescimento do protecionismo27. Dessa vez, além das habituais barreiras tarifárias (que também tem função arrecadatória), foi erigida uma série de barreiras não tarifárias que efetivamente aboliam a importação de diversos produtos e não tinham nenhum objetivo além do apadrinhamento de empresas nacionais e do racionamento de divisas. Foi nesse período que foi instituído o infame anexo C da CACEX, proibindo a importação de 1300 tipos de produtos, entre eles a maior parte das mercadorias consumidas pela população. Os Decretos-lei 1.334 e 1.364 majoraram em 100% as tarifas de cerca de 2000 produtos. Aproximadamente 1000 bens de consumo tiveram a importação proibida, mesmo sem a existência de equivalentes nacionais, por serem considerados “supérfluos” pelas autoridades. Qualquer importação com tarifas maiores do que 55% deveriam ser pagas à vista. A Lei do Similar exigia que um produto só poderia ser importado se não existisse um similar nacional disponível, no entanto cabia às próprias associações empresariais nacionais decidirem sobre os critérios de similaridade28.

A política comercial da ditadura foi, para todos os efeitos, um embargo comercial imposto pelos militares ao próprio país. Talvez pior, porque nem o embargo dos Estados Unidos contra Cuba proibia o comércio de comida e vacinas. De acordo com diferentes bases de dados, o Brasil chegou a importar anualmente um valor entre 3 e 5% do seu PIB em 198529. Para efeito de comparação, a União Soviética importava cerca de 4% do PIB30 , a Coréia do Norte importa 20%.

A década de 1990 representou um grande avanço para a abertura comercial. Regimes especiais e restrições administrativas às importações foram eliminados, o anexo C foi abolido e uma revisão nas tarifas aduaneiras reduziu a média das alíquotas. O efeito imediato sobre a produtividade pode ser atribuído não só ao aumento da concorrência, mas também ao acesso dos produtores nacionais a máquinas, equipamentos e insumos modernos. Em 1995, 40% de todas as importações eram bens de capital e apenas 18% eram bens de consumo. A produtividade na indústria, que havia caído a uma taxa média de 2,49% ao ano entre 1985 e 1990, passou a crescer a uma taxa média de 2,17% a partir de 199131.

Mas, sem dúvida, a herança mais penosa do regime militar foram as lideranças políticas que assumiram o país depois da democratização. Não só os baronatos locais criados no seio do regime, como José Sarney, Paulo Maluf, Antônio Carlos Magalhães, Jorge Bornhausen e Fernando Collor, mas também uma esquerda que se consolidou durante o processo de distensão e que se reveza entre a colheita do prestígio político proporcionado pela resistência à repressão e o tributo velado aos métodos e projetos dos governos militares. Os últimos anos foram representativos dessa homenagem, obras como a hidrelétrica de Belo Monte, a transposição do rio São Francisco e a usina de Angra III saíram dos arquivos da ditadura. O programa Minha Casa Minha Vida reeditou os antigos financiamentos do BNH para habitações de baixa qualidade nas periferias ofertadas pelas Cohabs. O agigantamento do BNDES, o controle de preços para conter a inflação, a manipulação do câmbio, a expansão do controle da Petrobras sobre o setor de petróleo, o refortalecimento do protecionismo, o aumento da inflação e o desequilíbrio fiscal são características de um plano de governo reacionário, destituído de uma visão própria além da cortesia servil com o passado. Assim como Geisel, Dilma Rousseff recebeu um país em relativa estabilidade e entregou uma década de ruína.

Conclusão

A princípio, a tendência da nossa política de convergir para os mesmos erros regularmente, partindo de lados do espectro político aparentemente tão distantes, pode parecer um vício endêmico, uma entropia econômica inescapável que sempre vai afligir o brasileiro. Afinal, todos os equívocos do passado se apresentam como um produto do caos, da ausência do elusivo “projeto de nação”, da falta de diligência em torno de um plano coerente, da unidade e conformidade que nem o autoritarismo pode proporcionar.

No entanto, existia método no caos, uma frase que se repetia ao longo de toda essa composição. Todas as escolhas políticas, de Vargas a Dilma, obedeciam a uma regra que transcende a superficial perfumaria ideológica: a concentração do poder de decidir no Estado.

Não se trata de um juízo simplório sobre o tamanho do Estado, sobre quanto ele gasta e tributa, mas sobre seu poder de decidir. O desenvolvimento de um mercado de capitais foi preterido porque, através do BNDES e dos bancos de fomento, o Estado tem a prerrogativa de escolher quem tem acesso a capital ou não. Uma economia aberta e integrada ao mercado global não foi rejeitada porque não funciona, mas porque tarifas, cotas e licenças são um instrumento para decidir o que vai ser produzido no país e quem vai produzir. O gerenciamento do câmbio e as taxas diferenciadas por setor não foram adotados porque são indispensáveis à estabilidade macroeconômica, mas porque permitem que o câmbio seja manipulado, sobrevalorizado ou desvalorizado de acordo com a conveniência de quem ocupa o governo. A inflação não era consequência dos conflitos distributivos de uma sociedade desigual, era um instrumento de constante transferência de renda da população para aqueles que estavam mais próximos da origem da moeda. As estatais não eram uma resposta para um empreendedorismo nacional débil ou para falhas de mercado irremediáveis, eram um meio de acumulação de poder por pessoas influentes.

Essa, portanto, é a grande ironia: nós fomos vítimas da própria ideia de um “projeto de país”, da concepção do desenvolvimento como uma planta baixa sob responsabilidade de algum planificador, abrindo o caminho para o domínio do Estado sobre produção, consumo, distribuição e preços. Quando as consequências desse programa se manifestaram – como crises, conflitos, surtos inflacionários e corrupção generalizada – nós nos voltamos contra a própria democracia, imaginando que era a pluralidade política, a divergência de opiniões, que estava corrompendo a diligência do plano. Imaginamos que era preciso instituir coerência, ordem, unidade, nem que fosse à força, sempre pelo bem maior em detrimento de direitos individuais.

A fantasia de organizar a sociedade em torno de um projeto fez com que não percebêssemos que o segredo do desenvolvimento não está nos poderes que atribuímos ao Estado para a consecução de grandes feitos, mas nos poderes que negamos a ele. A economia de um país é a soma das muitas vidas e, assim como essas vidas, não obedece os trilhos concebidos em alguma cópia heliográfica, mas são um processo imprevisível e descentralizado de aperfeiçoamento e aprendizagem. O papel do Estado não é usar os indivíduos como um meio para a consagração de algum projeto, sacrificando seu direito de trocar, produzir, consumir e criar; mas admitir que esses indivíduos, suas potencialidades e competências, são um fim em si, a própria matéria prima do desenvolvimento. De acordo com essa perspectiva, não existe nenhum motivo para admirar e contemplar nosso passado, só o futuro.

Referências

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