Vivien Kellems: Por favor, processe-me!

Vivien Kellems: Please Indict Me! · Tradução de Saulo Henrique
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Todas as nossas liberdades são devidas a homens que, quando movidos pela consciência, quebraram as leis da nação.

Assim falou William Kingdon Clifford, um matemático e filósofo inglês do século XIX. Palavras inspiradoras… mas você captou o erro flagrante? Ele esqueceu as mulheres!

Se Clifford conhecesse Vivien Kellems, não teria cometido esse erro.

Nascida em 1896 na cidade de Des Moines, Iowa, Kellems era uma locomotiva que nunca desistia. De fato, seguindo essa analogia do trem, ela era a Dagny Taggart da vida real, a vice-presidente da empresa ferroviária do livro “A Revolta de Atlas”. Antes de morrer em 1975, Kellems podia orgulhosamente olhar para trás e ver toda uma vida a serviço de seu país, como empresária bem-sucedida, oradora pública reconhecida, política mais interessada em educar do que em vencer e, mais notoriamente, uma incansável opositora da Receita Federal dos Estados Unidos (IRS) e seu código tributário. Extremamente franca, ninguém nunca a acusou de esconder sua luz dos que sofrem na escuridão.

Enquanto conquistava seu diploma de bacharel em economia pela Universidade de Oregon, em 1918, Kellems dava a seus colegas de classe uma dose do brio que marcaria sua vida dali em diante. Ela se tornou a primeira e única mulher no grupo de debate da faculdade, humilhando muitos homens em uma disputa que, na época, diziam ser exclusividade deles. Ela prosseguiu os estudos até obter o mestrado em economia, em 1921. Décadas mais tarde, por volta dos 70 anos, ela iniciou um programa de pós-graduação na Universidade de Edimburgo, na Escócia. O foco de sua dissertação era a questão que a tornou um nome familiar nos Estados Unidos da América: o imposto de renda.

Os agitados anos 20 se encaminhavam quando Kellems e seu irmão Edgar criaram as mangas de tração Kellems, usadas para erguer e apoiar cabos elétricos. Com mil dólares que ela havia economizado mais outros mil dólares emprestados, ela fundou a Kellems Company em Stonington, Connecticut, em 1927, para fabricar e vender o equipamento. Na época em que a Segunda Guerra Mundial explodiu, ela era uma mulher rica, com seguidores totalmente leais entre suas centenas de funcionários.

Quando a guerra demandava cabos para suportar bombas de artilharia de mais de uma tonelada, Kellems desenvolveu um equipamento inovador e acabou vendendo dois milhões de unidades para as forças armadas. Fazer negócios com os militares também lhe apresentou o lado obscuro do governo – a papelada sem fim e frequentemente desnecessária ou duplicada, a burocracia intervencionista, o código tributário cada vez mais complicado e dúbio, e até mesmo uma ingenuidade perigosa em relação a governos estrangeiros.

A maioria dos americanos era relutante em criticar Washington durante os primeiros anos da guerra. Outras questões mais prementes os ocupavam, enquanto as potências do Eixo conseguiam uma vitória atrás da outra.  Mas quando Kellems viu o desperdício, a inabilidade e a imbecilidade no governo, não hesitou em se pronunciar e gerar manchetes. Ela estava enfurecida com o fato de o governo norte-americano transportar milhares de toneladas de materiais vitais para a União Soviética de Stalin, num momento em que o próprio esforço de guerra os demandava. Para uma plateia em Chicago, ela alertava profeticamente: “Guardem minhas palavras. Esse aliado temporário irá, em breve, ser uma ameaça mortal aos Estados Unidos e a todo o mundo livre”.

Os asseclas de Roosevelt não ficaram contentes com a desaprovação pública por parte de Kellems. Suas correspondências privadas foram interceptadas pelo Departamento de Censura (sim, isto existiu), e então vazadas para dois colunistas de jornal e um congressista amigo da administração. Nada em suas cartas a incriminava, e nenhuma ação foi tomada contra ela, mas o governo planejava constrangê-la e intimidá-la para que se recolhesse ao silêncio. Subestimaram Kellems além da conta.

Conforme a carga tributária aumentava, crescia o ressentimento de Kellems em relação às alíquotas marginais de imposto (cerca de 90% da renda pessoal e empresarial) e as táticas de intimidação dos fiscais da receita. Em discursos pelo país, ela fez duras críticas a Roosevelt por prometer impostos mais baixos durante sua primeira campanha presidencial, em 1932, para depois aplicar impostos impiedosamente mais altos, como nunca visto antes. O Secretário do Tesouro e amigo íntimo de Roosevelt, Henry Morgenthau, levantou acusações de traição e prosseguiu com sanções legais contra Kellems. Felizmente, essas ameaças foram afastadas tanto pelo fim da guerra quanto por um escândalo envolvendo o Bureau of Internal Revenue (predecessor do IRS). Graças, em parte, a Kellems e as mulheres pelo país que ela pessoalmente instigou, investigações do congresso levaram à condenação ou à aposentadoria voluntária centenas de funcionários da Receita, por violar exatamente as leis tributárias que eles deviam fazer cumprir.

Kellems se inflamava com o intervencionismo do governo em qualquer nível. Quando o estado de Connecticut aprovou uma lei, em 1947, proibindo mulheres de trabalhar após às 10 da noite, ela entrou em ação. Sua amiga, a estrela hollywoodiana Gloria Swanson, descreve o que aconteceu:

Acusando a lei de discriminatória, ela trouxe várias centenas de mulheres para trabalhar em sua fábrica por uma noite, mas não houve nenhuma prisão. E por fim, ela arranjou emprego em uma lanchonete noturna, ameaçando trabalhar todas as noites enquanto o legislativo não tomasse uma atitude. Dois dias depois, a lei foi derrubada.

O ano de 1948 é crucial na vida de Kellems. Franklin Roosevelt deixara o governo havia três anos, e Harry Truman era quem ocupava o Salão Oval da Casa Branca. O imposto retido na fonte, que começou sendo uma medida de guerra temporária e “voluntária”, foi tornada permanente e compulsória. Kellems não concordava com isso. E ela não se converteria em uma coletora de impostos não remunerada para o governo sem antes enfrentá-lo.

Em fevereiro de 1948, ela começou a pagar seus empregados com o salário integral, com a intenção de fazê-los arcar com os impostos devidos e pagá-los diretamente para o governo federal. Em poucos dias, ela foi a um programa de TV da NBC, Meet the Press – ela seria a segunda mulher a aparecer como convidada no programa, até então. A lei que retia os impostos na fonte, em sua opinião, era inconstitucional. A exata lógica para criá-lo – tornar os custos do grande governo menos visível aos trabalhadores – era, em sua cabeça, uma razão ainda maior para se livrar dele. As pessoas precisavam saber quanto seu governo lhes custava. Violar a lei era a única maneira de poder resolver o problema de uma vez por todas:

Se o senhor presidente quer que eu pegue dinheiro para ele, então terá que me nomear agente da Receita Federal. Ele terá que me pagar um salário pelo meu trabalho, terá que me reembolsar pelas despesas incorridas na cobrança de imposto, e eu vou querer um crachá!

Ela escreveu para o secretário do Tesouro para informá-lo de sua decisão, e acrescentou: “Eu peço respeitosamente que me processe, por favor”.

Temendo uma decisão desfavorável no tribunal, o governo saiu pela tangente. O processo nunca aconteceu. Ao invés disso, o IRS enviou agentes até seu banco e se apropriou de U$ 6.100 que alegava ser devido.

Kellems contra-atacou processando o governo e, em 1951, um júri ordenou ao governo a devolução do dinheiro, somado de juros.  Ela continuou a pressionar por uma decisão sobre a constitucionalidade e, finalmente, em 1973, o Tribunal Tributário dos Estados Unidos rejeitou seu argumento. Entretanto, ela já havia cedido para evitar que sua companhia fosse à falência, devido ao confisco por parte da Receita. Com muita relutância, ela começou a reter os impostos de seus empregados.

Em 1952, ela escreveu um livro detalhando sua luta e sua defesa contra o imposto de renda. Entitulado “Toil, Taxes and Trouble” (“Labuta, Impostos e Inconvenientes”), ele ainda está disponível. Ao mesmo tempo poderoso e divertido, o livro é cheio de percepções em relação aos impostos e ao papel apropriado do governo. Nas palavras de Romaine D. Huret, autor do excelente livro publicado em 2014, “Tax Resisters“_(“_Anti-Impostos”):

O livro de Kellems explorou a “lavagem cerebral” realizada nos pagadores de impostos. O imposto de renda, segundo ela, era uma forma de o governo deliberadamente “esconder” dos funcionários o pagamento de impostos e, assim, evitar que eles se tornassem “conscientes” quanto ao que pagam. Ao longo do livro, ela identificou os inimigos contra os quais ela lutava usando um vocabulário vívido e, às vezes, coloquial: eles eram os “coletores de impostos e planejadores tributários […] amarelões covardes, burocratazinhos sarnentos em Washington”.

Nos anos 60, com a questão da retenção na fonte ainda por resolver, Kellems assumiu outra cruzada fiscal – a penalidade embutida imposta a pessoas solteiras. As taxas de imposto de renda para uma pessoa solteira eram cerca de 42% mais altas do que as taxas para casados de renda similar. O congresso finalmente reconheceu seu argumento e, em 1969, deram-lhe uma vitória parcial ao cortar essa disparidade a um limite máximo de 20%. Swanson escreveu,

Vivien podia citar passagens da Constituição de cor, recitar a história legislativa das seções obscuras do código da Receita Federal, e fazer tudo isso como se fosse uma vovó com o dedo em riste, de tal forma que desarmaria até mesmo os políticos mais experientes.

Bridgeport Post prestou homenagem a Kellems em um editorial. Lamentavelmente, hoje talvez não exista editor jornalístico em Connecticut com a coragem e a sabedoria para publicar algo assim:

Quando se trata de possuir tamanha força intelectual, nós nos perguntamos se existe algum homem ou mulher em Connecticut que possa se igualar à senhora Kellems. Uma mulher solitária contra todo o governo dos Estados Unidos! Se há pessoas – e sabemos que existem – que a consideram simplesmente uma pessoa combativa, encampando uma luta pessoal em torno da retenção de imposto na fonte, estão cometendo uma grande injustiça com ela.  Seu interesse é de uma profunda convicção e de firme princípio, com base no estudo da história da Constituição dos Estados Unidos. Ela entende as circunstâncias que deram origem a este país, a firme constatação dos fundadores de que o poder para taxar é o poder para destruir, e os passos que eles tomaram para evitar o mau uso desse poder.

Kellems concorreu quatro vezes a um cargo público em Connecticut, uma vez para governadora, e três vezes para o Senado norte-americano. Apesar de nunca ter vencido, ela fez algo que outros candidatos raramente fazem: ela educou pessoas. Após cada campanha eleitoral realizada por Kellems, ninguém poderia dizer que ela defendia aquilo que fosse lhe render votos.

Ela nunca mudou sua opinião sobre o imposto de renda. Todos os formulários de imposto de renda pessoais que ela entregou, durante seus últimos 10 anos de vida, foram deixados em branco. Aparentemente, nem mesmo o IRS queria se meter novamente com esta patriota briguenta.

Não importa se você concorde ou discorde de Vivien Kellems nessas questões, mas você precisa lhe dar crédito. Ela tinha princípios – sadios, em minha opinião – e a coragem de defendê-los, faça chuva ou faça sol.