Menger, Liberalismo Clássico e a Escola Austríaca de Economia

Chapter 5: Menger, classical liberalism and the Austrian School of economics · Tradução de Giácomo de Pellegrini
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Capítulo 5: Menger, Liberalismo Clássico e a Escola Austríaca de Economia

Uma série de valiosos artigos recentes refletiu o crescente interesse atual na postura política e ideológica dos economistas fundadores da Escola Austríaca. O que é particularmente intrigante sobre essa literatura é que ela oferece o que parece, pelo menos superficialmente, ser um conjunto de leituras e avaliações muito diferentes dessa postura político-ideológica. Especialmente em relação a Carl Menger, oferecemos avaliações aparentemente contraditórias. Ele era um campeão do laissez-faire; favoreceu a intervenção econômica estatal substancialmente; não tinha uma posição política claramente definida e articulada - cada uma dessas visões de Menger e dos primeiros austríacos se encontra expressa em algum lugar na literatura. Cada um desses pontos de vista é apoiado por citações dos primeiros austríacos. O objetivo do presente capítulo é conciliar as aparentes inconsistências apresentadas nesses artigos anteriores.

Nossas conclusões serão (a) que os primeiros austríacos, especialmente Menger, ocuparam uma posição que reconheceu tanto a eficácia dos mercados quanto o alcance da intervenção econômica governamental útil; (b) que esta posição meio cheia, meio vazia, não foi articulada de forma deliberada e integrada, de modo que podem ser citadas observações individuais que sugerem posições mais extremas do que a de fato ocupava; (c) que esta posição meio cheia, meio vazia, no entanto, expressava uma compreensão de mercados que, por si só, sugeriam fortemente uma apreciação mais radical dos mercados livres do que os primeiros austríacos de fato demonstravam. É a última circunstância, supomos, que explica como, quando mais tarde os austríacos chegaram a posições ainda mais consistentemente laissez-faire, foram vistos pelos historiadores do pensamento como de alguma forma simplesmente perseguindo uma tradição austríaca que pode ser rastreada até os fundadores.

Como deve ser evidente, o desenvolvimento desta tese, embora à primeira vista conflita com as várias contribuições para a literatura atual sobre este tópico, na verdade, difere deles apenas em questões de ênfase. De fato, o presente capítulo contém muito pouca novidade: extrai a maioria de suas ideias da literatura existente, meramente tecendo essas ideias no que compõe, desejamos manter, uma história mais aceitável e integrada. Escritores assinalaram que o copo não estava cheio; escritores apontaram que o copo não estava vazio; escritores até apontaram que o copo estava meio cheio e meio vazio. Não vamos apenas confirmar a leitura meio cheia, meio vazia, mas ajudar a explicar, talvez, por que o copo pode parecer bastante cheio para alguns observadores enquanto parece vazio para outros.

MENGER, AUSTRÍACOS E LAISSEZ-FAIRE: ALGUNS PARADOXOS

Stephan Boehm chamou nossa atenção para uma vertente da sabedoria convencional em relação à Escola Austríaca a partir da época de Menger, ou seja, a identificação dos austríacos como “defensores rigorosos do laissez-faire e apologistas francos do sistema capitalista” (Boehm 1985: 249). Contra essa visão tradicional dos austríacos, Boehm demonstra poderosas evidências nos próprios escritos de Menger: “Menger apresenta uma lista de cinco tarefas legítimas atribuídas ao Estado, respectivamente, melhoria da situação da classe trabalhadora, distribuição de renda, encorajamento da capacidade individual, frugalidade e iniciativa empreendedora” (p. 250, citando Menger 1891). Se esta (ambiciosa!) lista de responsabilidades governamentais não foi suficientemente impressionante, Boehm cita tanto Menger como Böhm-Bawerk de forma enfática, até veemente, rejeitando acusações de que eles seguiram uma abordagem laissez-faire, “manchesteriana” à política social. Menger, Boehm cita, afirmou explicitamente que “nada poderia ser mais oposto à sua escola do que reivindicar o sistema capitalista. Na verdade, a única coisa que ele apreciava em Schmoller era sua preocupação apaixonada pelos pobres e fracos.” No entanto, a visão de que os economistas austríacos eram de fato intransigentes defensores do laissez-faire - e certamente a visão de que eram percebidos como tais - não pode ser sumariamente desconsiderado. Erich Streissler, particularmente em seu trabalho recente, chamou nossa atenção para o novo material disponível que apoia esta visão de Menger. Como é sabido, Menger passou vários anos como tutor do príncipe herdeiro Rudolph, da Áustria. Rudolph foi obrigado a preparar ensaios sobre as palestras que ouvira de Menger. Estas notas de aula, com correções de Menger, foram recentemente redescobertas por Brigitte Hamann, que forneceu cópias datilografadas para Streissler. Destes ensaios, Streissler concluiu que Menger ensinou a Rudolph “um liberalismo possivelmente ainda mais rigoroso do que o de Adam Smith. Em casos “normais”, a ação econômica do Estado é sempre prejudicial: sendo só permitida em casos “anormais”.1

Talvez ainda mais persuasiva, no que diz respeito à percepção da Escola Austríaca como defensora do não-intervencionismo, sejam as reminiscências pessoais de Ludwig von Mises. Mises estudou na Universidade de Viena nos primeiros anos deste século e tornou-se um dos discípulos mais conhecidos de Böhm-Bawerk. Seu nome é invariavelmente citado como um participante proeminente no famoso seminário de Böhm-Bawerk na Universidade. Pode haver pouca dúvida de que Mises estava completamente familiarizado com a posição política dos membros da Escola Austríaca. Embora ele não tenha estudado com Menger, não podia deixar de ter consciência da forma como era entendida as visões políticas de Menger. Para Mises parece não ter havido a menor sombra de dúvida de que os austríacos se viram (e eram vistos por seus contemporâneos) como reivindicando não apenas uma ciência abstrata da economia (contra os desafios historicistas), mas também ao mesmo tempo a eficácia da economia de mercado (contra seus detratores socialistas e estatistas).

Em um capítulo intitulado “Os aspectos políticos da metodologia”, Mises descreve a aliança entre Schmoller e sua Escola Histórica e as políticas bismarckianas na Prússia que “começaram a inaugurar sua Sozialpolitik (política social), o sistema de medidas intervencionistas como a legislação trabalhista, a seguridade social, atitudes pró-sindicato, tributação progressiva, tarifas protecionistas, cartéis e dumping” (Mises 1969: 30). É verdade que Mises reconheceu que quando Menger, Böhm-Bawerk e Wieser iniciaram suas carreiras científicas, não estavam preocupados com os problemas das políticas econômicas e com a rejeição do intervencionismo pela economia clássica. Eles consideraram como sua vocação colocar a teoria econômica em uma base sólida e estavam prontos para se dedicarem inteiramente a esta causa” (p. 18). Mas essa passagem é seguida pela afirmação declarada de que “Menger desaprovou de todo o coração as políticas intervencionistas do governo austríaco […] tinha adotado”. Um cético poderia ficar tentado a pensar se Mises (escrevendo em 1969) talvez não estivesse lendo independentemente as atitudes de seus professores, a postura de laissez-faire que ele próprio adotou em sua própria carreira. Mas um leitor imparcial das muitas referências de Mises às implicações políticas da Methodenstreit (disputa de métodos) terá dificuldade em evitar concluir que Mises está simplesmente expressando a percepção generalizada dos austríacos como sendo fortemente oposta à intervenção estatista adotada pela Escola Histórica.

E ainda, como citado por Boehm (1985: 248), encontramos Gunnar Myrdal descrevendo os austríacos como sendo os raros economistas do século XIX que não injetaram motivos políticos em sua economia: “Na Áustria, a economia nunca teve objetivos políticos diretos” ( Myrdal 1954: 128). Aparentemente, a leitura que Myrdal fez da economia austríaca não a considerou nem tendenciosamente intervencionista nem procurou promover o laissez-faire.

Para completar nosso esboço de percepções da posição política da Escola Austríaca (ou a falta dela), devemos nos referir a uma declaração mais explícita de Nikolai Bukharin, o eminente teórico marxista e erudito econômico, que passou algum tempo como participante do seminário de Böhm-Bawerk e escreveu uma crítica marxista à teoria austríaca econômica. Em seu prefácio à edição russa deste livro, Bukharin refere-se ao fato de ele ter escolhido atacar a Escola Austríaca (em vez de outras escolas de economia moderna): “Nossa escolha de um oponente por nossa crítica provavelmente não requer discussão, pois é sabido que o oponente mais poderoso do marxismo é a escola austríaca” (1972: 9). É claro que ser um poderoso opositor do marxismo ainda não é um defensor do laissez-faire. No entanto, parece claro que os austríacos foram vistos como propiciando uma forte defesa intelectual do capitalismo.1 Nada nos seus escritos, ao que parece, poderia sugerir quaisquer razões de princípio para duvidar da eficácia das instituições capitalistas na promoção do bem-estar econômico humano.

Esta é, então, a situação em que nos encontramos. Provas aparentemente existem para apoiar a visão de que os austríacos eram defensores do laissez-faire, a visão de que eram simpáticos ao intervencionismo, e a visão de que não estavam preocupados com as implicações políticas de suas doutrinas. Vamos considerar, independentemente de qualquer das evidências citadas, o que se poderia esperar concluir, em termos de implicações políticas, da teoria econômica da Escola Austríaca, especialmente em sua encarnação inicial de Menger.

MENGER E A REVOLUÇÃO DA UTILIDADE MARGINAL

Uma certa ambiguidade chegou a cercar a questão do grau em que o Grundsätze (Princípios de Economia Política) de Menger representou uma contribuição revolucionária e pioneira à economia de seu tempo. A visão tradicional entre os historiadores do pensamento viu o trabalho de Menger como uma das três contribuições básicas para a “revolução da utilidade marginal” (além de ser um manifesto que sustenta o método teórico em economia, em oposição ao método histórico que se entrincheirou a economia alemã). A partir dessa leitura tradicional de Menger, seu livro foi um ataque frontal, revolucionário e pioneiro à ortodoxia clássica. No entanto, ao mesmo tempo, o livro de Menger, e especialmente seu prefácio, reconhecia livremente um profundo endividamento para os escritores anteriores, particularmente para a “fundação de trabalhos anteriores que foi produzida quase inteiramente pela indústria de estudiosos alemães” (Menger 1981: 49). Na verdade, Streissler, em trabalhos recentes (1990), chamou a atenção para uma tradição alemã “protoneoclássica” de meados do século XIX, na qual o trabalho de Menger deveria ser reconhecido como uma contribuição que oferecesse continuidade de desenvolvimento, em vez de proporcionar um afastamento revolucionário. Embora Menger enfatizasse temas centrais à revolução da utilidade marginal, argumenta Streissler, Menger se via como um reformador em vez de um revolucionário.

No entanto, essa ambiguidade relativa às possíveis ligações entre o Grundsätze de Menger e essa tradição “protoneoclássica” alemã certamente deve estar estritamente relacionada a características específicas do sistema de Menger, especialmente sua teoria subjetiva do valor. Parece haver pouca dúvida sobre a consciência de Menger de que estava oferecendo, em seu Grundsätze, uma perspectiva sobre o sistema econômico que era inteiramente novo. A ênfase de Menger, em seu prefácio, sobre a necessidade de equilibrar “cuidadosa atenção ao trabalho passado em todos os campos de nossa ciência até agora explorados” contra a crítica, “com total independência de julgamento, das opiniões de nossos predecessores e até mesmo [de] doutrinas até agora consideradas realizações definitivas de nossa ciência”, (1981: 46) sugere seu senso muito claro de romper abruptamente com o passado. Hayek nos disse que se comenta que Menger “observou que escreveu o Grundsätze em um estado de excitação mórbida” (Hayek 1981: 16). Parece razoável atribuir esse entusiasmo à convicção de Menger de que estava escrevendo um livro inovador.

O reconhecimento da dívida de Menger aos eruditos alemães e a dedicação do seu livro a Wilhelm Roscher, o famoso líder da (mais antiga) Escola Histórica Alemã, não devem ser mal interpretados. Estas referências certamente devem ser entendidas, não como reflexo de qualquer falha em perceber a novidade de seu próprio trabalho, mas como expressando seu senso meticuloso de justiça para estudiosos anteriores cujas contribuições ele valorizou (além de ser uma política estratégica prudente em buscar aliar-se a si mesmo com os estudiosos mais influentes de seu tempo, em seu esforço para desalojar a ortodoxia clássica). Essa interpretação é inteiramente consistente com a crítica calculada que Menger atribuiu ao trabalho do próprio Roscher doze anos depois do Grundsätze (Menger 1985: 185-9). A diferença de tom (em relação a Roscher e aos outros economistas alemães pré-Schmoller) que separa as Untersuchungen (Investigações) de Menger do Grundsätze não precisa ser atribuída a uma mudança de paixão, ou de opinião, sobre estes assuntos (a ser explicado talvez pela frieza com que o Grundsätze foi recebido na Alemanha). Menger ainda reconheceu calorosamente (em 1883, como em 1871) as “virtudes da personalidade científica do erudito estudioso de Leipzig; seus méritos excepcionais e seu avanço na compreensão histórica de uma série de importantes fenômenos econômicos; o estímulo incomparável que seus estudos na literatura de nossa ciência deram a todos os colegas mais jovens” (1985: 189). As críticas de Roscher em 1883 podem antes ser entendidas como expressando a recente compreensão de Menger de que seu próprio sucesso em moldar sua nova compreensão do sistema econômico dependia crucialmente de sua própria orientação teórica, com a qual a abordagem alemã agora dominante deveria ser nitidamente contrastada. (Além disso, a recepção fria concedida ao Grundsätze na Alemanha pode ter convencido Menger de que nenhuma aliança estratégica com os economistas alemães poderia agora ser realisticamente antecipada.)

Portanto, o trabalho de Menger em 1871 certamente deve ser lido como uma oferta deliberadamente nova sobre o sistema econômico como um todo. É verdade que elementos importantes (referentes ao subjetivismo, utilidade e assim por diante) foram extraídos de escritores alemães anteriores, como Streissler (e Hayek 1981: 13-14, 17) apontaram. No entanto, a visão geral da economia como um sistema impulsionado inteiramente e independentemente pelas escolhas e avaliações dos consumidores - com essas avaliações transmitidas “para cima” através do sistema para “bens de ordem superior”, determinando como esses bens escassos de ordem superior são alocados entre as indústrias e como são valorizados e remunerados como parte de um único processo impulsionado pelo consumidor - era algo que Menger seguramente (e corretamente) sentia como sendo totalmente novo.

E se isso, apesar de qualquer inovação técnica na teoria da utilidade marginal, deve ser visto como a contribuição original auto-reconhecida de Menger, então parece razoável entender Menger como percebendo uma implicação correspondentemente original de sua visão para a economia normativa. Essa afirmação exige uma breve elaboração.

MENGER E A EFICIÊNCIA DA ECONOMIA DE MERCADO

A visão de Menger do sistema econômico como totalmente controlado pelas preferências, valorações e escolhas do consumidor tem implicações significativas para o bem-estar. Contra um dado pano de fundo de recursos escassos (bens potenciais de ordem superior), as preferências e escolhas do consumidor colocam em movimento uma série cada vez mais ampla de atividades produtivas empreendedoras que resultam em avaliações de mercado de serviços de fatores e alocações correspondentes entre setores. Desta visão surge um claro senso de soberania do consumidor - um conceito com implicações normativas obviamente importantes.

Essa visão da soberania do consumidor oferece um critério normativo que difere acentuadamente da base clássica do laissez-faire. Os economistas clássicos viam a economia de livre mercado produzindo (sob os incentivos proporcionados pela mão invisível) o maior volume possível de riqueza material. A visão de mercado de Menger apontava, não tanto para uma maximização da produção agregada, quanto para um padrão de governança econômica exercido pelas preferências do consumidor. Esse aspecto da visão de Menger sugere uma apreciação dos resultados dos mercados livres que diferem sutilmente dos teoremas de bem-estar neoclássicos mais padronizados sobre a otimização social do laissez-faire. Para Marshall e Pigou, o sentido em que se pode argumentar que os mercados livres (na ausência de externalidades) é economicamente ideal é aquele que se concentra na maximização do bem-estar agregado. Para Walras e outros economistas do bem-estar neoclássico continental, os mercados alcançam ideais de bem-estar alcançando uma alocação ótima de recursos (equivalente, em um mundo de comparações de utilidade interpessoal, à maximização do bem-estar agregado). É verdade que tal otimalidade é baseada na primazia do bem-estar, de acordo com a necessidade de respeitar as preferências do consumidor; mas essa perspectiva ainda padronizada da economia do bem-estar social não se concentra no controle efetivo exercido pelas escolhas do consumidor. Para a teoria do bem-estar mainstream, o importante é o padrão de alocação alcançado pelo mercado (medido em relação ao padrão da estrutura das preferências do consumidor). Mas, a partir da visão de Menger sobre a economia, aparece a percepção de que, na verdade, é apenas a série de escolhas tomadas pelos consumidores que criam os valores de mercado e determinam as avaliações empreendedoras que controlam a real alocação de recursos.

É difícil evitar a conjectura de que a apreciação de Menger pelas conquistas da economia de livre mercado (como expresso, digamos, nos ensaios de Rudolph) deve ser atribuída em grande medida a essa nova visão mengeriana sobre a soberania do consumidor. Parece plausível ao extremo que foi nesse insight, completamente absorvido pela economia dos colegas e seguidores mais jovens de Menger, Böhm-Bawerk e Wieser, que os marxistas viram seu principal conflito com a economia austríaca. Para Bukharin, imerso na percepção marxista da economia capitalista como um sistema de exploração, a alegação de que a economia capitalista pura é aquela em que as preferências do consumidor ditam tudo, na qual a atribuição capitalista das quotas de renda é aquele padrão “obrigatório” e imposto pelos consumidores, deve ter parecido perigoso, de fato. Não é de admirar que ele tenha visto a economia austríaca como o oponente mais poderoso do marxismo. E não pode haver dúvida de que foi esse princípio da soberania do consumidor, tão central na economia austríaca, que posteriormente inspirou a crítica de Mises ao socialismo. Como Mises enfatizaria ao longo de sua carreira, a chave para a alfabetização econômica é o entendimento de que a tomada de decisões empresariais se baseia inteiramente no incentivo para antecipar as preferências do consumidor: “Por si próprios, os produtores são incapazes de ordenar a direção da produção. Isso é verdade tanto para o empreendedor quanto para o trabalhador; ambos devem se curvar aos desejos dos consumidores. E não poderia ser de outra forma. As pessoas produzem, não por uma questão de produção, mas pelos bens que podem ser consumidos.” (Mises 1936: 443). Foi esse insight completamente mengeriano que alimentou a polêmica de Mises contra os mal-entendidos socialistas e intervencionistas da economia de mercado.

No entanto, como veremos, essa percepção de Menger, sua percepção pioneira do papel da soberania do consumidor, não foi por si só suficiente para exigi-lo inequivocamente a assinar uma política de laissez-faire puro. Certamente, a valorização da soberania do consumidor traz implicações normativas. Mas para uma mente tão cuidadosa, tão sensível a distinções sutis e tão completa quanto a de Menger, sua compreensão da supremacia das avaliações do consumidor na estrutura de um sistema econômico dificilmente pode ter garantido endosso irrestrito do laissez-faire puro. A própria teoria econômica de Menger deixou uma série de aberturas para argumentos concebíveis, econômicos ou sociais, em favor de intervenções específicas. Vamos ver como deve ter sido o caso.

MENGER, SOBERANIA DO CONSUMIDOR E ÂMBITO DE INTERVENÇÃO ESTATAL

Desejamos identificar três circunstâncias que tornaram a visão de Menger da economia de mercado orientada para o consumidor uma base insuficiente para o manchesterismo, para uma política que insiste no laissez-faire sem mácula. Há todas as razões para supor que Menger estava ciente para essas circunstâncias (e para nós explicarmos as várias vertentes conflitantes de evidências a respeito de sua posição por referência a essas circunstâncias e até que ponto ele articulou as implicações sociais delas). Streissler enfatizou as externalidades como base para as concessões de Menger ao intervencionismo (1988: 201). Queremos sugerir três outras circunstâncias que provavelmente estão na base da lista de Menger (citada acima da discussão de Stephan Boehm) de tarefas legítimas para o Estado.

Primeiro, temos todos os motivos para acreditar que Menger reconheceu que sua visão assumia uma determinada estrutura de direitos de propriedade e lei de propriedade. Quando Menger discutiu as razões da escassez para a instituição da propriedade privada, se referiu à arbitrariedade de tal instituição. Uma “nova ordem social”, explicou, “poderia de fato assegurar que as quantidades disponíveis de bens econômicos fossem usadas para satisfazer as necessidades de pessoas diferentes das atuais”. Mas tal redistribuição nunca eliminaria a escassez; isso não evitaria a necessidade da instituição da propriedade em si. Qualquer “plano de reforma social pode ser razoavelmente direcionado apenas para uma distribuição apropriada de bens econômicos, mas nunca para a abolição da própria instituição da propriedade” (1981: 97-8). Nada na teoria de Menger sugere que o status quo, no que diz respeito à distribuição de propriedade de recursos, seja socialmente ótimo. Parece altamente plausível entender muito da simpatia de Menger pela “preocupação apaixonada de Schmoller pelos pobres e fracos”2 como reflexo dessa insatisfação extra-econômica com o status quo. A visão de Menger da soberania do consumidor, logicamente falando, era inteiramente consistente com uma consciência social que preferia um conjunto diferente de consumidores efetivos para estar no controle.

Em segundo lugar, embora Menger tenha enfatizado o papel das preferências do consumidor, ele era certamente da opinião de que os consumidores podem estar “equivocados” quanto ao que, de fato, é do seu próprio interesse. Menger insistiu explicitamente na possibilidade dos consumidores erroneamente atribuírem valor a medicamentos primitivos, poções de amor e afins (1981: 53). Ele notou a fraqueza que as pessoas demonstram por “superestimar a importância de satisfações que dão intenso prazer momentâneo, mas contribuem apenas de maneira fugaz para seu bem-estar” (p. 148) e assim por diante. Essa atitude paternalista de sua parte pode facilmente sugerir políticas estatais para corrigir os erros do consumidor na avaliação. É plausível ler a referência de Menger à necessidade de ação estatal para encorajar a economia (Boehm 1985: 250), expressando seu anseio paternalista de neutralizar a circunstância de que “os homens estimam mais a aprovação, intensos prazeres mais do que seu bem-estar permanente e às vezes até mais do que suas vidas” (Menger 1981: 148).

Terceiro, devemos enfatizar que Menger distinguiu nitidamente entre os “preços econômicos” explicados por sua teoria de troca (baseada, por sua vez, em fundamentos de utilidade marginal para avaliação e demanda do consumidor) e os preços do mundo real. Os primeiros são os preços que prevaleceriam na ausência de erro, se os indivíduos econômicos agissem em seus próprios interesses mútuos sem o impedimento de informações incompletas (ver Kirzner, 1979b). No mundo real, erro humano na tomada de decisão, considerações de boa vontade em relação a outros afetam o caráter econômico das transações, e outras causas complicam os resultados: “Uma situação econômica definida traz à luz precisamente os preços econômicos dos bens apenas nos casos mais raros. Os preços reais são mais ou menos diferentes dos econômicos” (Menger 1985: 69). O sentido da visão geral de Menger do sistema econômico governado inteiramente pelas avaliações do consumidor está confinada ao modelo em que os efeitos do erro e de complicações similares são ignorados. Apenas se os preços econômicos - os preços que “corretamente” refletem as realidades subjacentes das avaliações “corretas” do consumidor - prevalecessem, seria verdade que a alocação de recursos expressa de fato, fiel e eficientemente, os desejos dos consumidores soberanos. Eu expressei em outro lugar (Kirzner, 1979b) perplexidade com a ausência, em Menger, de qualquer análise de um processo de mercado através do qual, possivelmente, erros por parte dos participantes do mercado pudessem ser sistematicamente eliminados. Aposto que se pode afirmar com segurança que, embora Menger, de fato, tenha aparentemente assumido que os mercados tenderão, mais cedo ou mais tarde, a uma série de preços econômicos, ele certamente não afirmou que, em todos os momentos, essa matriz pode ser considerada no lugar. É plausível ler sua referência à necessidade de ação estatal para incentivar a iniciativa empreendedora (Boehm 1985: 250), expressando o temor de que circunstâncias possam surgir onde o erro empresarial ou a falta de iniciativa resultem em preços patologicamente antieconômicos (e alocações de recursos), a menos que a ação do Estado para estimular iniciativas empreendedoras corretivas seja introduzida.

A REVOLUÇÃO MENGERIANA E A DEFESA DO LAISSEZ- FAIRE: AVALIAÇÃO SUMÁRIA

Estamos em condições de resumir as discussões até agora. Menger introduziu uma visão revolucionária do funcionamento de um sistema de mercado, no qual via as avaliações do consumidor governando toda a estrutura de produção e determinando rigorosamente a alocação de recursos e as correspondentes remunerações de mercado de escassos serviços de recursos. Essa percepção da soberania do consumidor certamente traz importantes implicações para a avaliação social da eficiência do sistema capitalista.

Pode haver pouca dúvida de que (como vimos ser o caso de Mises) a aceitação da visão mengeriana traz consigo uma defesa poderosa dos resultados capitalistas. Estes resultados podem ser vistos como rigorosamente necessários e desejáveis, se desejamos realmente respeitar os desejos dos consumidores como eles próprios os expressam, e se desejamos tratar a propriedade existente e outros direitos e dotes como dados e não sujeitos a contestação. O que vimos, no entanto, é que, para o próprio Menger, não era necessariamente o caso de os desejos expressos dos consumidores serem vistos como exigindo respeito; nem era o caso que qualquer padrão inicial de propriedade fosse definido com o título de aprovação moral. Mais precisamente, vimos que o insight de Menger sobre a natureza da soberania do consumidor estava circunscrito por sua consciência de que os erros empresariais e outras aberrações podem facilmente servir como uma separação entre a economia do mundo real e o modelo “econômico” governado pelo consumidor de Menger desta realidade.

O que desejamos agora apresentar é que essas considerações sirvam adequadamente para explicar as linhas de evidências conflitantes (sobre a atitude de Menger em relação à intervenção estatal na economia de mercado) citadas no início deste capítulo. Não devemos nos surpreender ao descobrir passagens em Menger coerentes com o laissez-faire puro; não devemos nos surpreender ao encontrar passagens em Menger consistentes com o intervencionismo completo; não deveríamos nos surpreender ao encontrar passagens em Menger consistentes (como Gunnar Myrdal as leu) com um distanciamento completo das questões políticas. E certamente não deveríamos nos surpreender ao descobrir que os escritores marxistas, como Bukharin, perceberam na economia mengeriana um poderoso inimigo de qualquer teoria de exploração do capitalismo.

RECONCILIANDO A EVIDÊNCIA CONFLITANTE

Certamente não pode haver mistério quanto à percepção difundida (citada por Boehm) dos primeiros austríacos como fortes defensores do sistema de livre mercado. Como vimos, a visão básica de Menger sobre a economia de mercado, uma visão nunca totalmente perdida de vista na subsequente tradição austríaca, certamente tem um forte característica liberal clássica. Mostra como, com o erro e a aberração ausentes, os mercados podem expressar fielmente a soberania do consumidor, em vez do controle empresarial. Os mercados não são vistos apenas como caoticamente descoordenados, são vistos como servidores eficientes e sistemáticos do público consumidor. É fácil ver como a centralidade dessa visão poderia levar os historiadores posteriores do pensamento (assim como os próprios austríacos subsequentes) a concluir - sem referência às letras miúdas3 - que a economia austríaca reivindica o livre mercado como uma exigência para a realização da soberania do consumidor.

Mas, como vimos, as letras miúdas de Menger estão realmente lá para serem lidas e consideradas. Quando nos movemos do reino da teoria econômica para o da política social, a mensagem aparentemente clara que surge da visão mengeriana torna-se nebulosa, complexa e ambígua. Não apenas pode-se duvidar da aplicabilidade da teoria ao mundo real (já que no mundo real a matriz de preços “econômicos” provavelmente estará ausente - em vez disso uma matriz ineficiente e errônea de “preços não-econômicos” estará no lugar); além disso, o formulador de políticas sociais pode legitimamente questionar a aceitabilidade moral do padrão de propriedade de recursos que a teoria econômica simplesmente toma como garantida. Além disso, uma vez que se passe da mesa livre de valores do teórico econômico para o pódio paternalista do formulador de políticas, torna-se necessário considerar até que ponto as escolhas feitas livremente pelo consumidor podem parecer equivocadas e erradas, não consistentes com o “verdadeiro” bem-estar dos consumidores. Todas essas considerações são amplamente suficientes para explicar as declarações feitas por Boehm e outros, atestando a disposição de Menger de atribuir importantes responsabilidades intervencionistas ao Estado.

E, mais uma vez, um observador como Gunnar Myrdal poderia legitimamente citar os austríacos como não tendo nenhum eixo político ou ideológico para trabalhar. A exposição de Menger de sua visão central do mercado não tentou articular quaisquer implicações de política de laissez-faire - e, como vimos, de fato não impediu a adoção de um programa moderadamente intervencionista. Assim, enquanto Bukharin leu corretamente a teoria austríaca como uma ameaça poderosa à visão marxista da economia capitalista, Myrdal poderia igualmente elogiar os austríacos por perseguirem um programa de pesquisa científica não contaminado por nenhuma agenda política. Uma série de outras observações precisam ser feitas para completar nossa história, reconciliando as evidências aparentemente conflitantes de Menger e dos primeiros austríacos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa reconciliação das vertentes de evidências conflitantes dependeu de nossa capacidade de distinguir nitidamente entre a visão central do sistema econômico de Menger , por um lado, e as considerações complicadas sobre o erro e os direitos de propriedade do outro. É porque o contexto em que Menger articulou sua visão central foi aquele no qual as últimas considerações complicadas não precisaram ser explicitamente introduzidas, de modo que conclusões aparentemente conflitantes sobre as visões de Menger sobre a política econômica pudessem ser extraídas. Certas circunstâncias adicionais combinou para criar esta situação um tanto confusa.

Streissler assinalou que a tradição nas universidades alemãs e austríacas era de haver “duas cátedras de economia em cada universidade: uma cadeira de teoria econômica e uma cadeira de política econômica” (1988: 200). Menger e os primeiros economistas austríacos ocupavam cadeiras de teoria; não eram responsáveis ​​pelo ensino da política econômica. Suas pesquisas e seus livros tratavam quase exclusivamente de teoria positiva. Essa circunstância deve ter encorajado os seguidores dos primeiros austríacos, bem como os historiadores do pensamento, a tirar suas próprias conclusões a respeito da direção da política para a qual a teoria austríaca estava apontando. Essa tendência só pode ter sido fortalecida pelo fato de que a centralidade da nova visão do sistema econômico de Menger recebia ênfase em seu trabalho teórico, enquanto a “boa impressão” reconhecendo a legitimidade da intervenção estatal encontrava seu caminho nas contribuições periféricas, mesmo jornalísticas, dos fundadores. É plausível que o próprio Menger possa ter visto sua “boa impressão” como tendo um impacto claramente menor em considerações políticas práticas. Isso explicaria sua capacidade de dar uma palestra a Rudolph de acordo com linhas que, a uma primeira aproximação, por assim dizer, lhe permitiram evitar a ênfase em sua própria “boa impressão”.

Como Boehm nos lembrou (1985: 256-7), a principal fronteira do conflito ideológico e político na Áustria do final do século XIX não foi aquela que separou os proponentes do laissez-faire puro daqueles da intervenção estatal agressiva. Pelo contrário, foi entre os defensores dos privilégios mais antigos e entrincheirados do clero, da aristocracia, do exército e da burocracia e dos expoentes do “josephismo, a versão austríaca do absolutismo esclarecido”. Os economistas austríacos endossaram um “liberalismo […] profundamente enraizado nas tradições josephênicas, cujo principal propósito era acabar com os privilégios e guildas feudais” (1985: 256-7). O trabalho científico de Menger não precisava abordar essas preocupações. Sua abertura para o intervencionismo estatal poderia ser facilmente relegada às letras miúdas. Quando, no curso das décadas, a fronteira mudou, de modo que as principais questões políticas entre os economistas giravam em torno do grau desejável de intervenção estatal, tornou-se fácil concentrar-se quase exclusivamente na visão central da soberania do consumidor do sistema econômico de Menger e desenhar as próprias conclusões.

Além disso, à medida que a economia austríaca entrava em sua segunda e terceira gerações, o foco da investigação de políticas públicas mudou para a viabilidade do socialismo. Aqui Mises, como notado acima, foi capaz de basear-se tanto nas raízes de Böhm-Bawerk e Menger da economia austríaca para reafirmar o argumento do mercado livre com uma nova nitidez de foco. Não é de surpreender, portanto, que à luz da preocupação dos austríacos no século XX sua tradição tenha chegado, na visão dos historiadores de pensamento, a ser identificada com um apoio consistente à economia de livre mercado.

Nossas conclusões são, portanto, que cada uma das posições citadas no início deste capítulo pode ser defendida, mas que uma compreensão das complexidades que cercam as posições políticas dos primeiros austríacos permite-nos ver como isso não envolve inconsistências necessárias, seja em relação ao que os próprios austríacos mantém ou com relação ao que foram percebidos como tendo mantidos.

Notas

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  • “menger”

    [ Chapter 5: Menger, classical liberalism and the Austrian School of economics do livro The Meaning of Market Process - Tradução de Giácomo de Pellegrini ]

Capítulo 5: Menger, Liberalismo Clássico e a Escola Austríaca de Economia

Uma série de valiosos artigos recentes refletiu o crescente interesse atual na postura política e ideológica dos economistas fundadores da Escola Austríaca. O que é particularmente intrigante sobre essa literatura é que ela oferece o que parece, pelo menos superficialmente, ser um conjunto de leituras e avaliações muito diferentes dessa postura político-ideológica. Especialmente em relação a Carl Menger, oferecemos avaliações aparentemente contraditórias. Ele era um campeão do laissez-faire; favoreceu a intervenção econômica estatal substancialmente; não tinha uma posição política claramente definida e articulada - cada uma dessas visões de Menger e dos primeiros austríacos se encontra expressa em algum lugar na literatura. Cada um desses pontos de vista é apoiado por citações dos primeiros austríacos. O objetivo do presente capítulo é conciliar as aparentes inconsistências apresentadas nesses artigos anteriores.

Nossas conclusões serão (a) que os primeiros austríacos, especialmente Menger, ocuparam uma posição que reconheceu tanto a eficácia dos mercados quanto o alcance da intervenção econômica governamental útil; (b) que esta posição meio cheia, meio vazia, não foi articulada de forma deliberada e integrada, de modo que podem ser citadas observações individuais que sugerem posições mais extremas do que a de fato ocupava; (c) que esta posição meio cheia, meio vazia, no entanto, expressava uma compreensão de mercados que, por si só, sugeriam fortemente uma apreciação mais radical dos mercados livres do que os primeiros austríacos de fato demonstravam. É a última circunstância, supomos, que explica como, quando mais tarde os austríacos chegaram a posições ainda mais consistentemente laissez-faire, foram vistos pelos historiadores do pensamento como de alguma forma simplesmente perseguindo uma tradição austríaca que pode ser rastreada até os fundadores.

Como deve ser evidente, o desenvolvimento desta tese, embora à primeira vista conflita com as várias contribuições para a literatura atual sobre este tópico, na verdade, difere deles apenas em questões de ênfase. De fato, o presente capítulo contém muito pouca novidade: extrai a maioria de suas ideias da literatura existente, meramente tecendo essas ideias no que compõe, desejamos manter, uma história mais aceitável e integrada. Escritores assinalaram que o copo não estava cheio; escritores apontaram que o copo não estava vazio; escritores até apontaram que o copo estava meio cheio e meio vazio. Não vamos apenas confirmar a leitura meio cheia, meio vazia, mas ajudar a explicar, talvez, por que o copo pode parecer bastante cheio para alguns observadores enquanto parece vazio para outros.

MENGER, AUSTRÍACOS E LAISSEZ-FAIRE: ALGUNS PARADOXOS

Stephan Boehm chamou nossa atenção para uma vertente da sabedoria convencional em relação à Escola Austríaca a partir da época de Menger, ou seja, a identificação dos austríacos como “defensores rigorosos do laissez-faire e apologistas francos do sistema capitalista” (Boehm 1985: 249). Contra essa visão tradicional dos austríacos, Boehm demonstra poderosas evidências nos próprios escritos de Menger: “Menger apresenta uma lista de cinco tarefas legítimas atribuídas ao Estado, respectivamente, melhoria da situação da classe trabalhadora, distribuição de renda, encorajamento da capacidade individual, frugalidade e iniciativa empreendedora” (p. 250, citando Menger 1891). Se esta (ambiciosa!) lista de responsabilidades governamentais não foi suficientemente impressionante, Boehm cita tanto Menger como Böhm-Bawerk de forma enfática, até veemente, rejeitando acusações de que eles seguiram uma abordagem laissez-faire, “manchesteriana” à política social. Menger, Boehm cita, afirmou explicitamente que “nada poderia ser mais oposto à sua escola do que reivindicar o sistema capitalista. Na verdade, a única coisa que ele apreciava em Schmoller era sua preocupação apaixonada pelos pobres e fracos.”4

No entanto, a visão de que os economistas austríacos eram de fato intransigentes defensores do laissez-faire - e certamente a visão de que eram percebidos como tais - não pode ser sumariamente desconsiderado. Erich Streissler, particularmente em seu trabalho recente, chamou nossa atenção para o novo material disponível que apoia esta visão de Menger. Como é sabido, Menger passou vários anos como tutor do príncipe herdeiro Rudolph, da Áustria. Rudolph foi obrigado a preparar ensaios sobre as palestras que ouvira de Menger. Estas notas de aula, com correções de Menger, foram recentemente redescobertas por Brigitte Hamann, que forneceu cópias datilografadas para Streissler. Destes ensaios, Streissler concluiu que Menger ensinou a Rudolph “um liberalismo possivelmente ainda mais rigoroso do que o de Adam Smith. Em casos “normais”, a ação econômica do Estado é sempre prejudicial: sendo só permitida em casos “anormais”.5

Talvez ainda mais persuasiva, no que diz respeito à percepção da Escola Austríaca como defensora do não-intervencionismo, sejam as reminiscências pessoais de Ludwig von Mises. Mises estudou na Universidade de Viena nos primeiros anos deste século e tornou-se um dos discípulos mais conhecidos de Böhm-Bawerk. Seu nome é invariavelmente citado como um participante proeminente no famoso seminário de Böhm-Bawerk na Universidade. Pode haver pouca dúvida de que Mises estava completamente familiarizado com a posição política dos membros da Escola Austríaca. Embora ele não tenha estudado com Menger, não podia deixar de ter consciência da forma como era entendida as visões políticas de Menger. Para Mises parece não ter havido a menor sombra de dúvida de que os austríacos se viram (e eram vistos por seus contemporâneos) como reivindicando não apenas uma ciência abstrata da economia (contra os desafios historicistas), mas também ao mesmo tempo a eficácia da economia de mercado (contra seus detratores socialistas e estatistas).

Em um capítulo intitulado “Os aspectos políticos da metodologia”, Mises descreve a aliança entre Schmoller e sua Escola Histórica e as políticas bismarckianas na Prússia que “começaram a inaugurar sua Sozialpolitik (política social), o sistema de medidas intervencionistas como a legislação trabalhista, a seguridade social, atitudes pró-sindicato, tributação progressiva, tarifas protecionistas, cartéis e dumping” (Mises 1969: 30). É verdade que Mises reconheceu que quando Menger, Böhm-Bawerk e Wieser iniciaram suas carreiras científicas, não estavam preocupados com os problemas das políticas econômicas e com a rejeição do intervencionismo pela economia clássica. Eles consideraram como sua vocação colocar a teoria econômica em uma base sólida e estavam prontos para se dedicarem inteiramente a esta causa” (p. 18). Mas essa passagem é seguida pela afirmação declarada de que “Menger desaprovou de todo o coração as políticas intervencionistas do governo austríaco […] tinha adotado”. Um cético poderia ficar tentado a pensar se Mises (escrevendo em 1969) talvez não estivesse lendo independentemente as atitudes de seus professores, a postura de laissez-faire que ele próprio adotou em sua própria carreira. Mas um leitor imparcial das muitas referências de Mises às implicações políticas da Methodenstreit (disputa de métodos) terá dificuldade em evitar concluir que Mises está simplesmente expressando a percepção generalizada dos austríacos como sendo fortemente oposta à intervenção estatista adotada pela Escola Histórica.

E ainda, como citado por Boehm (1985: 248), encontramos Gunnar Myrdal descrevendo os austríacos como sendo os raros economistas do século XIX que não injetaram motivos políticos em sua economia: “Na Áustria, a economia nunca teve objetivos políticos diretos” ( Myrdal 1954: 128). Aparentemente, a leitura que Myrdal fez da economia austríaca não a considerou nem tendenciosamente intervencionista nem procurou promover o laissez-faire.

Para completar nosso esboço de percepções da posição política da Escola Austríaca (ou a falta dela), devemos nos referir a uma declaração mais explícita de Nikolai Bukharin, o eminente teórico marxista e erudito econômico, que passou algum tempo como participante do seminário de Böhm-Bawerk e escreveu uma crítica marxista à teoria austríaca econômica. Em seu prefácio à edição russa deste livro, Bukharin refere-se ao fato de ele ter escolhido atacar a Escola Austríaca (em vez de outras escolas de economia moderna): “Nossa escolha de um oponente por nossa crítica provavelmente não requer discussão, pois é sabido que o oponente mais poderoso do marxismo é a escola austríaca” (1972: 9). É claro que ser um poderoso opositor do marxismo ainda não é um defensor do laissez-faire. No entanto, parece claro que os austríacos foram vistos como propiciando uma forte defesa intelectual do capitalismo.[3] Nada nos seus escritos, ao que parece, poderia sugerir quaisquer razões de princípio para duvidar da eficácia das instituições capitalistas na promoção do bem-estar econômico humano.

Esta é, então, a situação em que nos encontramos. Provas aparentemente existem para apoiar a visão de que os austríacos eram defensores do laissez-faire, a visão de que eram simpáticos ao intervencionismo, e a visão de que não estavam preocupados com as implicações políticas de suas doutrinas. Vamos considerar, independentemente de qualquer das evidências citadas, o que se poderia esperar concluir, em termos de implicações políticas, da teoria econômica da Escola Austríaca, especialmente em sua encarnação inicial de Menger.

MENGER E A REVOLUÇÃO DA UTILIDADE MARGINAL

Uma certa ambiguidade chegou a cercar a questão do grau em que o Grundsätze (Princípios de Economia Política) de Menger representou uma contribuição revolucionária e pioneira à economia de seu tempo. A visão tradicional entre os historiadores do pensamento viu o trabalho de Menger como uma das três contribuições básicas para a “revolução da utilidade marginal” (além de ser um manifesto que sustenta o método teórico em economia, em oposição ao método histórico que se entrincheirou a economia alemã). A partir dessa leitura tradicional de Menger, seu livro foi um ataque frontal, revolucionário e pioneiro à ortodoxia clássica. No entanto, ao mesmo tempo, o livro de Menger, e especialmente seu prefácio, reconhecia livremente um profundo endividamento para os escritores anteriores, particularmente para a “fundação de trabalhos anteriores que foi produzida quase inteiramente pela indústria de estudiosos alemães” (Menger 1981: 49). Na verdade, Streissler, em trabalhos recentes (1990), chamou a atenção para uma tradição alemã “protoneoclássica” de meados do século XIX, na qual o trabalho de Menger deveria ser reconhecido como uma contribuição que oferecesse continuidade de desenvolvimento, em vez de proporcionar um afastamento revolucionário. Embora Menger enfatizasse temas centrais à revolução da utilidade marginal, argumenta Streissler, Menger se via como um reformador em vez de um revolucionário.

No entanto, essa ambiguidade relativa às possíveis ligações entre o Grundsätze de Menger e essa tradição “protoneoclássica” alemã certamente deve estar estritamente relacionada a características específicas do sistema de Menger, especialmente sua teoria subjetiva do valor. Parece haver pouca dúvida sobre a consciência de Menger de que estava oferecendo, em seu Grundsätze, uma perspectiva sobre o sistema econômico que era inteiramente novo. A ênfase de Menger, em seu prefácio, sobre a necessidade de equilibrar “cuidadosa atenção ao trabalho passado em todos os campos de nossa ciência até agora explorados” contra a crítica, “com total independência de julgamento, das opiniões de nossos predecessores e até mesmo [de] doutrinas até agora consideradas realizações definitivas de nossa ciência”, (1981: 46) sugere seu senso muito claro de romper abruptamente com o passado. Hayek nos disse que se comenta que Menger “observou que escreveu o Grundsätze em um estado de excitação mórbida” (Hayek 1981: 16). Parece razoável atribuir esse entusiasmo à convicção de Menger de que estava escrevendo um livro inovador.

O reconhecimento da dívida de Menger aos eruditos alemães e a dedicação do seu livro a Wilhelm Roscher, o famoso líder da (mais antiga) Escola Histórica Alemã, não devem ser mal interpretados. Estas referências certamente devem ser entendidas, não como reflexo de qualquer falha em perceber a novidade de seu próprio trabalho, mas como expressando seu senso meticuloso de justiça para estudiosos anteriores cujas contribuições ele valorizou (além de ser uma política estratégica prudente em buscar aliar-se a si mesmo com os estudiosos mais influentes de seu tempo, em seu esforço para desalojar a ortodoxia clássica). Essa interpretação é inteiramente consistente com a crítica calculada que Menger atribuiu ao trabalho do próprio Roscher doze anos depois do Grundsätze (Menger 1985: 185-9). A diferença de tom (em relação a Roscher e aos outros economistas alemães pré-Schmoller) que separa as Untersuchungen (Investigações) de Menger do Grundsätze não precisa ser atribuída a uma mudança de paixão, ou de opinião, sobre estes assuntos (a ser explicado talvez pela frieza com que o Grundsätze foi recebido na Alemanha). Menger ainda reconheceu calorosamente (em 1883, como em 1871) as “virtudes da personalidade científica do erudito estudioso de Leipzig; seus méritos excepcionais e seu avanço na compreensão histórica de uma série de importantes fenômenos econômicos; o estímulo incomparável que seus estudos na literatura de nossa ciência deram a todos os colegas mais jovens” (1985: 189). As críticas de Roscher em 1883 podem antes ser entendidas como expressando a recente compreensão de Menger de que seu próprio sucesso em moldar sua nova compreensão do sistema econômico dependia crucialmente de sua própria orientação teórica, com a qual a abordagem alemã agora dominante deveria ser nitidamente contrastada. (Além disso, a recepção fria concedida ao Grundsätze na Alemanha pode ter convencido Menger de que nenhuma aliança estratégica com os economistas alemães poderia agora ser realisticamente antecipada.)

Portanto, o trabalho de Menger em 1871 certamente deve ser lido como uma oferta deliberadamente nova sobre o sistema econômico como um todo. É verdade que elementos importantes (referentes ao subjetivismo, utilidade e assim por diante) foram extraídos de escritores alemães anteriores, como Streissler (e Hayek 1981: 13-14, 17) apontaram. No entanto, a visão geral da economia como um sistema impulsionado inteiramente e independentemente pelas escolhas e avaliações dos consumidores - com essas avaliações transmitidas “para cima” através do sistema para “bens de ordem superior”, determinando como esses bens escassos de ordem superior são alocados entre as indústrias e como são valorizados e remunerados como parte de um único processo impulsionado pelo consumidor - era algo que Menger seguramente (e corretamente) sentia como sendo totalmente novo.

E se isso, apesar de qualquer inovação técnica na teoria da utilidade marginal, deve ser visto como a contribuição original auto-reconhecida de Menger, então parece razoável entender Menger como percebendo uma implicação correspondentemente original de sua visão para a economia normativa. Essa afirmação exige uma breve elaboração.

MENGER E A EFICIÊNCIA DA ECONOMIA DE MERCADO

A visão de Menger do sistema econômico como totalmente controlado pelas preferências, valorações e escolhas do consumidor tem implicações significativas para o bem-estar. Contra um dado pano de fundo de recursos escassos (bens potenciais de ordem superior), as preferências e escolhas do consumidor colocam em movimento uma série cada vez mais ampla de atividades produtivas empreendedoras que resultam em avaliações de mercado de serviços de fatores e alocações correspondentes entre setores. Desta visão surge um claro senso de soberania do consumidor - um conceito com implicações normativas obviamente importantes.

Essa visão da soberania do consumidor oferece um critério normativo que difere acentuadamente da base clássica do laissez-faire. Os economistas clássicos viam a economia de livre mercado produzindo (sob os incentivos proporcionados pela mão invisível) o maior volume possível de riqueza material. A visão de mercado de Menger apontava, não tanto para uma maximização da produção agregada, quanto para um padrão de governança econômica exercido pelas preferências do consumidor. Esse aspecto da visão de Menger sugere uma apreciação dos resultados dos mercados livres que diferem sutilmente dos teoremas de bem-estar neoclássicos mais padronizados sobre a otimização social do laissez-faire. Para Marshall e Pigou, o sentido em que se pode argumentar que os mercados livres (na ausência de externalidades) é economicamente ideal é aquele que se concentra na maximização do bem-estar agregado. Para Walras e outros economistas do bem-estar neoclássico continental, os mercados alcançam ideais de bem-estar alcançando uma alocação ótima de recursos (equivalente, em um mundo de comparações de utilidade interpessoal, à maximização do bem-estar agregado). É verdade que tal otimalidade é baseada na primazia do bem-estar, de acordo com a necessidade de respeitar as preferências do consumidor; mas essa perspectiva ainda padronizada da economia do bem-estar social não se concentra no controle efetivo exercido pelas escolhas do consumidor. Para a teoria do bem-estar mainstream, o importante é o padrão de alocação alcançado pelo mercado (medido em relação ao padrão da estrutura das preferências do consumidor). Mas, a partir da visão de Menger sobre a economia, aparece a percepção de que, na verdade, é apenas a série de escolhas tomadas pelos consumidores que criam os valores de mercado e determinam as avaliações empreendedoras que controlam a real alocação de recursos.

É difícil evitar a conjectura de que a apreciação de Menger pelas conquistas da economia de livre mercado (como expresso, digamos, nos ensaios de Rudolph) deve ser atribuída em grande medida a essa nova visão mengeriana sobre a soberania do consumidor. Parece plausível ao extremo que foi nesse insight, completamente absorvido pela economia dos colegas e seguidores mais jovens de Menger, Böhm-Bawerk e Wieser, que os marxistas viram seu principal conflito com a economia austríaca. Para Bukharin, imerso na percepção marxista da economia capitalista como um sistema de exploração, a alegação de que a economia capitalista pura é aquela em que as preferências do consumidor ditam tudo, na qual a atribuição capitalista das quotas de renda é aquele padrão “obrigatório” e imposto pelos consumidores, deve ter parecido perigoso, de fato. Não é de admirar que ele tenha visto a economia austríaca como o oponente mais poderoso do marxismo. E não pode haver dúvida de que foi esse princípio da soberania do consumidor, tão central na economia austríaca, que posteriormente inspirou a crítica de Mises ao socialismo. Como Mises enfatizaria ao longo de sua carreira, a chave para a alfabetização econômica é o entendimento de que a tomada de decisões empresariais se baseia inteiramente no incentivo para antecipar as preferências do consumidor: “Por si próprios, os produtores são incapazes de ordenar a direção da produção. Isso é verdade tanto para o empreendedor quanto para o trabalhador; ambos devem se curvar aos desejos dos consumidores. E não poderia ser de outra forma. As pessoas produzem, não por uma questão de produção, mas pelos bens que podem ser consumidos.” (Mises 1936: 443). Foi esse insight completamente mengeriano que alimentou a polêmica de Mises contra os mal-entendidos socialistas e intervencionistas da economia de mercado.

No entanto, como veremos, essa percepção de Menger, sua percepção pioneira do papel da soberania do consumidor, não foi por si só suficiente para exigi-lo inequivocamente a assinar uma política de laissez-faire puro. Certamente, a valorização da soberania do consumidor traz implicações normativas. Mas para uma mente tão cuidadosa, tão sensível a distinções sutis e tão completa quanto a de Menger, sua compreensão da supremacia das avaliações do consumidor na estrutura de um sistema econômico dificilmente pode ter garantido endosso irrestrito do laissez-faire puro. A própria teoria econômica de Menger deixou uma série de aberturas para argumentos concebíveis, econômicos ou sociais, em favor de intervenções específicas. Vamos ver como deve ter sido o caso.

MENGER, SOBERANIA DO CONSUMIDOR E ÂMBITO DE INTERVENÇÃO ESTATAL

Desejamos identificar três circunstâncias que tornaram a visão de Menger da economia de mercado orientada para o consumidor uma base insuficiente para o manchesterismo, para uma política que insiste no laissez-faire sem mácula. Há todas as razões para supor que Menger estava ciente para essas circunstâncias (e para nós explicarmos as várias vertentes conflitantes de evidências a respeito de sua posição por referência a essas circunstâncias e até que ponto ele articulou as implicações sociais delas). Streissler enfatizou as externalidades como base para as concessões de Menger ao intervencionismo (1988: 201). Queremos sugerir três outras circunstâncias que provavelmente estão na base da lista de Menger (citada acima da discussão de Stephan Boehm) de tarefas legítimas para o Estado.

Primeiro, temos todos os motivos para acreditar que Menger reconheceu que sua visão assumia uma determinada estrutura de direitos de propriedade e lei de propriedade. Quando Menger discutiu as razões da escassez para a instituição da propriedade privada, se referiu à arbitrariedade de tal instituição. Uma “nova ordem social”, explicou, “poderia de fato assegurar que as quantidades disponíveis de bens econômicos fossem usadas para satisfazer as necessidades de pessoas diferentes das atuais”. Mas tal redistribuição nunca eliminaria a escassez; isso não evitaria a necessidade da instituição da propriedade em si. Qualquer “plano de reforma social pode ser razoavelmente direcionado apenas para uma distribuição apropriada de bens econômicos, mas nunca para a abolição da própria instituição da propriedade” (1981: 97-8). Nada na teoria de Menger sugere que o status quo, no que diz respeito à distribuição de propriedade de recursos, seja socialmente ótimo. Parece altamente plausível entender muito da simpatia de Menger pela “preocupação apaixonada de Schmoller pelos pobres e fracos”[4] como reflexo dessa insatisfação extra-econômica com o status quo. A visão de Menger da soberania do consumidor, logicamente falando, era inteiramente consistente com uma consciência social que preferia um conjunto diferente de consumidores efetivos para estar no controle.

Em segundo lugar, embora Menger tenha enfatizado o papel das preferências do consumidor, ele era certamente da opinião de que os consumidores podem estar “equivocados” quanto ao que, de fato, é do seu próprio interesse. Menger insistiu explicitamente na possibilidade dos consumidores erroneamente atribuírem valor a medicamentos primitivos, poções de amor e afins (1981: 53). Ele notou a fraqueza que as pessoas demonstram por “superestimar a importância de satisfações que dão intenso prazer momentâneo, mas contribuem apenas de maneira fugaz para seu bem-estar” (p. 148) e assim por diante. Essa atitude paternalista de sua parte pode facilmente sugerir políticas estatais para corrigir os erros do consumidor na avaliação. É plausível ler a referência de Menger à necessidade de ação estatal para encorajar a economia (Boehm 1985: 250), expressando seu anseio paternalista de neutralizar a circunstância de que “os homens estimam mais a aprovação, intensos prazeres mais do que seu bem-estar permanente e às vezes até mais do que suas vidas” (Menger 1981: 148).

Terceiro, devemos enfatizar que Menger distinguiu nitidamente entre os “preços econômicos” explicados por sua teoria de troca (baseada, por sua vez, em fundamentos de utilidade marginal para avaliação e demanda do consumidor) e os preços do mundo real. Os primeiros são os preços que prevaleceriam na ausência de erro, se os indivíduos econômicos agissem em seus próprios interesses mútuos sem o impedimento de informações incompletas (ver Kirzner, 1979b). No mundo real, erro humano na tomada de decisão, considerações de boa vontade em relação a outros afetam o caráter econômico das transações, e outras causas complicam os resultados: “Uma situação econômica definida traz à luz precisamente os preços econômicos dos bens apenas nos casos mais raros. Os preços reais são mais ou menos diferentes dos econômicos” (Menger 1985: 69). O sentido da visão geral de Menger do sistema econômico governado inteiramente pelas avaliações do consumidor está confinada ao modelo em que os efeitos do erro e de complicações similares são ignorados. Apenas se os preços econômicos - os preços que “corretamente” refletem as realidades subjacentes das avaliações “corretas” do consumidor - prevalecessem, seria verdade que a alocação de recursos expressa de fato, fiel e eficientemente, os desejos dos consumidores soberanos. Eu expressei em outro lugar (Kirzner, 1979b) perplexidade com a ausência, em Menger, de qualquer análise de um processo de mercado através do qual, possivelmente, erros por parte dos participantes do mercado pudessem ser sistematicamente eliminados. Aposto que se pode afirmar com segurança que, embora Menger, de fato, tenha aparentemente assumido que os mercados tenderão, mais cedo ou mais tarde, a uma série de preços econômicos, ele certamente não afirmou que, em todos os momentos, essa matriz pode ser considerada no lugar. É plausível ler sua referência à necessidade de ação estatal para incentivar a iniciativa empreendedora (Boehm 1985: 250), expressando o temor de que circunstâncias possam surgir onde o erro empresarial ou a falta de iniciativa resultem em preços patologicamente antieconômicos (e alocações de recursos), a menos que a ação do Estado para estimular iniciativas empreendedoras corretivas seja introduzida.

A REVOLUÇÃO MENGERIANA E A DEFESA DO LAISSEZ- FAIRE: AVALIAÇÃO SUMÁRIA

Estamos em condições de resumir as discussões até agora. Menger introduziu uma visão revolucionária do funcionamento de um sistema de mercado, no qual via as avaliações do consumidor governando toda a estrutura de produção e determinando rigorosamente a alocação de recursos e as correspondentes remunerações de mercado de escassos serviços de recursos. Essa percepção da soberania do consumidor certamente traz importantes implicações para a avaliação social da eficiência do sistema capitalista.

Pode haver pouca dúvida de que (como vimos ser o caso de Mises) a aceitação da visão mengeriana traz consigo uma defesa poderosa dos resultados capitalistas. Estes resultados podem ser vistos como rigorosamente necessários e desejáveis, se desejamos realmente respeitar os desejos dos consumidores como eles próprios os expressam, e se desejamos tratar a propriedade existente e outros direitos e dotes como dados e não sujeitos a contestação. O que vimos, no entanto, é que, para o próprio Menger, não era necessariamente o caso de os desejos expressos dos consumidores serem vistos como exigindo respeito; nem era o caso que qualquer padrão inicial de propriedade fosse definido com o título de aprovação moral. Mais precisamente, vimos que o insight de Menger sobre a natureza da soberania do consumidor estava circunscrito por sua consciência de que os erros empresariais e outras aberrações podem facilmente servir como uma separação entre a economia do mundo real e o modelo “econômico” governado pelo consumidor de Menger desta realidade.

O que desejamos agora apresentar é que essas considerações sirvam adequadamente para explicar as linhas de evidências conflitantes (sobre a atitude de Menger em relação à intervenção estatal na economia de mercado) citadas no início deste capítulo. Não devemos nos surpreender ao descobrir passagens em Menger coerentes com o laissez-faire puro; não devemos nos surpreender ao encontrar passagens em Menger consistentes com o intervencionismo completo; não deveríamos nos surpreender ao encontrar passagens em Menger consistentes (como Gunnar Myrdal as leu) com um distanciamento completo das questões políticas. E certamente não deveríamos nos surpreender ao descobrir que os escritores marxistas, como Bukharin, perceberam na economia mengeriana um poderoso inimigo de qualquer teoria de exploração do capitalismo.

RECONCILIANDO A EVIDÊNCIA CONFLITANTE

Certamente não pode haver mistério quanto à percepção difundida (citada por Boehm) dos primeiros austríacos como fortes defensores do sistema de livre mercado. Como vimos, a visão básica de Menger sobre a economia de mercado, uma visão nunca totalmente perdida de vista na subsequente tradição austríaca, certamente tem um forte característica liberal clássica. Mostra como, com o erro e a aberração ausentes, os mercados podem expressar fielmente a soberania do consumidor, em vez do controle empresarial. Os mercados não são vistos apenas como caoticamente descoordenados, são vistos como servidores eficientes e sistemáticos do público consumidor. É fácil ver como a centralidade dessa visão poderia levar os historiadores posteriores do pensamento (assim como os próprios austríacos subsequentes) a concluir - sem referência às letras miúdas[5] - que a economia austríaca reivindica o livre mercado como uma exigência para a realização da soberania do consumidor.

Mas, como vimos, as letras miúdas de Menger estão realmente lá para serem lidas e consideradas. Quando nos movemos do reino da teoria econômica para o da política social, a mensagem aparentemente clara que surge da visão mengeriana torna-se nebulosa, complexa e ambígua. Não apenas pode-se duvidar da aplicabilidade da teoria ao mundo real (já que no mundo real a matriz de preços “econômicos” provavelmente estará ausente - em vez disso uma matriz ineficiente e errônea de “preços não-econômicos” estará no lugar); além disso, o formulador de políticas sociais pode legitimamente questionar a aceitabilidade moral do padrão de propriedade de recursos que a teoria econômica simplesmente toma como garantida. Além disso, uma vez que se passe da mesa livre de valores do teórico econômico para o pódio paternalista do formulador de políticas, torna-se necessário considerar até que ponto as escolhas feitas livremente pelo consumidor podem parecer equivocadas e erradas, não consistentes com o “verdadeiro” bem-estar dos consumidores. Todas essas considerações são amplamente suficientes para explicar as declarações feitas por Boehm e outros, atestando a disposição de Menger de atribuir importantes responsabilidades intervencionistas ao Estado.

E, mais uma vez, um observador como Gunnar Myrdal poderia legitimamente citar os austríacos como não tendo nenhum eixo político ou ideológico para trabalhar. A exposição de Menger de sua visão central do mercado não tentou articular quaisquer implicações de política de laissez-faire - e, como vimos, de fato não impediu a adoção de um programa moderadamente intervencionista. Assim, enquanto Bukharin leu corretamente a teoria austríaca como uma ameaça poderosa à visão marxista da economia capitalista, Myrdal poderia igualmente elogiar os austríacos por perseguirem um programa de pesquisa científica não contaminado por nenhuma agenda política. Uma série de outras observações precisam ser feitas para completar nossa história, reconciliando as evidências aparentemente conflitantes de Menger e dos primeiros austríacos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa reconciliação das vertentes de evidências conflitantes dependeu de nossa capacidade de distinguir nitidamente entre a visão central do sistema econômico de Menger , por um lado, e as considerações complicadas sobre o erro e os direitos de propriedade do outro. É porque o contexto em que Menger articulou sua visão central foi aquele no qual as últimas considerações complicadas não precisaram ser explicitamente introduzidas, de modo que conclusões aparentemente conflitantes sobre as visões de Menger sobre a política econômica pudessem ser extraídas. Certas circunstâncias adicionais combinou para criar esta situação um tanto confusa.

Streissler assinalou que a tradição nas universidades alemãs e austríacas era de haver “duas cátedras de economia em cada universidade: uma cadeira de teoria econômica e uma cadeira de política econômica” (1988: 200). Menger e os primeiros economistas austríacos ocupavam cadeiras de teoria; não eram responsáveis ​​pelo ensino da política econômica. Suas pesquisas e seus livros tratavam quase exclusivamente de teoria positiva. Essa circunstância deve ter encorajado os seguidores dos primeiros austríacos, bem como os historiadores do pensamento, a tirar suas próprias conclusões a respeito da direção da política para a qual a teoria austríaca estava apontando. Essa tendência só pode ter sido fortalecida pelo fato de que a centralidade da nova visão do sistema econômico de Menger recebia ênfase em seu trabalho teórico, enquanto a “boa impressão” reconhecendo a legitimidade da intervenção estatal encontrava seu caminho nas contribuições periféricas, mesmo jornalísticas, dos fundadores. É plausível que o próprio Menger possa ter visto sua “boa impressão” como tendo um impacto claramente menor em considerações políticas práticas. Isso explicaria sua capacidade de dar uma palestra a Rudolph de acordo com linhas que, a uma primeira aproximação, por assim dizer, lhe permitiram evitar a ênfase em sua própria “boa impressão”.

Como Boehm nos lembrou (1985: 256-7), a principal fronteira do conflito ideológico e político na Áustria do final do século XIX não foi aquela que separou os proponentes do laissez-faire puro daqueles da intervenção estatal agressiva. Pelo contrário, foi entre os defensores dos privilégios mais antigos e entrincheirados do clero, da aristocracia, do exército e da burocracia e dos expoentes do “josephismo, a versão austríaca do absolutismo esclarecido”. Os economistas austríacos endossaram um “liberalismo […] profundamente enraizado nas tradições josephênicas, cujo principal propósito era acabar com os privilégios e guildas feudais” (1985: 256-7). O trabalho científico de Menger não precisava abordar essas preocupações. Sua abertura para o intervencionismo estatal poderia ser facilmente relegada às letras miúdas. Quando, no curso das décadas, a fronteira mudou, de modo que as principais questões políticas entre os economistas giravam em torno do grau desejável de intervenção estatal, tornou-se fácil concentrar-se quase exclusivamente na visão central da soberania do consumidor do sistema econômico de Menger e desenhar as próprias conclusões.

Além disso, à medida que a economia austríaca entrava em sua segunda e terceira gerações, o foco da investigação de políticas públicas mudou para a viabilidade do socialismo. Aqui Mises, como notado acima, foi capaz de basear-se tanto nas raízes de Böhm-Bawerk e Menger da economia austríaca para reafirmar o argumento do mercado livre com uma nova nitidez de foco. Não é de surpreender, portanto, que à luz da preocupação dos austríacos no século XX sua tradição tenha chegado, na visão dos historiadores de pensamento, a ser identificada com um apoio consistente à economia de livre mercado.

Nossas conclusões são, portanto, que cada uma das posições citadas no início deste capítulo pode ser defendida, mas que uma compreensão das complexidades que cercam as posições políticas dos primeiros austríacos permite-nos ver como isso não envolve inconsistências necessárias, seja em relação ao que os próprios austríacos mantém ou com relação ao que foram percebidos como tendo mantidos.

Notas

  1. Boehm (1985: 251), citando Menger (1884). Boehm também poderia ter enfatizado o sabor intervencionista do trabalho tardio de Friedrich von Wieser: ver especialmente Wieser (1967: 408-16). Veja também a observação do professor Streissler de que “Wieser foi por instinto, pelo menos, um intervencionista paternalista descarado, se não para dizer melhor um fascista” (1988, p. 200). Recentemente, Carl G. Uhr se referiu a Menger como um “liberal moderado de mentalidade social” que não era “nenhum defensor não-crítico do laissez-faire” (em uma resenha do livro, HOPE 21 (1) (Primavera 1989): 152).  2

  2. Streissler (1988: 201). Ele também tem mais detalhes sobre os ensaios de Menger-Rudolph. 

  3. Essa percepção marxista dos austríacos como protagonistas da campanha intelectual contra-revolucionária burguesa persistiu, às vezes de maneira bizarra, em nosso próprio tempo. Assim, Maurice Dobb interpretou mal a referência de Schumpeter a Böhm-Bawerk como “o Marx burguês” (1954: 846) afirmando que Schumpeter via Böhm-Bawerk primeiramente como líder dos “apologistas conscientes do sistema existente” (Dobb 1973: 193). Schumpeter, é claro, não tinha essa intenção ao descrever Böhm-Bawerk. Em vez disso, queria chamar a atenção para a abrangente perspectiva teórica de Bawerk sobre o capitalismo - uma que combinava com a própria visão de Marx em grandeza de escopo. No entanto, a observação de Dobb confirma o argumento feito aqui no texto. 

  4. Veja a nota 1. 

  5. Como argumentaremos, essa conclusão foi, em grau significativo, justificada. Era legítimo aceitar a mensagem central de Menger, enquanto rejeitava ou ignorava as letras miúdas. Até o próprio Menger, ao discursar para Rudolph, achava que a importância da mensagem central exigia que as letras miúdas fossem quase inteiramente postas de lado, pelo menos para propósitos introdutórios.