Ação Humana, 1949: um episódio dramático na história intelectual

Human Action, 1949: A Dramatic Episode in Intellectual History · Tradução de Ordem Livre
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Já se observou que todo grande livro é como um grande castelo. Ele pode ser olhado de diferentes ângulos, cada um oferecendo uma perspectiva única. Olhar a obra monumental de Ludwig von Mises a partir do ponto de vista de 2009 permite ver com grande clareza um aspecto fascinante dela: o puro drama de seu surgimento à época de sua publicação. Tratei desse tema algumas vezes ao longo dos anos. Agradeço por esta oportunidade de articulá-lo em maiores detalhes.

Há coisa de 13 anos (na edição de maio de 1996, que celebrou os 50 anos de serviços prestados ao público pela Foundation of Economic Education), discuti o papel fundamental da FEE na divulgação da economia austríaca. Discuti sobretudo o papel que desempenhou (ainda mais por ter oferecido a Mises uma “base” de simpatizantes) ao manter a tradição da economia austríaca durante as décadas em que a reputação profissional da escola atingia seu ponto mais baixo. Aquele artigo se concentrava parcialmente na contribuição da Fundação para o renascimento subsequente da economia austríaca nos EUA. Esta nota complementa aquele artigo ao concentrar-se no caráter inteiramente dramático do impacto de longo prazo da obra-prima de Mises, obra que ancorou tudo que Mises viria a escrever sob os auspícios da FEE, a que se deve inquestionavelmente atribuir o renascimento da economia austríaca.

O drama intelectual de Ação Humana

O termo “drama” pode parecer deslocado em relação a um tomo sério a respeito das fundações de uma disciplina séria. Mas Ação Humana não é uma obra qualquer. Na época de seu lançamento, considerou-se que a obra foi escrita de maneira friamente rigorosa, articulando uma visão de mundo particular a um entendimento de mundo particular — isso quando se achava que essa visão de mundo e esse entendimento já tinham sido varridos do cenário profissional. O livro acabou sendo sumariamente descartado, e subsequentemente ignorado, como se não passasse do último suspiro de uma tradição intelectual decadente. Mas essa opinião estava terrivelmente equivocada.

Ação Humana não vinha só apresentar de novo as ideias de uma tradição anterior. De fato, o livro representava, é preciso deixar claro, uma revisão dramática, um aprofundamento dramático dos insights da Escola Austríaca. Exatamente quando se considerava que a tradição da economia austríaca estava virtualmente morta, reduzindo-se a material para tratados sobre a história do pensamento econômico, essa mesma tradição produziu com brilhantismo uma interpretação nova, revigorante e fértil de seus princípios centrais. Seis décadas depois, conseguimos perceber como a revisão e a reinterpretação de Mises inspiraram um renascimento do interesse acadêmico e intelectual sério pela economia austríaca. Desde essa perspectiva, a publicação de Ação Humana em 1949 certamente deve ser considerada um episódio dramático na história da economia.

1932-1945: o declínio da economia austríaca

No início dos anos 1930, a escola austríaca de economia era reconhecida na Europa continental, no Reino Unido e nos EUA como parte importante da economia acadêmica contemporânea. Para jovens intelectuais dos EUA que visitassem as universidades europeias da época, um convite para apresentar seu trabalho num seminário da Universidade de Viena era uma realização profissional de imenso valor. Na Inglaterra, Lionel Robbins, o economista mais proeminente da Universidade de Londres, publicou em 1932 o clássico An Essay on the Nature and Significance of Economic Science, repleto de insights e citações que o autor tinha selecionado da literatura austríaca e de suas visitas a Viena. No mesmo ano, Robbins convidou o brilhante jovem Friedrich Hayek (próximo de Mises, e seu protegido) para assumir um cargo de prestígio no corpo docente da Universidade de Londres. A aparição de Hayek na cena acadêmica britânica teve um impacto quase dramático na discussão econômica britânica, sobretudo em relação à teoria da moeda e do capital.

Porém, apenas uns poucos anos depois, parecia que esse sucesso tinha evaporado. O avanço da teoria econômica nos anos 1930 (avanços relacionados particularmente ao trabalho de Piero Sraffa e John Maynard Keynes, a teorias de competição imperfeita e monopolística, a teorias econômicas socialistas, e a sofisticados avanços na economia matemática) parecia ter deixado os austríacos bem para trás. Considerava-se que tinham sido derrotados por Keynes (nas questões macroeconômicas), por Frank Knight (na teoria do capital), e por Oskar Lange e Abba Lerner (na possibilidade de um planejamento econômico socialista eficiente), e que não tinham conseguido acompanhar os fascinantes desenvolvimentos na teoria do bem-estar social, na econometria e na economia matemática. A dispersão física do círculo de economistas de Viena que tinham participado do famoso privatseminar de Mises, um resultado dos problemas políticos da época, certamente contribuiu para dar a impressão de que a tradição vienense não era mais um componente vivo do pensamento econômico moderno. (O próprio Mises tinha trocado Viena por Genebra em 1934.) Ainda que Mises tenha publicado Nationalökonomie em Genebra em 1940, e que Hayek tenha publicado The Pure Theory of Capital em 1941, os economistas praticamente não deram nenhuma atenção a essas obras. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, quando Mises era um refugiado na cidade de Nova York e não tinha uma posição acadêmica regular, as perspectivas para o futuro da tradição de Menger e Böhm-Bawerk pareciam realmente desoladoras.

Além disso, pode-se dizer que certos aspectos dos desenvolvimentos da teoria econômica mainstream durante os anos 1930 — apesar de seu distanciamento geral do caminho da teoria austríaca — podem muito bem ter parecido erodir o argumento em favor de uma clara presença austríaca. Em seus anos iniciais, a Escola Austríaca adquiriu sua identidade de seu desafio pioneiro ao historicismo da escola germânica. Mas, nos anos 1930, aquela batalha (em nome da legitimidade da teoria econômica abstrata) tinha sido vencida; todas as principais escolas do pensamento econômico europeu estavam do lado dos austríacos em relação ao papel da teoria pura. E, em 1932, o próprio Mises tinha escrito que todas as escolas “modernas” de pensamento econômico partilhavam os mesmos princípios econômicos, ainda que em linguagens e modos de exposição diferentes. Parece claro que o próprio Mises não reconhecia (em 1932) o abismo que (como depois ficaria claríssimo!) separava o mainstream anglo-americano da economia que o próprio Mises identificara com a tradição austríaca. Assim, alguns discípulos de Mises (incluindo talvez Fritz Machlup, Gottfried Haberler e Paul Rosenstein-Rodan) podem ser desculpados por achar que aquilo que era caro à tradição austríaca era então (meio dos anos 1930) bastante aceito pela economia mainstream. Esses austríacos acreditavam que não havia nada a ganhar intelectualmente em tratar sua escola como algo distinto.

O debate do cálculo socialista e a revolução de Mises e Hayek

Contudo, ainda que o cenário logo após a guerra parecesse inteiramente hostil à economia austríaca, tanto Mises quanto Hayek estavam trabalhando, de modo independente mas paralelo, no sentido de uma reinterpretação revolucionária de sua herança intelectual. (Esse artigo se concentra, é claro, na obra clássica publicada por Mises em 1949. Mas seria um erro grave não observar que o “drama” que vimos na aparição do livro de Mises teve seu paralelo no aparecimento do volume de ensaios Individualism and Economic Order, de Hayek, publicado em 1948-49. Discuti a complementaridade dessas duas contribuições em “Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek: a moderna extensão do subjetivismo austríaco”, republicado em meu livro “O significado do processo de mercado: ensaios sobre o desenvolvimento da moderna economia austríaca”.

Parece razoável crer que o “debate do cálculo econômico socialista” que sacudira a década anterior induziu as revisões revolucionárias no entendimento dos mercados. A aceitação acrítica pelos economistas da tese de Lange-Lerner — de que os socialistas podem planejar com eficiência ao modelar seu plano segundo condições de equilíbrio geral (que, como os teóricos mainstream postularam, governavam os sistemas do mercado competitivo) — ensinou a Mises e a Hayek que seu próprio entendimento de como os mercados funcionavam diferia fundamentalmente do entendimento de seus colegas neoclássicos. Mises, em particular, agora percebia que os teóricos neoclássicos mainstream não partilhavam o mesmo entendimento dos princípios econômicos que governam os mercados que os economistas austríacos (ou ao menos ele mesmo) partilhavam. Mises escreveu Ação Humana para articular com o máximo de convicção sua recusa em aceitar a interpretação neoclássica mainstream do funcionamento dos mercados. Ação Humana era uma desafiadora declaração de independência teórica — uma declaração que explicitava aquilo que até então (ao menos segundo Mises) tinha ficado implícito na teoria de mercado neoclássica (e na austríaca em particular) anterior. (Ver Perfect Competition and the Transformation of Economics, de Frank M. Machovec.)

Essa articulação explícita constituiu um aprofundamento e uma extensão dramáticos e revolucionários da teoria austríaca existente. Que ela tenha vindo a inspirar o renascimento da economia austríaca no fim do século XX, ainda que tenha sido ignorada e subestimada em seu lançamento, é, em grande parte, aquilo que faz de Ação humana um episódio de um drama intelectual.

Processo de mercado versus equilíbrio de mercado

Creio que aquilo que o debate do cálculo econômico socialista ensinou a Mises foi que, para promover a compreensão daquilo que o sistema de mercado realiza, é necessário trocar a ênfase na exposição de padrões atingíveis de equilíbrio de mercado pela ênfase no caráter dos processos que levam ao equilíbrio. (Para uma exploração exaustiva que tende a apoiar essa afirmação, ver Rivalry and Central Planning: The Socialist Calculation.)

Essa última ênfase revela o caráter essencialmente empreendedor do processo de mercado e destaca o papel da competição dinâmica (ao invés do estado de suposta “competição perfeita”) nesse processo empresarial. (Na obra de Hayek se articulava uma mudança paralela de ênfase: a saber, uma substituição de um mundo de conhecimento perfeito mútuo imaginário por um mundo em que o processo “de aprendizagem” do mercado tende a continuamente expandir o escopo do conhecimento mútuo — sujeito, é claro, às contínuas perturbações criadas por mudanças exógenas nos padrões de demanda, na disponibilidade de recursos etc.) Os autores que acreditavam que os planejadores centrais poderiam emular a eficiência do mercado tinham ignorado, na visão de Mises, os processos sutis da descoberta empreendedora, a única coisa que permite que se postule quaisquer tendências sistemáticas ao equilíbrio de mercado.

Ao concentrar-se no processo empreendedor que ocorre nos mercados desimpedidos por obstáculos governamentais à entrada competitiva, Mises ofereceu muito mais do que uma reinterpretação da teoria tradicional dos preços. Seus insights ofereceram um novo e brilhante entendimento do sentido da competição de mercado e, assim, também uma nova e revolucionária perspectiva da teoria do monopólio. A compreensão de Mises dos processos de mercado implicava não apenas a rejeição da ortodoxia mainstream da teoria do socialismo, mas tinha ainda implicações profundas para as políticas antitruste e, de modo mais geral, para a teoria das políticas reguladoras governamentais.

Por muitos anos, essa nova ênfase na economia misesiana-austríaca foi completamente ignorada. Na década imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, o foco da atenção profissional não estava na formulação precisa dos fundamentos da microeconomia, mas na extensão em que a microeconomia deve, no mundo real, ser subordinada a considerações macroeconômicas keynesianas. Além disso, a crescente sofisticação da economia matemática, e suas aplicações na elaboração do ambicioso empreendimento teórico walrasiano de equilíbrio geral, combinaram-se para fazer com que as ideias de Mises parecessem antiquadas, elementares, e até primitivas. Como hoje se sabe, aquelas foram décadas (da publicação de Risk, Uncertainty and Profit de Knight até a obra pioneira de Baumol sobre a ressurreição do papel do empreendedor, quase meio século depois) em que a teoria econômica mainstream perdeu quase completamente o empreendedor de vista.

O drama do renascimento austríaco

Mas a grande obra de Mises não estava destinada a ficar soterrada para sempre por esse silêncio ensurdecedor. Nas décadas de 1960 e 1970, jovens estudantes e professores começavam a descobrir a obra de Mises e a reconhecer o incrível frescor de suas ideias. Os economistas — ou ao menos alguns mestrandos mais independentes e ousados — estavam ao mesmo tempo começando a se dar conta da tediosa irrelevância de muito daquilo que se ensinava na pós-graduação dos departamentos mainstream. A queda da economia keynesiana nas últimas décadas do século XX levou a uma atenção renovada para os fundamentos da microeconomia. Em Ação humana, cada vez mais jovens acadêmicos redescobriam ideias que lhes permitiam entender o mundo complexo que a ciência econômica supostamente deveria ajudar a entender. A queda da União Soviética concentrou a atenção nas profundas verdades sobre o socialismo que estavam nos fundamentos misesianos. Aquela queda mostrou a muitos que o lado mainstream da profissão, que por décadas defendera a possibilidade de eficiência econômica socialista e tratara com desprezo aqueles que questionavam essa possibilidade, estava simples e infamemente errado.

O modesto renascimento do interesse pela tradição da economia austríaca nas últimas quatro décadas destacou, na minha opinião, o drama intrínseco à primeira publicação de Ação Humana. Essa obra era o manifesto corajoso de um acadêmico de integridade incorruptível que, perto da sétima década de sua vida, ofereceu uma articulação formidavelmente nova das verdades econômicas. Que essa obra tenha sido ignorada por décadas e só depois tenha recebido reconhecimento (ainda que modesto) é algo que aumenta o drama intelectual desse episódio do desenvolvimento do pensamento econômico do século XX. A especulação a respeito da futura influência que essa grande obra ainda exercerá apenas aumenta a excitação provocada pelo drama.