O que Piketty não entendeu sobre o terceiro mundo

What Piketty Gets Wrong About the Third World · Tradução de Leonardo Tavares Brown
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Como um habitante do “terceiro mundo”, eu sou sensível aos constantes palpites de analistas do “primeiro mundo” sobre as estatísticas dos países em desenvolvimento. Por quê? Porque quando se defrontam com informações incompletas, esses analistas preenchem os espaços vazios com seus próprios preconceitos e fantasias. Isso se chama eurocentrismo e pode conduzir a uma compreensão catastrófica da realidade da maioria das pessoas no planeta.

O influente livro de Thomas Piketty, “Capital no Século 21”, é um desses casos. Piketty, um economista, representa a epítome do eurocentrismo. Em seu livro ele admite que não tem como obter os dados que precisa da maior parte dos países do mundo, então ele apenas extrapola tendências baseado no que encontrou nos números de países europeus, especialmente a França.

Nessa base distorcida, de fato, todo o mundo parece europeu – assim como seus problemas e a relevância de suas soluções de cunho marxista. Seu objetivo é provar, com base em análise estatística, que o capital, entendido como acumulação de propriedade, “automaticamente gera um padrão de desigualdade arbitrário e insustentável”.

Piketty transpõe para o resto do mundo sua interpretação histórica a qual atribui ao capital a violência e as duas grandes guerras que acometeram a Europa. Ele prevê que se o capital não for colocado em controle agora, o descontentamento nas ruas irá, no futuro, evoluir em uma escalada de violência planetária.

No futuro? Do que exatamente ele está falando? As guerras por capital já começaram bem embaixo do nariz da Europa, no Oriente Médio e Norte da África. Mas, ao contrário do que parece fazer sentido para os europeus, a evidência gritante indica que essas guerras não são rebeliões dos pobres contra o capital, são rebeliões por capital.

O caso da Primavera Árabe

Depois que Mohamed Bouazizi colocou fogo no próprio corpo na Tunísia em 2010, a imprensa europeia rapidamente o caracterizou como apenas mais um trabalhador desempregado.

Nós, peruanos, entre outros, tínhamos nossas dúvidas a respeito desse rótulo. Quando fui convidado para ir à Tunísia junto com um grupo de pesquisa, nosso objetivo era investigar as causas do tumulto no mundo árabe. Nós descobrimos que Bouazizi não era um proletário: desde os 12 anos ele era um trabalhador autônomo. Nós descobrimos outras 63 pessoas que, dentro de um período de dois meses após o ocorrido, também tentaram se suicidar colocando fogo no próprio corpo.

Para entender o que motivou essas tentativas de suicídio, nós passamos dois anos organizando entrevistas com as famílias das vítimas e até com alguns sobreviveram às queimaduras.

O denominador comum é que eles eram empreendedores; todos se rebelaram quando foram expropriados ou impedidos de usufruir do pouco capital que possuíam. Nós pesquisamos os registros dos seus suicídios públicos para encontrar evidências de motivações políticas e religiosas, sem sucesso. Todas manifestações protestavam contra confiscos, privação e perda do controle de seus ativos e de seu ganha pão.

De acordo com a maioria dos sobreviventes que eu entrevistei para o documentário “Heróis Improváveis”, agora sendo exibido na PBS, suas queixas estão centradas em expropriações arbitrárias e na negação de seus direitos pelo Estado. Eles tem casas mas não desfrutam plenamente de direitos de propriedade; eles queriam investir mas não podiam emitir ações; eles queriam financiamentos mas não podiam contrair dívidas; eles queriam fazer sociedades mas não tinham acesso a contratos; eles queriam limitar riscos mas não podiam estabelecer responsabilidade limitada.

Meus colegas e eu estimamos que por volta de 200 milhões de árabes vivem na mesma circunstância daqueles que tentaram o suicídio – dependentes do mercado informal pra sua sobrevivência e desprotegidos pelo Estado de direito. Sua situação precária e o hábito das autoridades de expropriar e oprimir explica em grande parte por que a população tomou as ruas para protestar contra seu sofrimento – não contra o capital, mas contra aqueles que mantém o capital fora do seu alcance.

Como os registros oficiais são muito imprecisos, minha organização, o Instituto para a Liberdade e Democracia no Peru, junto com 120 pesquisadores árabes, esquadrinhou os registros de propriedade de fábricas, imóveis e outros negócios formais nos quais Piketty se baseou para calcular o valor do capital. Também batemos em portas durante três anos. Nossa pesquisa demonstrou que trabalhadores egípcios eram bastante familiares ao capital.

Em 2013, por exemplo, o Egito tinha mais de 23 milhões de cidadãos categorizados como “trabalhadores”; eles recebiam em torno de 21 bilhões de dólares em salários, mas também possuíam 360 bilhões em capital fora dos registros. Isso significa que trabalhadores egípcios possuem em capital um valor de 17 vezes o montante de todo rendimento salarial recebido em 2013. Para ter uma ideia de proporção, isso é oito vezes mais do que todo o investimento externo recebido pelo Egito desde que Napoleão invadiu o país 200 anos atrás. Na verdade, o Egito não é um caso especial – pessoas comuns no mundo inteiro estão sentadas em trilhões de dólares de capital em potencial.

Voltando a Piketty

Então, quão relevante é Piketty quando observamos o Oriente Médio, Norte da África e o resto do mundo em desenvolvimento? Suas conclusões são irrelevantes. No fim das contas, o argumento que sugere que o capital é oposto aos interesses dos pobres não faz nenhum sentido para não ocidentais.

Muitos habitantes de países emergentes estão na posição na qual o presidente Abraham Lincoln, em suas epístolas para Karl Marx, chamava de “classe nenhum dos dois” – nem capital, nem trabalho, mas uma mistura de ambos.

O problema é que as estatísticas mundiais sobre trabalho são eurocêntricas e não têm uma categoria apropriada para relacionar o pobre às suas atividades empreendedoras e às suas aspirações de participar do mercado global.