Os fatos das Ciências Sociais

The Facts of the Social Sciences · Tradução de Gabriel Oliva
· 57 minutos de leitura

Proferido diante o Clube de Ciência Moral da Universidade de Cambridge em 19 de novembro de 1942. Reproduzido em Ethics, LIV, No. 1 (Outubro, 1943), 1-13. Algumas das questões levantadas neste ensaio são discutidas em maior extensão em artigo do autor, Scientism and the Study of Society, que apareceu em três partes no Economica, 1942-45.

1

Não existe hoje um termo comumente aceito para descrever o grupo de disciplinas das quais trataremos nesse artigo. O termo “ciências morais”, no sentido em que John Stuart Mill usava, cobria de forma aproximada o campo, mas ele está há muito tempo fora de moda e agora carregaria conotações inapropriadas para a maioria dos leitores. Embora seja, por essa razão, necessário usar o familiar termo “ciências sociais” no título, devo começar enfatizando que isso não significa que todas as disciplinas relacionadas com os fenômenos da vida social apresentam os problemas específicos que discutiremos. Estatísticas vitais, por exemplo, ou o estudo da propagação de doenças contagiosas, sem dúvida lidam com os fenômenos sociais, mas não levantam nenhuma das questões específicas a serem consideradas aqui. Eles são, se é que posso chamá-los assim, verdadeiras ciências naturais da sociedade e não diferem em nenhum aspecto importante das outras ciências naturais. São diferentes, no entanto, o estudo da linguagem ou do mercado, da lei e da maioria das outras instituições humanas. É apenas esse grupo de disciplinas que me proponho a considerar e para as quais sou obrigado a usar o termo um tanto enganador de “ciências sociais”.

Já que argumentarei que o papel da experiência nesses campos do conhecimento é fundamentalmente diferente do que ela desempenha nas ciências naturais, talvez devesse explicar que eu mesmo originalmente abordei meu campo completamente imbuído de uma crença na validade universal dos métodos das ciências naturais. Meu primeiro treinamento técnico não apenas foi fortemente científico, no sentido estrito da palavra, mas também o pouco treinamento que tive em filosofia e método científico foi inteiramente na escola de Ernst Mach e, posteriormente, na dos positivistas lógicos. No entanto, tudo isso teve o efeito apenas de criar uma consciência, que se tornou mais e mais definida com o passar do tempo, de que, certamente, todas as pessoas que universalmente são consideradas falando com algum sentido na área da economia estão constantemente infringindo os cânones aceitos do método científico que evoluíram a partir da prática das ciências naturais; que até mesmo os cientistas naturais, quando começam a discutir fenômenos sociais, via de regra - pelo menos na medida em que preservam algum senso comum - fazem o mesmo; mas que, nos casos não raros nos quais um cientista natural seriamente tenta aplicar seus hábitos profissionais de pensamento para os problemas sociais, o resultado tem sido quase invariavelmente desastroso - isto é, de um caráter que para todos os estudantes profissionais desses campos parece um total absurdo. Mas, enquanto é fácil mostrar o absurdo da maioria das tentativas concretas de tornar as ciências sociais “científicas”, é muito menos fácil montar uma defesa convincente dos nossos próprios métodos, que, embora satisfatórios para a maioria das pessoas em determinadas aplicações, são, se olhados com um olhar crítico, suspeitosamente semelhantes ao que é conhecida popularmente como “escolástica medieval”.

2

Mas basta de introdução. Deixe-me mergulhar diretamente no meio do meu assunto e perguntar com que tipo de fatos temos de lidar nas ciências sociais. Essa questão levanta de imediato outra que é em muitos aspectos crucial para o meu problema: O que queremos dizer quando falamos de “certo tipo de fatos”? Eles nos são dados como fatos de certo tipo, ou nós que os tornamos o que são ao olhar para eles de certa maneira? Evidentemente, todo o nosso conhecimento do mundo externo é de uma forma derivado da percepção dos sentidos e, portanto, de nosso conhecimento dos fatos físicos. Mas isso significa que todo o nosso conhecimento é apenas de fatos físicos? Isso depende do que queremos dizer com “um tipo de fatos”.

Uma analogia com as ciências físicas tornará a posição mais clara. Todas as alavancas ou pêndulos que podemos conceber têm propriedades químicas e óticas. Mas, quando falamos de alavancas ou pêndulos, não falamos sobre fatos químicos ou óticos. O que faz de uma série de fatos individuais de coisas do tipo são os atributos que selecionamos, a fim de tratá-los como membros de uma classe. Isto é, evidentemente, senso comum. Mas isso significa que, apesar de todos os fenômenos sociais com os quais possivelmente podemos lidar terem atributos físicos, eles não precisam ser fatos físicos para o nosso propósito. Isso depende de como acharemos conveniente classificá-los para a discussão de nossos problemas. As ações humanas que observamos, e os objetos dessas ações, são coisas do mesmo tipo ou de diferentes tipos, por que aparecem como fisicamente idênticos ou distintos para nós, os observadores - ou por causa de algum outro motivo?

As ciências sociais, sem exceção, preocupam-se com a maneira pela qual os homens se comportam em relação a seu ambiente - outros homens ou coisas - ou deveria dizer, ao invés disso, que esses são os elementos a partir dos quais as ciências sociais constroem padrões de relações entre muitos homens. Como devemos definir ou classificar os objetos de suas atividades, se queremos explicar ou compreender as suas ações? É pelos atributos físicos dos objetos - o que nós podemos descobrir sobre os objetos estudando-os - ou é por alguma outra coisa que devemos classificar os objetos quando tentamos explicar o que os homens fazem com eles? Deixe-me primeiramente considerar alguns exemplos.

Tome coisas como ferramentas, alimentos, remédios, armas, palavras, frases, comunicações e atos de produção - ou qualquer exemplo particular de qualquer um desses. Acredito que esses sejam bons exemplos do tipo de objetos da atividade humana que constantemente ocorrem nas ciências sociais. É facilmente visto que todos esses conceitos (e o mesmo vale para casos mais concretos) não se referem a algumas propriedades objetivas possuídas pelas coisas, ou as quais o observador possa descobrir sobre tais coisas, mas aos pontos de vista que outra pessoa tem sobre as coisas. Esses objetos não podem sequer serem definidos em termos físicos, porque inexiste uma única propriedade física que todo membro de uma classe deva possuir. Esses conceitos também não são meras abstrações do tipo que usamos em todas as ciências físicas; eles abstraem de todas as propriedades físicas das próprias coisas. São todos exemplos do que por vezes se chama de “conceitos teleológicos”, isto é, podem ser definidos apenas através da indicação das relações entre três termos: um propósito, alguém que tem esse propósito, e um objeto que essa pessoa pensa ser um meio adequado para alcançar esse propósito. Se desejarmos, podemos dizer que todos esses objetos são definidos não em termos de suas propriedades “reais”, mas em termos de opiniões que as pessoas têm sobre eles. Em suma, nas ciências sociais, as coisas são o que as pessoas pensam que elas são. Dinheiro é dinheiro, uma palavra é uma palavra, um cosmético é um cosmético, se e porque alguém acha que o são.

Que isso não seja mais óbvio se deve ao acidente histórico de que, no mundo em que vivemos, o conhecimento da maioria das pessoas é aproximadamente parecido com o nosso próprio conhecimento. Isso é destacado muito mais fortemente quando pensamos em homens com um conhecimento diferente do nosso, por exemplo, pessoas que acreditam em magia. É óbvio que um feitiço que se acredita proteger a vida do seu portador, ou que um ritual destinado a garantir boas colheitas, só pode ser definido em termos das crenças das pessoas sobre eles. Mas o caráter lógico dos conceitos que temos que usar em tentativas de interpretar as ações das pessoas é o mesmo quer nossas crenças coincidam com as deles ou não. Se um medicamento é um medicamento, para o propósito de compreender as ações de uma pessoa, depende apenas de a pessoa acreditar que ele seja um, independentemente de nós, os observadores, concordarmos ou não. Às vezes é um pouco difícil ter claramente em mente essa distinção. Nós somos suscetíveis, por exemplo, a pensar na relação entre pai e filho como um fato “objetivo”. Mas, quando usamos esse conceito no estudo da vida familiar, o que é relevante não é que x seja a prole biológica de y, mas que um deles ou ambos acreditem que esse seja o caso. O caráter relevante em questão não é diferente do caso em que x e y acreditam que exista algum laço espiritual entre eles, cuja existência nós não acreditamos. Talvez a distinção relevante torne-se mais clara na asserção geral e óbvia de que nenhum conhecimento superior que o observador possa dispor sobre o objeto, mas que não seja possuído pela pessoa que age, pode nos ajudar a compreender os motivos de suas ações.

Os objetos da atividade humana, então, para os fins das ciências sociais são do mesmo ou de diferentes tipos, ou pertencem à mesma ou a diferentes classes, não de acordo com o que nós, os observadores, sabemos sobre os objetos, mas de acordo com o que nós pensamos que a pessoa observada sabe sobre ele. Nós, de alguma forma, e pelas razões que presentemente considerarei, imputamos conhecimento na pessoa observada. Antes que prossiga perguntando em que fundamento tal imputação de conhecimento sobre o objeto à pessoa agindo se baseia, o que isso significa, e o que decorre do fato de que definimos os objetos da ação humana de tal forma, devo me voltar um momento para considerar o segundo tipo de elementos com os quais temos de lidar nas ciências sociais: não o ambiente em que os seres humanos se comportam, mas a ação humana em si. Quando examinamos a classificação de diferentes tipos de ações que devemos usar quando discutimos o comportamento humano inteligível, deparamo-nos com exatamente a mesma situação que nos deparamos quando analisamos a classificação dos objetos das ações humanas. Dos exemplos que dei antes, os últimos quatro encaixam-se nessa categoria: palavras, frases, comunicações e atos de produção são ilustrações de ações humanas desse tipo. Agora, o que faz com que sejam de um mesmo tipo duas instâncias de uma mesma palavra ou de um mesmo ato de produção, no sentido que é relevante quando discutimos o comportamento inteligível? Certamente não as propriedades físicas que têm em comum. Não é porque explicitamente sei quais propriedades físicas do som da palavra “sicômero”, pronunciada em momentos diferentes por pessoas diferentes tem em comum, mas porque sei que x ou y intencionam usar todos esses sons ou sinais diferentes para significar a mesma palavra, ou que todos entendem como a mesma palavra, que os trato como instâncias da mesma classe. Não é por causa de qualquer semelhança objetiva ou física, mas por causa da intenção (imputada) da pessoa que age, que considero como instâncias de um mesmo ato de produção as várias maneiras em que, em circunstâncias diferentes, possa fazer, digamos, um eixo.

Por favor, note que nem com relação aos objetos da atividade humana, nem com relação aos diferentes tipos de atividade humana argumento que suas propriedades físicas não entrem no processo de classificação. O que estou argumentando é que nenhuma propriedade física pode entrar na definição explícita de nenhuma dessas classes, porque os elementos dessas classes não precisam possuir atributos físicos comuns, e nós nem sequer consciente ou explicitamente sabemos quais são as várias propriedades físicas das quais um objeto teria de possuir pelo menos para ser um membro de uma classe. A situação pode ser descrita esquematicamente, dizendo que sabemos que os objetos a, b, c, …, que podem ser completamente diferentes fisicamente e os quais nunca podemos enumerar exaustivamente, são objetos do mesmo tipo porque a atitude de X em relação a todos eles é semelhante. Mas o fato de a atitude de X em relação a eles ser semelhante pode novamente ser definida apenas dizendo que ele irá reagir em relação a eles através das ações α, β, γ, …, que novamente podem ser fisicamente diferentes e que não seremos capazes de enumerar exaustivamente, mas que nós simplesmente sabemos que “significam” a mesma coisa.

Esse resultado da reflexão sobre o que estamos realmente fazendo é, sem dúvida, um pouco perturbador. No entanto, a mim não parece haver dúvida de que isso não só é precisamente o que estamos fazendo, na vida comum, bem como nas ciências sociais, quando falamos sobre ações inteligíveis de outras pessoas, mas também que essa é a única maneira com que podemos alguma vez “entender” o que as outras pessoas fazem; e que, portanto, devemos contar com esse tipo de raciocínio sempre que discutimos o que todos conhecemos como atividades especificamente humanas ou inteligíveis. Nós todos sabemos o que queremos dizer quando dizemos que vemos uma pessoa “brincando” ou “trabalhando”, um homem fazendo isso ou aquilo “deliberadamente”, ou quando dizemos que um rosto parece “amigável” ou um homem “assustado”. Mas, embora possamos ser capazes de explicar como reconhecer qualquer uma dessas coisas em um caso particular, estou certo de que nenhum de nós pode enumerar, e nenhuma ciência pode - pelo menos por enquanto - nos dizer todos os sintomas físicos diferentes através dos quais nós reconhecemos a presença dessas coisas. Os atributos comuns que os elementos de qualquer uma dessas classes possuem não são atributos físicos, mas devem ser outra coisa.

Do fato de que sempre que interpretamos a ação humana como em qualquer sentido intencional ou significativo, quer o façamos na vida cotidiana quer para os propósitos das ciências sociais, nós temos que definir ambos os objetos da atividade humana e os diferentes tipos de ações por si mesmas, não em termos físicos, mas em termos das opiniões ou intenções das pessoas que agem, então se segue algumas consequências muito importantes; a saber: nada a menos do fato de que não podemos, a partir dos conceitos dos objetos, analiticamente concluir algo sobre o que as ações serão. Se definimos um objeto em termos da atitude de uma pessoa em relação a ele, segue, é claro, que a definição do objeto implica uma declaração sobre a atitude da pessoa em relação à coisa. Quando dizemos que uma pessoa possui alimento ou dinheiro, ou que ela pronuncia uma palavra, nós implicamos que sabemos que o primeiro pode ser comido, que o segundo pode ser usado para comprar algo e que a terceira pode ser entendida - e, talvez, muitas outras coisas. Se essa implicação é ou não significativa de alguma forma, isto é, se a tornar explícita acrescenta ou não ao nosso conhecimento de alguma forma, depende de se, quando dizemos a uma pessoa que essa ou aquela coisa é comida ou dinheiro, afirmamos com isso apenas os fatos observados a partir dos quais derivamos esse conhecimento ou se implicamos mais do que isso.

Como podemos saber que uma pessoa possui certas crenças sobre o seu ambiente? O que queremos dizer quando falamos que sabemos que ela possui certas crenças - quando dizemos que sabemos que uma pessoa usa essa coisa como uma ferramenta ou aquele gesto ou som como um meio de comunicação? Queremos dizer meramente o que realmente observamos no caso particular, por exemplo, que podemos vê-la mastigando e engolindo sua comida, batendo um martelo, ou fazendo barulhos? Ou não será que sempre que dizemos que “entendemos” a ação de uma pessoa, quando falamos sobre o “porquê” de ela estar fazendo isso ou aquilo, imputamos a ela algo além do que podemos observar ou, pelo menos, além do que podemos observar no caso particular?

Se considerarmos, por um momento, os mais simples tipos de ações em que esse problema surge, torna-se, é claro, rapidamente óbvio que, ao discutir o que consideramos como ações conscientes de outras pessoas, invariavelmente interpretamos suas ações fazendo uma analogia com a nossa própria mente: isto é, que nós agrupamos suas ações, e os objetos de suas ações, em classes ou categorias que conhecemos unicamente a partir do conhecimento da nossa própria mente. Assumimos que a ideia de um propósito ou uma ferramenta, uma arma ou comida, é comum a eles e a nós, assim como assumimos que eles podem ver a diferença entre as cores ou formas diferentes, assim como nós.  Nós, portanto, sempre complementamos o que realmente vemos da ação de outra pessoa através da projeção nessa pessoa de um sistema de classificação de objetos que conhecemos, não a partir da observação de outras pessoas, mas porque é em termos dessas classes que nós mesmos pensamos. Se, por exemplo, vemos uma pessoa atravessar uma rua cheia de tráfego, desviando de alguns carros e deixando outros passar, sabemos (ou pensamos que sabemos) muito mais do que realmente percebemos com nossos olhos. Isso seria igualmente verdadeiro se víssemos um homem se comportar em um ambiente físico bastante diferente de tudo que já vimos antes. Se vejo pela primeira vez uma grande pedra ou uma avalanche caindo sobre a encosta de uma montanha em direção a um homem e vejo-o correr por sua vida, sei o significado dessa ação, porque sei o que faria ou poderia ter feito em circunstâncias similares.

Não há dúvidas de que todos nós constantemente agimos com base no pressuposto de que podemos dessa maneira interpretar as ações das outras pessoas sobre a analogia de nossa própria mente e que, na grande maioria dos casos, esse procedimento funciona. O problema é que nunca podemos ter certeza. Observando alguns movimentos ou ouvindo algumas palavras de um homem, decidimos que é sensato e não um lunático e, assim, excluímos a possibilidade de ele ter um comportamento em um número infinito de maneiras “estranhas” as quais nenhum de nós jamais poderia enumerar e que simplesmente não se encaixam naquilo que sabemos ser um comportamento razoável, o que significa nada mais do que essas ações não podem ser interpretadas por analogia de nossa própria mente. Não podemos explicar com precisão como, para fins práticos, sabemos que um homem é são e não um lunático, nem podemos excluir a possibilidade de que, em um caso em cada mil, podemos estar errados. Da mesma forma, eu, a partir de algumas observações, sou capaz de concluir rapidamente que um homem está sinalizando ou caçando, fazendo amor com ou punindo outra pessoa, embora nunca tenha visto essas coisas feitas dessa maneira em particular; e ainda assim a minha conclusão será suficientemente certa para todos os propósitos práticos.

A questão importante que se coloca é se é ou não legítimo empregar em análises científicas conceitos como esses, os quais se referem a um estado de coisas que todos reconhecemos “intuitivamente” e que não apenas usamos sem hesitação na vida cotidiana, como também é nisso que todas as relações sociais e toda a comunicação entre os homens se baseiam; ou se devemos ser impedidos de fazê-lo porque não podemos afirmar quaisquer condições físicas a partir das quais podemos deduzir com certeza que as condições postuladas estão realmente presentes em qualquer caso particular, e porque, por essa razão, nunca podemos ter certeza se algum caso particular é realmente um membro da classe sobre a qual falamos - embora todos concordemos que na grande maioria dos casos, o nosso diagnóstico será correto. A hesitação que a princípio se sente sobre isso é provavelmente devida ao fato de que a retenção de tal procedimento nas ciências sociais parece estar em conflito com a tendência mais marcante no desenvolvimento do pensamento científico nos tempos modernos. Mas há realmente tal conflito? A tendência a qual me refiro foi corretamente descrita como uma em direção à progressiva eliminação das ciências físicas de todas as explicações “antropomórficas”. Será que isso realmente significa que devemos nos abster de tratar o homem “antropomorficamente” - ou não é bem óbvio, assim que colocamos dessa forma, que tal extrapolação das tendências passadas é um absurdo?

Eu não quero, é claro, nesse contexto, levantar todos os problemas relacionados com o programa behaviorista, embora uma pesquisa mais sistemática do meu assunto não possa evitar fazê-lo. Na verdade, a questão que tratamos aqui não é nada mais do que se as ciências sociais poderiam possivelmente discutir o tipo de problemas de seu interesse em termos puramente behavioristas - ou mesmo se o behaviorismo consistente é possível.

Talvez a relação entre o fator estritamente empírico e a parte que adicionamos a partir do conhecimento da nossa própria mente para interpretar a ação de outra pessoa possa ser expresso com a ajuda de um uso (um tanto questionável) da distinção entre a denotação e a conotação de um conceito. O que eu em circunstâncias particulares reconheço como uma “cara amigável”, a denotação do conceito, é em grande parte uma questão de experiência. Mas o que quero dizer quando falo que essa é uma “cara amigável”, nenhuma experiência no sentido comum do termo pode exprimir. O que quero dizer com uma “cara amigável” não depende das propriedades físicas dos diferentes casos concretos, que podem teoricamente não ter nada em comum. Mas aprendo a reconhecê-los como membros da mesma classe - e o que os torna membros da mesma classe não é nenhuma de suas propriedades físicas, mas um significado imputado.

A importância dessa distinção cresce na medida em que nos movemos para fora dos ambientes familiares. Enquanto me movo entre minha própria variedade de pessoas, é provável que das propriedades físicas de uma nota bancária ou das de um revólver conclua que são dinheiro ou uma arma para a pessoa que os carrega. Quando vejo um selvagem carregando conchas ou tubos longos e finos, as propriedades físicas da coisa provavelmente não me dirão nada. Mas as observações que me sugerem que as conchas são dinheiro para ele e o tubo uma arma lançarão muita luz sobre o objeto - muito mais luz do que essas mesmas observações poderiam dar se não estivesse familiarizado com o conceito de dinheiro ou de uma arma. Ao reconhecer as coisas como tais, começo a entender o comportamento das pessoas. Sou capaz de encaixá-lo em um esquema de ações que “fazem sentido” só porque passei não a considerá-la como uma coisa com certas propriedades físicas, mas como o tipo de coisa que se encaixa no padrão de minha própria ação propositada.

Se o que fazemos quando falamos em entender a ação de uma pessoa é encaixar o que realmente observamos em padrões que encontramos prontos em nossas próprias mentes, segue-se, é claro, que podemos compreender cada vez menos quando nos voltamos para seres cada vez mais diferentes de nós mesmos. Mas também segue que não só é impossível reconhecer, mas também é sem sentido falar sobre, uma mente diferente da nossa própria. O que queremos dizer quando falamos de outra mente é que podemos conectar o que observamos porque as coisas que observamos se encaixam na nossa própria forma de pensar. Mas, onde essa possibilidade de interpretar em termos de analogias da nossa própria mente cessa, onde já não podemos “compreender” - não há nenhum sentido em falar de mente; há, então, apenas fatos físicos que podemos agrupar e classificar somente em função das propriedades físicas que observamos.

Um ponto interessante nesse contexto é que, quando passamos da interpretação das ações de homens muito parecidos com nós mesmos para homens que vivem em um ambiente muito diferente, são os conceitos mais concretos os que primeiro perdem a sua utilidade na interpretação das ações das pessoas e os mais gerais ou abstratos são os que permanecem úteis por mais tempo. Meu conhecimento das coisas do meu dia-a-dia, dos modos particulares nos quais expressamos ideias ou emoções, será de pouca utilidade na interpretação do comportamento dos habitantes de Tierra del Fuego. Mas a minha compreensão do que quero dizer por um meio para um fim, por alimentos ou por uma arma, uma palavra ou um sinal, e provavelmente até mesmo por uma troca ou um presente, ainda será útil e mesmo indispensável na minha tentativa de compreender o que eles fazem.

3

Até agora, a discussão tem sido limitada à questão de como classificamos ações individuais e seus objetos na discussão dos fenômenos sociais. Devo agora me voltar à questão do propósito para o qual usamos essa classificação. Mesmo que a preocupação com classificações ocupe uma grande quantidade de nossas energias nas ciências sociais - tanto, de fato, que na economia, por exemplo, um dos críticos modernos mais conhecidos da disciplina descreveu-a como uma ciência puramente “taxonômica” - esse não é o nosso objetivo final. Como todas as classificações, ela é apenas uma maneira conveniente de organizar os nossos fatos para o que quer que queiramos explicar. Mas antes que possa me voltar para isso, devo, em primeiro lugar, eliminar um equívoco comum de nosso caminho e, em segundo lugar, explicar uma alegação frequentemente feita em defesa desse processo de classificação - uma alegação que para qualquer pessoa que cresceu nas ciências naturais soa altamente suspeita, mas que, entretanto, segue meramente da natureza do nosso objeto.

O mal-entendido é que as ciências sociais visam explicar o comportamento individual e, particularmente, que o processo elaborado de classificação que usamos é, ou serve para, tal explicação. As ciências sociais na verdade não fazem nada do tipo. Se a ação consciente pode ser “explicada”, essa é uma tarefa para a psicologia, mas não para a economia ou para a linguística, a jurisprudência ou qualquer outra ciência social. O que fazemos é meramente classificar os tipos de comportamento individual que podemos entender, desenvolver a sua classificação - em suma, fornecer um arranjo ordenado de material que teremos de usar na nossa tarefa posterior. Economistas, e o mesmo provavelmente também é verdade nas outras ciências sociais, ficam geralmente um pouco envergonhados ao admitir que essa parte da sua tarefa é “apenas” um tipo de lógica. Acho que seriam sábios se francamente reconhecessem e encarassem esse fato.

A alegação a que já me referi segue diretamente desse caráter da primeira parte da nossa tarefa como um ramo da lógica aplicada. Mas soa bastante surpreendente à primeira vista. Ela é o que podemos deduzir a partir do conhecimento da nossa própria mente de uma maneira “a priori” ou “dedutiva” ou “analítica”, uma classificação (pelo menos em princípio) exaustiva de todas as formas possíveis de comportamento inteligível. É contra essa alegação, raramente feita abertamente, mas sempre implícita, que todas as provocações contra os economistas são direcionadas, quando somos acusados de gerar o conhecimento a partir de nossa consciência interior e de outros epítetos abusivos semelhantes que existem. No entanto, quando refletimos que, sempre que discutimos o comportamento inteligível, discutimos ações que podemos interpretar em termos de nossa própria mente, a alegação perde o seu caráter surpreendente e de fato torna-se não mais do que um truísmo. Se podemos entender apenas o que é semelhante à nossa própria mente, segue-se necessariamente que devemos ser capazes de encontrar tudo o que podemos entender em nossa própria mente. Evidentemente, quando digo que nós podemos, em princípio, alcançar uma classificação exaustiva de todas as formas possíveis de comportamento inteligível, isso não significa que não podemos descobrir que, ao interpretar as ações humanas, usamos processos de pensamento que ainda não analisamos - ou tornamos explícitos. Nós constantemente o fazemos. O que quero dizer é que, quando discutimos qualquer classe particular de ação inteligível a qual tenhamos definido como ações de um tipo, no sentido em que tenho usado esse termo, então podemos, dentro desse campo, fornecer uma classificação completamente exaustiva das formas de ação que pertencem a ela. Se, por exemplo, definimos como ações econômicas todos os atos de escolha que são tornados necessários pela escassez de meios disponíveis para os nossos fins, podemos, passo a passo, proceder com a subdivisão das situações possíveis em alternativas de forma que, para cada passo não haja uma terceira possibilidade: um dado meio pode ser útil para muitos fins ou apenas para um fim, um dado fim pode ser alcançado por um ou por vários diferentes meios, diferentes meios podem ser desejados para um determinado fim, quer alternativamente quer cumulativamente, etc.

Mas devo deixar o que chamei de primeira parte da minha tarefa e me voltar para a questão do uso que fazemos dessas classificações elaboradas nas ciências sociais. A resposta é, resumidamente, que usamos os diferentes tipos de comportamento individual, assim classificados, como elementos a partir dos quais construímos modelos hipotéticos, na tentativa de reproduzir os padrões de relações sociais que conhecemos no mundo que nos rodeia. Mas isso ainda nos deixa com a questão de saber se essa é a maneira correta de estudar os fenômenos sociais. Não temos nessas estruturas sociais, afinal, definidos fatos sociais tangíveis, os quais devemos observar e medir, assim como observamos e medimos fatos físicos? Não deveríamos aqui, pelo menos derivar todo o nosso conhecimento observando e experimentando, ao invés de “construir modelos” a partir dos elementos encontrados no nosso próprio pensamento?

A crença de que, quando nos voltamos da ação do indivíduo para a observação das coletividades sociais, passamos do reino da especulação vaga e subjetiva para o reino do fato objetivo é muito difundida. É a crença sustentada por todos os que pensam que podem fazer as ciências sociais mais “científicas” através da imitação do modelo das ciências naturais. A sua base intelectual foi mais claramente expressa pelo fundador da “sociologia”, Auguste Comte, quando em uma famosa declaração, afirmou que no campo dos fenômenos sociais, como na biologia, “o todo do objeto é, certamente, muito mais conhecido e mais imediatamente acessível” do que as partes constituintes.1 A maior parte da ciência que tentou criar ainda se baseia em crenças como essa ou similares a essa.

Creio que essa visão que considera os coletivos sociais, tais como a “sociedade” ou o “estado”, ou qualquer instituição ou fenômeno social, como sendo em qualquer sentido mais objetivo do que as ações inteligíveis dos indivíduos é pura ilusão. Devo argumentar que o que chamamos de “fatos sociais” não são mais fatos no sentido específico em que esse termo é utilizado nas ciências físicas do que são as ações individuais ou os seus objetos; que esses assim chamados “fatos” são, ao invés disso, precisamente o mesmo tipo de modelos mentais construídos por nós a partir de elementos que encontramos em nossas próprias mentes como os que construímos nas ciências sociais teóricas; de modo que o que fazemos nessas ciências é, em um sentido lógico, exatamente a mesma coisa que sempre fazemos quando falamos de um estado ou uma comunidade, uma língua ou um mercado, e que só tornamos explícito o que na linguagem corrente é oculto e vago.

Não posso tentar aqui explicar isso no contexto de uma disciplina social teórica qualquer - ou, ao invés, no contexto da única entre elas na qual seria competente para fazer isso, economia. Para fazer isso, teria que gastar muito mais tempo do que tenho em tecnicalidades. Mas talvez seja ainda mais útil se tentar fazer isso no contexto da preeminentemente descritiva e, em certo sentido, da disciplina eminentemente empírica no campo social, a história. Considerar a natureza dos “fatos históricos” será particularmente apropriado, já que os cientistas sociais são constantemente aconselhados, por aqueles que querem tornar as ciências sociais mais “científicas”, a recorrer à história em busca de seus fatos e a usar o “método histórico” como um substituto para o experimental. De fato, fora das próprias ciências sociais (e, ao que parece, especialmente entre os lógicos)2 parece ter se tornado quase uma doutrina aceita a de que o método histórico é o caminho legítimo para generalizações sobre fenômenos sociais.3

O que queremos dizer por um “fato” da história? Os fatos com os quais a história humana se interessa são significativos para nós como fatos físicos ou em algum outro sentido? Que tipo de coisas são a Batalha de Waterloo, o governo francês de Luís XIV, ou o sistema feudal? Talvez chegaremos mais longe se, ao invés de se abordar essa questão diretamente, perguntemo-nos como decidimos se qualquer pedaço particular de informação que temos faz parte do “fato” “Batalha de Waterloo”. O homem que estava arando o seu campo um pouco além da extremidade do flanco dos guardas de Napoleão era parte da Batalha de Waterloo? Ou o cavaleiro que derrubou sua caixa de rapé ao ouvir a notícia da tomada da Bastilha era parte da Revolução Francesa? Considerar cuidadosamente esse tipo de pergunta mostra pelo menos uma coisa: que não podemos definir um fato histórico em termos de coordenadas espaço-temporais. Também que nem tudo o que ocorre em um tempo e em um mesmo lugar faz parte do mesmo fato histórico, e que todas as partes do mesmo fato histórico não precisam pertencer ao mesmo tempo e lugar. A língua grega clássica ou a organização das legiões romanas, o comércio do mar Báltico no século XVIII ou a evolução da common law, ou qualquer movimento de qualquer exército - todos esses são fatos históricos, nos quais nenhum critério físico pode nos dizer quais são as partes do fato e como se ligam. Qualquer tentativa de defini-los deve tomar a forma de uma reconstrução mental, de um modelo, na qual atitudes individuais inteligíveis constituam os elementos. Na maioria dos casos, sem dúvida, o modelo será tão simples que a interligação de suas partes é facilmente visível; e haverá, consequentemente, pouca justificativa para dignificar o modelo com o nome de “teoria”. Mas, se o nosso fato histórico é tão complexo como uma língua ou um mercado, um sistema social ou um método de cultivo da terra, o que chamamos de um fato ou é um processo recorrente ou um padrão complexo de relações persistentes que não é “dado” a nossa observação, mas que só podemos reconstruir laboriosamente - e que podemos reconstruir apenas porque as partes (as relações a partir das quais construímos a estrutura) são familiares e inteligíveis para nós. Dizendo paradoxalmente, o que chamamos de fatos históricos são na verdade teorias que, em um sentido metodológico, são de caráter precisamente idêntico ao dos modelos mais abstratos ou gerais, os quais as ciências teóricas da sociedade constroem. A situação não é que, primeiro, estudamos os “dados” fatos históricos e, em seguida, talvez possamos generalizar a respeito deles. Ao invés disso, usamos uma teoria quando selecionamos, a partir do conhecimento que temos sobre um período, certas partes como sendo inteligivelmente conectadas e constituindo parte do mesmo fato histórico.  Nós nunca observamos estados ou governos, batalhas ou atividades comerciais, ou um povo como um todo. Quando usamos qualquer um desses termos, sempre nos referimos a um esquema que conecta atividades individuais através de relações inteligíveis; isto é, usamos uma teoria que nos diz o que faz e o que não faz parte de nosso assunto. A posição não se altera pelo fato de que a teorização ser geralmente feita para nós por nosso informante ou fonte que, ao relatar o fato, irá usar termos como “estado” ou “cidade” os quais não podem ser definidos em termos físicos, mas que se referem a um complexo de relações que, tornadas explícitas, constituem uma “teoria” sobre o assunto.

A teoria social, no sentido em que uso o termo, é, portanto, logicamente anterior à história. Ela explica os termos que a história deve usar. Isso, naturalmente, não é incompatível com o fato de que o estudo histórico frequentemente força o teórico a rever as construções ou a fornecer novas em termos dos quais possa organizar a informação que encontra. Mas, na medida em que o historiador fala, não apenas sobre as ações individuais de pessoas em particular, mas também sobre o que, em certo sentido, podemos chamar de fenômenos sociais, os seus fatos podem ser explicados como fatos de um determinado tipo só em termos de uma teoria sobre como seus elementos se ligam. Os complexos sociais, as totalidades sociais que o historiador discute, nunca são encontrados prontos, dados da forma como são as estruturas persistentes no mundo orgânico (animal ou vegetal). São criados pelo historiador através de um ato de construção ou interpretação - uma construção que, na maioria dos casos, é feita de forma espontânea e sem qualquer instrumento elaborado. Mas em alguns contextos onde, por exemplo, lidamos com coisas como línguas, sistemas econômicos, ou organismos de direito, essas estruturas são tão complicadas que, sem a ajuda de uma técnica elaborada, já não podem ser reconstruídas sem o perigo de se cometer erros ou ser levado a contradições. Isso é tudo o que as teorias das ciências sociais pretendem fazer. Não tratam das totalidades sociais como totalidades; não tem pretensão de descobrir leis de comportamento ou mudança dessas totalidades através de observações empíricas. Sua função é, ao invés disso, se assim posso chamá-la, de constituir essas totalidades, de fornecer esquemas de relações estruturais os quais o historiador pode usar quando tem que tentar encaixar os elementos que realmente encontra em um todo significativo. O historiador não pode evitar o uso constante de teorias sociais nesse sentido. Ele pode fazer isso inconscientemente e, em campos em que as relações não são muito complexas, seu instinto pode orientá-lo corretamente. Quando ele se volta para fenômenos mais complexos, tais como as línguas, o direito, ou a economia, e ainda desdenha de fazer uso dos modelos elaborados por ele pelos teóricos, é quase certo que fracassará. E esse “fracasso” vai significativamente se mostrar pelo teórico, quer demonstrando-lhe que se envolveu em contradições quer lhe mostrando que, em suas explicações, afirmou uma sequência de “causalidade”, que, assim que suas suposições forem tornadas explícitas, terá de admitir que não seguem das suas suposições.

Há duas consequências importantes que seguem disso e que podem aqui ser expostas apenas brevemente. A primeira é que as teorias das ciências sociais não consistem em “leis” no sentido de regras empíricas sobre o comportamento de objetos definíveis em termos físicos. Tudo o que a teoria das ciências sociais tenta é proporcionar uma técnica de raciocínio que nos ajuda a conectar fatos individuais, mas que, assim como a lógica ou a matemática, não trata dos fatos. Ela nunca pode, portanto, e esse é o segundo ponto, ser verificada ou falsificada por referência aos fatos. Tudo o que podemos e devemos verificar é a presença de nossos pressupostos no caso particular. Já nos referimos aos problemas e dificuldades especiais que isso suscita. Nesse contexto, uma genuína “questão de fato” surge embora seja uma que muitas vezes não poderá ser respondida com a mesma certeza que no caso das ciências naturais. Mas a própria teoria, o esquema mental para a interpretação, nunca pode ser “verificada”, mas apenas testada em sua consistência. Pode ser irrelevante, porque as condições a que se refere nunca ocorrem; ou pode revelar-se inadequada porque não leva em conta um número suficiente de condições. Mas não pode ser mais refutada pelos fatos do que podem a lógica ou a matemática.

Ainda resta, no entanto, a questão de saber se esse tipo de teoria “compositiva”, como gosto de chamá-la, que “constitui” as “totalidades” sociais através da construção de modelos a partir de elementos inteligíveis, é o único tipo de teoria social, ou se não podemos também procurar generalizações empíricas sobre o comportamento dessas totalidades enquanto totalidades, leis das mudanças de línguas ou instituições - o tipo de leis que são o objetivo do “método histórico”.

Não vou me estender aqui sobre a curiosa contradição em que os defensores desse método geralmente envolvem-se quando enfatizam que todos os fenômenos históricos são únicos ou singulares e, em seguida, procedem para afirmação de que seu estudo pode chegar a generalizações. O ponto que desejo frisar é que se, da infinita variedade de fenômenos que podemos encontrar em qualquer situação concreta, só podem ser considerados como parte de um objeto apenas aqueles que conseguimos conectar por meio de modelos mentais, o objeto não pode possuir atributos que estejam além daqueles que podem ser derivados do nosso modelo. Evidentemente, podemos continuar a construir modelos que se encaixem cada vez mais às situações concretas - conceitos de estados ou línguas que possuam uma conotação ainda mais rica. Mas, como membros de uma classe, como unidades semelhantes sobre as quais podemos fazer generalizações, esses modelos nunca podem possuir nenhuma propriedade que não for dada a eles ou que não derive dedutivamente a partir dos pressupostos sobre os quais os construímos. A experiência nunca pode nos ensinar que qualquer tipo específico de estrutura possui propriedades que não seguem a partir da definição (ou da maneira que nós a construímos). A razão para isso é simplesmente que essas totalidades ou estruturas sociais nunca nos são dadas como unidades naturais, não são objetos definidos dados à observação, que nunca lidamos com a totalidade da realidade, mas sempre apenas com uma seleção feita com a ajuda dos nossos modelos.4

Eu não tenho espaço para discutir de forma mais completa a natureza dos “fatos históricos” ou dos objetos da história, mas gostaria brevemente de me referir a uma questão que, embora não estritamente pertinente ao meu assunto, ainda não é completamente irrelevante. É a doutrina muito em moda do “relativismo histórico”, a crença de que diferentes gerações ou épocas devem necessariamente ter opiniões diferentes sobre os mesmos fatos históricos. Parece-me que essa doutrina é o resultado da mesma ilusão de que os fatos históricos são definitivamente dados a nós e não o resultado de uma seleção deliberada daquilo que consideramos como um conjunto conectado de eventos relevantes para a resposta de uma determinada pergunta - uma ilusão que me parece ser devido à crença de que podemos definir um fato histórico em termos físicos através de suas coordenadas espaço-temporais. Mas uma coisa bem definida, digamos, a “Alemanha entre 1618 e 1648”, não é apenas um objeto histórico. Dentro do contínuo de espaço-tempo assim definido, podemos encontrar qualquer número de fenômenos sociais interessantes que para o historiador podem ser objetos completamente diferentes: a história da família X, o desenvolvimento da impressão, a mudança das instituições jurídicas, etc., que podem ou não estar ligados, mas que não fazem mais parte de um fato social do que quaisquer outros dois eventos da história humana. Esse período particular, ou qualquer outro período, não é, como tal, nenhum “fato histórico” definido, nenhum objeto histórico individual. De acordo com os nossos interesses, podemos levantar qualquer número de perguntas diferentes referentes a esse período e, consequentemente, teremos que dar respostas diferentes e construir modelos diferentes de eventos conectados. E é isso que os historiadores fazem em tempos diferentes, porque estão interessados - em questões diferentes. Mas como é somente a questão que perguntamos que destaca, a partir da variedade infinita de eventos sociais que podemos encontrar em qualquer momento e lugar dados, um conjunto definido de eventos conectados que podem ser denominados como um fato histórico, a experiência de que as pessoas dão respostas diferentes para perguntas diferentes não prova, evidentemente, que têm opiniões diferentes sobre o mesmo fato histórico. Não há nenhuma razão, por outro lado, pela qual historiadores em tempos diferentes, mas possuindo a mesma informação, devam responder à mesma questão de maneira diferente. Isso por si só, porém, justificaria a tese de uma relatividade inevitável do conhecimento histórico.

Menciono isso porque esse relativismo histórico é um produto típico do assim chamado “historicismo”, que é, de fato, um produto da má aplicação do viés cientificista a fenômenos históricos - da crença de que os fenômenos sociais são sempre dados a nós como os fatos da natureza nos são dados. Eles são acessíveis para nós só porque podemos compreender o que outras pessoas nos dizem e só podem ser compreendidos através da interpretação das intenções e planos de outras pessoas. Eles não são fatos físicos, mas os elementos a partir dos quais os reproduzimos são sempre categorias familiares de nossa própria mente. Onde não podemos mais interpretar o que sabemos sobre outras pessoas através da analogia de nossa própria mente, a história deixaria de ser história humana; ela teria, então, de fato, que funcionar em termos puramente behavioristas, tais como a história que poderíamos escrever sobre um formigueiro ou a história que um observador de Marte poderia escrever sobre a raça humana.

Se essa descrição do que as ciências sociais estão realmente fazendo parece a vocês como uma descrição de um mundo às avessas no qual tudo está no lugar errado, peço que vocês se lembrem de que essas disciplinas lidam com um mundo no qual da nossa posição necessariamente olhamos de uma maneira diferente daquela que olhamos para o mundo da natureza. Para empregar uma metáfora útil: enquanto no mundo da natureza olhamos pelo lado de fora, olhamos para o mundo da sociedade a partir do interior; enquanto que, quando lidamos com a natureza, os nossos conceitos são sobre os fatos e devem ser adaptados aos fatos, no mundo da sociedade, pelo menos alguns dos conceitos mais conhecidos são o material do qual esse mundo é feito. Assim como a existência de uma estrutura comum de pensamento é a condição da possibilidade da nossa comunicação uns com os outros, da sua compreensão do que digo, ela também é a base sobre a qual todos interpretamos essas complicadas estruturas sociais como as que encontramos na vida econômica ou no direito, na linguagem, e nos costumes.

Notas

  1. Cours, IV, 258. 

  2. Cf, e.g., LS Stebbing, A Modern Introduction to Logic (2d ed., 1933), p. 383. 

  3. Estou certo de que não preciso aqui especialmente proteger-me contra o mal-entendido de que o que tenho a dizer sobre a relação entre história e teoria signifique, em qualquer sentido, a diminuição da importância da história. Gostaria ainda de salientar que todo o propósito da teoria é de ajudar a nossa compreensão dos fenômenos históricos e que o mais perfeito conhecimento da teoria será de muito pouca utilidade, de fato, sem um conhecimento de um caráter histórico mais amplo. Mas isso não tem realmente nada a ver com o meu assunto atual, que é a natureza dos “fatos históricos” e os respectivos papeis que a história e a teoria possuem em sua discussão. 

  4. Aliás, não estou convencido de que esse último ponto realmente constitui uma diferença entre as ciências sociais e naturais. Mas, se não a constitui, acho que são os cientistas naturais que estão errados em acreditar que sempre lidam com a totalidade da realidade e não apenas com determinados “aspectos” da mesma. Mas todo esse problema de se podemos falar, ou perceber, um objeto que é indicado para nós de uma maneira puramente demonstrativa, e que nesse sentido é um indivíduo que se distingue de uma “classe de unidades” (que é realmente concreta e não uma abstração), levaria a muito além do meu presente assunto.