O coletor de impostos

The Tax Gatherer · Tradução de Yago Ferro Monteiro
· 11 minutos de leitura

JACQUES BONHOMME, um comerciante de vinhos.

Sr. LASOUCHE, o coletor de impostos.

L.: Conseguiu assegurar 20 tonéis de vinho?

J.: Sim, o fiz através do meu próprio trabalho e talento.

L.: Tenha a bondade de entregar-me seis dentre os melhores.

J.: Seis tonéis de 20! Pelos céus! Irá me arruinar. E por favor, senhor, para que propósito os destinará?

L.: O primeiro será entregue aos credores do Estado. Quando alguém cria uma dívida, o mínimo que se deve fazer é pagar os juros sobre ela.

J.: Que foi feito do capital emprestado?

L.: Essa é uma longa história. Uma parte foi utilizada para a compra de munição, que foi responsável pela mais bela fumaça do mundo. Outra foi usada para pagar os soldados que se tornaram inválidos após expedições a países estrangeiros. Então, quando esses gastos trouxeram de volta uma invasão contra nós, nosso grandioso inimigo não quis nos deixar sem antes levar parte de nosso dinheiro, dinheiro esse que teve de ser tomado emprestado.

J.: E que benefício eu retiro disso tudo agora?

L.: A satisfação de dizer:

Que je suis fier d’etre Francois

Quand je regarde la colonne!

(Me orgulho em ser francês    Quando vejo nossas colônias!)

J.: E a humilhação de deixar aos meus filhos um patrimônio sobrecarregado com uma eterna dívida a ser arrecadada. Ainda assim, é necessário pagar a dívida criada, mesmo que se tenha feito um uso tão tolo dela. Lá se vai um dos meus tonéis; mas enquanto aos outros cinco?

L.: Um deles irá para o financiamento do serviço público, aos pagamentos feitos pelo Estado, aos juízes que protegem sua propriedade quando seu vizinho tenta vilmente apropriar-se dela, aos policiais que o protegem de ladrões enquanto dorme, aos trabalhadores que mantêm as estradas, ao padre que batiza teus filhos, ao professor que os educa e, por fim, a este teu humilde empregado, que não se pode esperar que trabalhe de graça.

J.: De acordo, um serviço por outro é uma troca justa, e não tenho nada a dizer contra isso. Eu bem gostaria, sem dúvidas, de fazer negócios diretamente com o diretor ou o professor; mas não resistirei. Isso vale pelo segundo tonel, mas ainda temos quatro pelo que explicar.

L.: Consideraria dois tonéis nada mais que o justo como tua contribuição pelas despesas do exército e da marinha?

J.: Ai de mim! Isso não é nada comparado ao que esses dois serviços já me custaram, pois eles me tiraram dois filhos a quem eu amava imensamente.

L.: É necessário manter o equilíbrio do poder.

J.: E não seria esse equilíbrio propriamente mantido se os poderes na Europa reduzissem suas forças pela metade ou três quartos? Devemos preservar nossos filhos e nosso dinheiro. Só é necessário que cheguemos a um comum acordo.

L.: Sim, mas nenhum deles se entende.

J.: E isso me enche de espanto, pois eles sofrem com isso igualmente.

L.: Isso é em parte tua culpa, Jacques Bonhomme.

J.: Não fala a sério, Sr. Coletor. Tenho eu alguma voz nesses assuntos?

L.: Em quem votou para deputado?

J.: Em um corajoso general, que logo será marechal, se Deus permitir.

L.: E de onde esse grande general tira seu sustento?

J.: Dos meus seis tonéis, imagino.

L.: E o que lhe aconteceria se votasse uma redução do exército, e assim também do seu contingente?

J.: Ao invés de ser nomeado marechal iria ser forçado a se aposentar.

L.: Entende agora a situação em que isso te coloca?

J.: Passemos para o próximo tonel, por favor.

L.: Esse irá para a Argélia.

L.: Para a Argélia! E dizem que todos os muçulmanos odeiam vinhos, bárbaros que são! Costumo me perguntar se foi sua ignorância sobre vinhos que os fez infiéis, ou sua infidelidade que os fez serem ignorantes sobre vinhos. E então, que serviço eles me prestam em troca desse néctar que me custou tanto trabalho?

L.: Absolutamente nenhum; e nem o vinho é destinado aos muçulmanos, mas aos bons cristãos que levam suas vidas entre bárbaros.

J.: E que serviço eles me prestam?

L.: Eles fazem incursões, e têm grande sofrimento nelas; eles matam e são mortos; eles são abatidos pela disenteria e levados a hospitais; eles constroem portos e estradas, erguem vilarejos, e os povoam com malteses, italianos, espanhóis e suíços, que se sustentam graças ao teu vinho; e por outra leva desse, devo avisar, voltarei em breve ao senhor.

J.: Meu Deus! Isso é demais. Eu me recuso abertamente. Um comerciante capaz de tamanha tolice seria mandando a um hospício. Para fazer estradas na Cordilheira do Atlas – pelos céus! Enquanto eu mal posso sair de casa por falta de estradas aqui! Para criar portos entre os bárbaros, enquanto o rio Garona está assoreado! Para tirar-me os filhos que amo, e mandá-los a atormentar os cabilas (Nota do Revisor.: Cabila é um termo de origem árabe usado para designar as tribos bérberes do Norte de África). Para fazer-me pagar por casas, sementes e cavalos, para entregá-los aos gregos e malteses, enquanto temos tantos pobres de quem cuidar por aqui!

L.: Os pobres! Pois veja, eles lá vão e livram o país de uma superpopulação.

J.: Então devemos mandar junto deles para a Argélia um capital que possibilitaria que vivessem aqui?

L.: Mas assim estarás estabelecendo as fundações para um grande Império; levarás a civilização à África, coroarás assim teu país em glória imortal.

J.: É um poeta, Sr. Cobrador. Sou um simples comerciante, e nego tua demanda.

L.: Mas pense que no curso de mil anos os teus atuais esforços serão recuperados e recompensados cem vezes mais. Os homens que lideram esse empreendimento nos garantem que assim será.

J.: Nesse meio tempo, para custear suas despesas, ele me pedem primeiro por um barril de vinho, depois por dois, três, e agora eu sou taxado em tonéis! Pois persisto em minha recusa.

L.: Tua recusa vem tarde demais. Teu representante votou por toda a quantidade que demando.

J.: Verdadeiramente. Maldita fraqueza da minha parte! Certamente, em fazer dele meu representante, sou culpado por esse papel de tolo; afinal o que pode haver em comum entre um general e um pobre comerciante?

L.: Ah, sim; mas há algo em comum – no caso, o teu vinho, que ele votou para si mesmo em teu nome.

J.: Pode rir de mim, Sr. Coletor, porque certamente o mereço. Mas seja razoável. Deixe-me ao menos o sexto tonel. Já garantiu o pagamento sobre os juros da dívida, já financiou o serviço público e os pagamentos feitos pelo Estado, além disso, perpetuou a guerra na África. O que mais poderia querer?

L.: É inútil pechinchar comigo. Comunique teus pensamentos ao general, teu representante. Pois foi ele quem votou sobre o teu vinho.

J.: Maldito o seja! Mas diga-me o que pretende fazer desse último barril, o melhor de todo o meu estoque? Fique, prove desse vinho. O quão maduro, adocicado e encorpado ele é!

L.: Excelente! Delicioso! Servirá admiravelmente ao Sr. D., o industrial de tecidos.

J.: Sr. D., o industrial de tecidos? O que quer dizer?

L.: Que ele colherá o benefício.

J.: Como? Por quê? Ai de mim se te entendesse!

L.: Não sabe que o Sr. D. pôs em prática um grande empreendimento que irá se provar de extrema valia ao país, mas que, com tudo levado em conta, causa em cada ano uma considerável perda monetária?

J.: Sinto muito por isso, mas que posso eu fazer?

L.: A Câmara chegou à conclusão que, se esta situação se prolongar, o Sr. D. se encontrará em uma condição onde deverá ou trabalhar de forma mais lucrativa, ou fechar e trazer abaixo todo o seu estabelecimento.

J.: Mas qual a relação entre as especulações frustradas do Sr. D. e o meu vinho?

L.: A Câmara percebeu que, ao entregar ao Sr. D. parte dos vinhos da tua adega, do trigo dos celeiros dos teus vizinhos, do dinheiro dos salários dos trabalhares, os prejuízos do Sr. D. poderão ser convertidos em lucros.

J.: A receita é infalível tanto quanto é engenhosa. Mas veja só! É terrivelmente nefasta. O Sr. D., na verdade, estará compensando suas perdas com a tomada do meu vinho!

L.: Não exatamente do teu vinho, mas do valor deste. Isso é o que chamamos de prêmio de encorajamento, ou subsídio. Não vê o grande serviço que está prestando ao país?

J.: Você quer dizer ao Sr. D.?

L.: Ao país. O Sr. D. nos garante que sua indústria prospere em consequência desse acordo, e dessa forma ele diz que o país enriquece. Ele o disse outro dia mesmo na Câmara, da qual também é membro.

J.: Isso é uma maldita falácia! Um especulador embarca num empreendimento falido, e acaba com seu capital; e então se ele extorque de mim e dos meus vizinhos vinho e trigo em valor suficiente, não apenas para cobrir seus prejuízos, mas para também lhe garantir um lucro, isso é dado como um ganho ao país como um todo.

L.: Havendo teu representante chegado a essa conclusão não há nada que o senhor possa fazer a não ser me entregar os 6 tonéis de vinho que demando, e vender os 14 restantes com o melhor ganho possível.

J.: Esses negócios dizem respeito a mim.

L.: Seria um infortúnio se você não os vendesse a um preço alto.

J.: Pensarei nisso.

L.: Pois esse preço te permitirá obter muito mais coisas.

J.: Estou ciente disso, Sr.

L.: Em primeiro lugar, se comprar ferro para renovar teus arados e pás, a lei decreta que pague ao ferreiro o dobro do que vale esses bens.

J.: Sim, isso é de grande consolo.

L.: E então, se precisar de carvão, de carne, de roupas, de óleo, de madeira, de açúcar, também para cada um desses bens a lei te faz pagar em dobro.

J.: Isso é horrível, assustador, abominável!

L.: Por que cai em reclamações? O senhor mesmo, através do teu representante –

J.: Não diga mais nada sobre o meu representante. Estou mesmo incrivelmente representado. Mas eles não me onerarão uma segunda vez. Eu serei representado por um bom e honesto homem do povo.

L.: Bah! Reelegerá o bravo general.

J.: Devo reelegê-lo para dividir meu vinho entre africanos e industriais?

L.: Estou a dizer, o reelegerá.

J.: Isso já é demais. Sou livre para reelegê-lo ou não, se assim escolher.

L.: Mas escolherá reelegê-lo.

J.: Deixe-o que venha de novo, e saberá com quem estará lidando.

L.: Muito bem, veremos. Adeus. Levarei comigo teus seis tonéis de vinho, para serem distribuídos como o teu amigo, o general, determinou.